São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2004

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+ brasil 505 d.C.

Eleitor amadureceu ao longo da história, mas incapacidade das classes políticas dirigentes continua sendo um problema

Massas independentes e elites resistentes

Boris Fausto

Há um dado significativo, algo ignorado, na história do Brasil: a vigência e continuidade do processo eleitoral. Da Independência até os dias de hoje -ou seja, durante mais de 182 anos- foram raros os períodos de interrupção. Isso se deu apenas entre 1930 e 1933, quando Getúlio esteve à frente do governo provisório, e durante o Estado Novo (1937-1945). E os 24 anos de regime militar? Nas eleições realizadas nesse período havia muito de farsa (as cassações, os senadores biônicos, a sagração de generais presidentes etc.), mas nem tudo era farsa. Tanto assim que o bipartidarismo acabou se convertendo em instrumento da oposição, quando o MDB, passados os tempos do "milagre econômico", se converteu em aglutinador dos descontentamentos. Uma objeção freqüente, ao lembrar a continuidade do processo eleitoral, é a de que este correspondeu a quase nada, no plano da representação, até anos recentes. Seria absurdo ignorar o caráter limitado e excludente dos sistemas eleitorais e de sua prática, ao longo dos anos. As elites controlaram os cargos de mando nas esferas mais altas; o mecanismo da "degola" imperou na Câmara durante a Primeira República; a massa de escravos estava excluída da vida civil e política; os analfabetos foram barrados a partir da lei Saraiva, de 1881; os currais eleitorais e a fraude imperaram quase sem freios, por muitos e muitos decênios. Ainda assim, o processo eleitoral não era de todo despido de significação, nem os partidos representavam apenas o revezamento de facções no poder. Apesar das formas restritas e viciadas de representação, as eleições foram, por vezes, um instrumento de pressão e de barganha para os homens livres pobres e para a nascente classe média das maiores cidades. No plano partidário, como demonstrou [o historiador] José Murilo de Carvalho, os dois partidos imperiais não representaram a mesmice, como se tornou um lugar-comum afirmar, mas revelaram diferenças programáticas e peculiaridades regionais, ao longo de seus quase 40 anos de existência, ainda que um tema crucial como o da escravidão não dividisse as elites segundo as linhas partidárias. Outro ponto a ser notado é o enorme avanço do corpo eleitoral. Tomemos como ponto de partida a última eleição presidencial da Primeira República (março de 1930), em que se enfrentaram Júlio Prestes e Getúlio Vargas. Essa disputa, marcada pela fraude de ambos os lados, foi de qualquer forma a mais intensa do período, em termos de mobilização e de comparecimento às urnas. Votaram algo em torno de 2 milhões de eleitores, correspondendo a 5,7% da população. Em números de hoje, esse percentual representaria apenas cerca de 10 milhões de eleitores, quando, na realidade, o eleitorado atual é superior a 110 milhões.

Avanços e problemas
Para além do quantitativo, a Justiça Eleitoral, criada em 1932, contribuiu sensivelmente para a chamada lisura dos pleitos, com a gradativa eliminação da fraude, a fixação de regras e a resolução das questões no âmbito jurisdicional adequado. Além disso, as mulheres e bem depois os analfabetos tiveram assegurado o direito ao voto, que se ampliou facultativamente aos maiores de 16 anos. Por fim, nosso sistema eletrônico de votação supera o de vários países desenvolvidos, a começar pelos Estados Unidos, cuja última eleição presidencial é de embaraçosa memória.
Entretanto os avanços estão longe de esgotar os problemas da representação e da consolidação democrática. Em primeiro lugar, a continuidade das eleições não esteve acompanhada pela estabilidade institucional. Tomando como marco inicial as eleições gerais de 1945 até chegar aos nossos dias, constatamos que, nesses quase 60 anos, o país viveu mais de duas décadas de regime militar, o suicídio de um presidente (Getúlio, em 1954) a renúncia de outro (Jânio, em 1961) e o "impeachment" de um terceiro (Collor, em 1992). Mas, apesar dos pesares, nesse plano de argumentação há razões para o otimismo.
Primeiro, porque o "impeachment" foi um momento alto de aplicação das regras constitucionais, numa situação crítica; depois, porque os dois mandatos do presidente Fernando Henrique e a passagem civilizada do poder ao presidente Lula nos permitem sugerir que as instituições tendem a tornar-se mais estáveis.
Outros problemas dizem respeito, de um lado, à qualidade das elites e do atual sistema político; de outro, à passagem complexa de milhões de pessoas da condição de eleitor à de cidadão, no pleno sentido da palavra. Aqui, há razões combinadas de alento e desalento.
Significativamente, o alento vem do eleitorado, em grande maioria pobre, de reduzida ou nenhuma educação formal, com acesso apenas a programas de televisão no mais das vezes bestificantes, sujeito ao jogo esperto dos marqueteiros. Apesar dessas condições tão desfavoráveis, com o correr dos anos a massa de votantes tem-se revelado mais independente, passando por cima das máquinas partidárias, em alguns casos, e condenando ao ostracismo velhos caciques, em outros.
O desalento vem das elites, em particular da elite política, cuja qualidade, para dizer o menos, é ruim, guardadas as honrosas exceções de sempre. Entre outras coisas, cabe a ela a responsabilidade pelas aberrações de nosso sistema político, cuja reforma vem sendo adiada pelos anos afora. É certo que, se uma reforma não é uma panacéia, ela poderia promover regras tendentes a reduzir as mazelas do sistema, entre elas o troca-troca desmoralizador de legendas ou o triste espetáculo protagonizado pelos partidos de aluguel.
Uma sugestão geral pode ser extraída dessas considerações. Se o Brasil não tem uma história muito dignificante, seu passado não se compõe apenas de uma sucessão de processos históricos e instituições que deixaram um fardo pesado, como é o caso da escravidão. Na área da representação política e das instituições liberais, entenderemos melhor o país se abandonarmos a visão negativa e introduzirmos o claro-escuro, que não se presta a chavões enganosos e abre caminho para uma visão mais equilibrada.


Boris Fausto é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 1930" (Companhia das Letras). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 505 d.C." (depois de Cabral), do Mais!.


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