São Paulo, domingo, 24 de setembro de 2000

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Em "A Máquina do Mundo Repensada" o poeta Haroldo de Campos dialoga com Dante, Camões e Drummond para criar uma nova cosmologia a partir dos avanços da física
O Big Bang místico

Alcir Pécora
especial para a Folha

A despeito da conhecida crítica aristotélica a gêneros artísticos interessados em questões científicas, que o filósofo julgava pouco favoráveis à imitação da ação, não há dúvida de que a ciência, e particularmente a cosmografia, permaneceu na mira dos poetas, de que Dante (1265-1321) é certamente o exemplo paradigmático. No Renascimento, a cosmografia chegou a ser considerada parte indispensável do conhecimento enciclopédico suposto na excelência dos engenhos que se lançassem aos gêneros poéticos maiores. No século 17, houve mesmo um gênero de poesia científica batizado por Guillaume Colletet (1598-1659) de "poésie naturelle". Em seu "Traité de la Poésie Morale e Sententieuse" (Tratado da Poesia Moral e Sentenciosa, 1658), ele a definia assim: "Poesia natural é aquela que trata de todas as coisas da natureza, tanto corpos celestes quanto corpos elementares e sublunares". "A Máquina do Mundo Repensada", de Haroldo de Campos, inscreve-se nessa longa e fecunda tradição.

Craque da técnica
Trata-se de um poema extenso, com 152 estrofes mais uma coda de verso único, todo ele composto em "terza rima", a forma do terceto celebrizada por Dante na "Divina Comédia". Como é sabido, constitui-se de versos decassílabos com esquema rítmico aba/bcb... nxn/n, cujas principais virtudes são o transporte contínuo da rima -que cria, sucessivamente, expectativas para o seu remate na estrofe seguinte - e, além disso, a forte pontuação lógica de cada uma delas. Trunfo que é, também, seu maior risco: se as divisões estróficas não guardarem correspondência com tais divisões lógicas, tende-se a perder o efeito do terceto, que decai em mero arranjo gráfico determinado pela rima. Ou seja, "terza rima" é forma eminentemente técnica, que só funciona com craques; e Haroldo de Campos, evidentemente, é um deles. Como o título deixa claro, o poema constitui-se como um comentário explícito à alegoria da "máquina do mundo", tal como elaborada nos poemas de Dante, Camões (1524/5-80) e Drummond (1902-87) -comentário que não é entendido apenas como glosa de seus conteúdos, mas principalmente como reapropriação da dicção desses poetas. Assim, Dante está em toda a estrutura do poema; Camões mostra-se em inúmeros versos, como "real/mandato no medonho oceano a rota" (11); "e alto saber que aos seres todo rege" (13); "na fábrica e no engenho a humana gente" (14); "é deus mas o que é deus ninguém o entende" (123); Drummond está também em versos, como "incurioso furtou-se e o canto-chão" (35); "caminho seco sob o céu escuro/ de chumbo" (34) e muitos outros. Mas não apenas esses poetas respiram neste novo poema de Haroldo de Campos; para gostos conceptistas, lá está também Góngora ("Um era lascívia e a outra (tinto/ de sangue o olho)" (5); "antes onça pintada aquela e esta" (2.1); e pelo menos uma formidável metáfora incongruente como "maga lanterna vermelha" (52) para referir a maçã da anedota de Newton. Há também, bem perceptível, algum João Cabral ("neste sertão -mais árduo que floresta" (2) e mesmo algo do vocabulário de Guimarães Rosa ("de veredas como se elas/ se entreverando" (3); "endemoninha" (137), além de vários outros, menos recorrentes.

Emulação da "Comédia"
O esquema principal do poema emula o de três partes da "Divina Comédia", que convém ter em mente para compreender a refacção poética de Haroldo. No início da primeira, "Inferno", Dante postou três animais a impedi-lo de seguir pelo reto caminho e obrigando-o a meter-se na brenha escura: a pantera (ligeira, de "gaietta pelle", normalmente interpretada como referência ao belo aspecto da mulher, motivo primeiro da sensualidade e da lascívia); o leão (tradicional símbolo da soberba, do desejo de poder e domínio); e a loba (magra e insaciável, que refere os vícios da avareza e da cobiça). Os animais dantescos, portanto, que afastam da senda da vida cristã, são justamente representantes de vícios associados aos bens da "fortuna": beleza, poder, riqueza.
No "Purgatório", expiando pecados veniais, Dante tem então a visão de três mulheres: uma ruiva, outra verde e outra branca, que figuram as virtudes teologais: fé, esperança e caridade, respectivamente; a elas, ajuntam-se em seguida as virtudes cardeais: justiça, prudência, temperança e fortaleza.
Finalmente, na terceira parte, referente ao "Paraíso", por intermédio da amada Beatriz, que é igualmente sua participação natural em Deus, visualiza todos os graus da ascese mística até o "raptus" extático, do qual as palavras, inanes, já não podem dar conta.
No poema de Haroldo, esse esquema encontra correspondência em três cantos: o primeiro, alusivo a um "ciclo ptolomaico", que contém 40 estrofes; o segundo, destinado à "relação" da evolução da física de Galileu a Einstein, com 39 estrofes; e o terceiro e último, que descreve a "gesta do cosmos" ou, mais especificamente, a hipótese do Big Bang, para o qual se reserva quase uma outra metade do poema, com 73 estrofes, mais a coda de um verso. Os mesmos três animais dantescos estão no início do canto, obrigando-o a tomar o caminho do "sertão" ("mais árduo que floresta/ ao trato"). No terceiro canto, contudo, em vez das mulheres surgem-lhe "3 estrelas" (rubra, branca e negra), que anunciam o "dom" ou "estigma" (105) da "reflexão sem cura" (105); de modo que, é fácil perceber, as virtudes teologais, essencialmente místicas, tornam-se aqui exclusivamente intelectuais, ainda que possam produzir excessos como os que levem à busca de "pêlo em ovo" ou de "chifre na cabeça/ do cavalo" (106). O poema postula-se, assim, como um discurso sobre "o enigma" do universo no limiar do "terceiro milênio" (6; 41), que é ao mesmo tempo o ocaso de uma vida, pois o poeta escreve agora, aos "70 anos" (5; 89), o dobro da idade com que Dante afirma estar "nel mezzo del cammin", afastado da "diritta via". Em contraposição ao medo dantesco diante da vida post mortem e fora da glória celeste, o poeta contemporâneo trata de representar a sua "dúvida" diante do enigma do cosmos, sob o signo da "acídia" (7), entendida, ao mesmo tempo, como fastio em relação às coisas espirituais e melancolia ou tristeza profundas.

Nova cosmofísica
Equivocados aparentemente entre si o enigma da origem universal e a trajetória pessoal, o discurso do poema propõe-se significar, ao mesmo tempo, um "esfingir" do "eu" (6) e um esforço de "desenigmar-se o dilema" (42), sem que isso implique, contudo, qualquer interesse existencial ou psicológico particular em seu desenvolvimento. O poeta é sobretudo glosado como o criador das analogias eloquentes capazes de contar a origem do mundo segundo a "nova cosmofísica" (41) e não como alguém dotado de uma pessoalidade especial. De pessoal, quando muito, há apenas o agnosticismo anunciado e certo desejo de coragem ou valentia (9) diante do desafio comum do início e do fim. A referência explícita aqui é Camões e revela que, a rigor, menos do que pessoal, a "valentia" refere o caráter próprio do tom alto buscado pela composição.


Quando o grande Einstein recua diante das possibilidades de seu próprio jogo, o poeta, ao contrário, lança-se à frente e busca "erguer-se ao mirante" -como Dante, no "Paraíso"


Compreende-se então que é também a virtude da coragem que o poema denuncia faltar em Einstein, quando este, segundo a versão que Haroldo de Campos adota, recua diante do indeterminismo e do princípio da incerteza (72) que ele próprio ajudara a formular, preferindo, como diz o poema, fazer-se de "Spinoza" e repelir a "insurgência" da teoria contra o Criador (79). Esse ponto "paradoxal" (80), em que o criador não é suficientemente rebelde, marca a metade do poema e dá início ao seu terceiro canto. Marca o momento decisivo de separação entre o que se propõe apenas como "prosa" e "relação do descaminho" (81) a propósito da evolução da física e a "gesta" (81) que vem a seguir. Ou seja, quando o grande Einstein recua diante das possibilidades de seu próprio jogo, o poeta, ao contrário, lança-se à frente e busca "erguer-se ao mirante" -como Dante, no "Paraíso", a buscar os últimos graus de sua ascese mística- do qual possa "descortinar" a "gesta do cosmos" (81). Esse "primeiro nexo" é, basicamente, identificado com o Big Bang (84) e com outros lugares do vocabulário -e do anedotário: "Deus não joga dados" (67; 109)- mais conhecido da cosmofísica contemporânea. A partir daí, para desempenhar a "sina" inelutável da reflexão, o poeta convoca uma nova fera: o "lince", cuja vista aguda visa a penetrar os mais altos enigmas. Em termos rápidos, esse poderia ser o enredo de "A Máquina do Mundo Repensada". Em termos igualmente rápidos, penso que o poema dá margem a duas questões principais. A primeira diz respeito à possibilidade efetiva de uma poesia em registro alto ou grave no presente desessencializado e agnóstico, em que, portanto, não há o Deus intelectual de Dante e tampouco as virtudes universais da aristocracia de Camões. Como pensar sequer a "ascese na agnose", como insiste o poema (148.3)? Como sonhar aí uma "épica" que atenda ao "depois do depois" (99)? Nesse momento, cabe decididamente lembrar Drummond, cujo lugar em relação à alegoria de base do poema é ótimo para explicitar a questão. Pois justamente o que a sua versão da "máquina do mundo" radicalmente constata é a idéia de que, num mundo rebaixado, banal e restrito aos limites estreitos da mercadoria, não há mais lugar para nenhuma forma de sublime, ainda que seja o do simples conhecimento, que apenas tem lugar e efeito como sentimento do que se perdeu definitivamente: "Enquanto eu, avaliando o que perdera,/ seguia vagaroso, de mãos pensas". Ou, na versão muito fiel do poema de Haroldo: "Incurioso furtou-se e o canto-chão/ do seu trem-de-viver foi ruminando/ pela estrada de minas sóbrio chão" (35). Exato: num mundo de matéria ruminante e "canto-chão", como supor ainda plausível e sem farsa a "épica" (99.1) ou a "gesta" (81; 114)?

Visão ingênua
Uma segunda questão suscitada pela leitura do poema é a do sentido produzido pela dicção arcaizante da "terza rima" dantesca como analogia da ciência contemporânea. Aqui também o poema de Haroldo de Campos obra no sentido contrário ao de Dante, que toma o antigo e conhecido espaço ptolomaico como alegoria e concordância da ascese hierárquica da escolástica que lhe era contemporânea; e ainda mais contrário ao movimento da composição de Camões, que toma aquilo que em seu tempo já é ciência ultrapassada e a alegoriza como efeito do engenho e da ficção erótica, para demonstrar o valor do canto humanista como derradeira causa da ação heróica.
Com Haroldo de Campos, é fácil ver, tudo se passa diferentemente, pois se trata de uma física recente ou atualíssima sendo referida a partir de versos de marcado sabor antigo. O efeito semântico obtido, graças a esse entrecruzamento particular de tempos e tradições (o terceiro milênio segundo o proto-Renascimento), curiosamente, parece mais ser o de uma visão antiga ou ingênua da ciência, que fantasia ou desrealiza a atualidade, do que o contrário, o de uma injeção na poesia da ultra-pós-modernidade que a física dos quanta parece deter.
Como decorrência dessas duas questões, há uma terceira: a cosmologia contemporânea, desconhecida dos leitores não especialistas na matéria, relida pela analogia de uma tradição literária erudita, cujo requinte é igualmente de âmbito especializado, produz uma dupla restrição hermenêutica. Se é verdade que o poema de Haroldo de Campos pode ser lido como apologia do conhecimento e da contemporaneidade, o que poderia lhe conferir certa vocação iluminista, por outro lado, é altamente técnico, cifrado, alusivo, de modo que o que se divulga é menos o saber que a dificuldade de acesso a ele, menos a ciência que o mistério dos iniciados que a podem dominar. A esse respeito, é particularmente elucidativa a passagem em que o poeta conhece o sentido dos "neutrinos" por meio do "vivo/ transfinito olho azul verde" do físico Mário Schenberg (128; 129), que faz aqui, "malgré lui", as vezes de Beatriz, cujos olhos, cravados no Sol, guiam os do poeta para que façam o mesmo e recebam o influxo divino.

Personagens eleitos
Mas como, aqui, não há Deus, mas agnose, nem há ciência sem a forte restrição do acesso a ela, o que ocorre é que a épica ou gesta, o ensaiado movimento terrível do sublime, ajusta-se ou encolhe-se até a dimensão de uma crônica de personagens eleitos, que guardam amizade entre si. Nessa perspectiva, pode-se falar talvez que o seu primeiro efeito tem algo de um panegírico aos sábios, aos quais, por direito, o poema é ofertado (136). Mas, nesse caso, pergunto-me, incurioso e de mãos pensas, se o que propõe o difícil enigma do futuro, afinal, não é senão o louvor da autoridade, que chancela os diferentes campos do saber. Talvez por desânimo disso, que é muito realista e muito provavelmente nos espera, elejo como minha estrofe favorita a coda -"O nexo o nexo o nexo o nexo o nex" (153)-, na qual o súbito latim do último termo (nex: morte) desata o "nó", sentido último do suposto mistério, na secura da ruína.



A Máquina do Mundo Repensada
104 págs., R$ 30,00 de Haroldo de Campos. Ateliê Editorial (r. Manuel Pereira Leite, 15, CEP 06700-000, SP, tel. 0/xx/11/7922-9666).



Alcir Pécora é professor de literatura na Universidade Estadual de Campinas e autor de "Teatro do Sacramento" (Edusp/Editora da Unicamp).


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