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A consciência da música
Leia prefácio do compositor austríaco para seus "Exercícios Preliminares em Contraponto", que estão sendo lançados nesta semana pela editora Via Lettera
por Arnold Schoenberg
O contraponto é, na maioria das vezes, considerado uma espécie de ciência, um tipo de teoria
ou estética; assim sendo, aquele que o estuda
espera aprender leis indiscutíveis de arte musical. Esta visão teria sido praticamente correta no passado. Quando a arte contrapontística era o estilo musical por excelência, e professores, teóricos e estetas haviam realizado um trabalho meritório não apenas de
elaborar com precisão as leis que nos conduziam com
sucesso ao caminho certo, mas também de estabelecer o
método pedagógico para treinar o iniciante de maneira
confiável -naquela época teria sido impossível imaginar o que aconteceria depois, quando tais leis já não
mostravam tudo o que diz respeito à arte musical. Mas
se seguiu outro tempo, em que, em todos os aspectos,
leis completamente diferentes começaram realmente a
dominar a produção musical.
Já na obra de J.S. Bach, muitas das antigas leis e regras
foram refutadas. Não é simplesmente por ter utilizado
apenas excepcionalmente os modos da igreja, preferindo, em vez disso, escrever nos modos maior e menor
modernos, mas também por ter desenvolvido e tornado muito mais livre o que seus antepassados consideravam dissonâncias. Ele se utilizou de acordes de sétima e
de nona, ampliou a idéia de notas de passagem e alterou
muitas outras restrições a partir de um novo conceito
de sentimento melódico. Posteriormente, em Brahms,
por exemplo, e especialmente em Wagner, essa mudança foi tão radical e a face musical transformou-se de tal
maneira que, por algum tempo, parecia totalmente
anacrônico estudar qualquer forma de contraponto.
Entretanto, devido a isso, nem todas as consequências
foram positivas. Surgiram teorias baseadas no desconcertante desenvolvimento de técnicas da harmonia que
tentaram, ao máximo, reconciliar o estilo contrapontístico ao harmônico/ homofônico, o que resultou na ruína de ambos. Privando a harmonia da consciência dos
graus básicos, essas teorias, por um lado, degradaram o
contraponto a uma mera arte da condução de vozes e,
por outro, a uma simples polifonia acrescentada a uma
harmonia preconcebida. Foi posta, assim, em dúvida a
verdadeira natureza da arte do contraponto.
Enquanto o contraponto for a arte do uso de um motivo básico, uma frase, combinação ou idéia de qualquer espécie -a fim de compor música sem utilizar o
método ulterior da variação-, a questão será resolvida,
é claro, por meio de partes independentes. Mas a grande quantidade de partes não é o que torna uma obra
contrapontística mais importante do que outra composta de um menor número. Além disso, e acima de tudo, tal como o atestam muitos teóricos da velha escola, a
harmonia resulta do movimento inteligente das partes
independentes, emprestando colorido e significado
umas às outras devido às suas mudanças verticais. De
acordo com essa observação, a harmonia, enriquecida
pelas partes em movimento, mas atada aos graus, não
poderia, por um lado, cumprir essa tarefa e, por outro, o
seu necessário desenvolvimento, estimulado pela questão fundamental das progressões em movimento, jamais poderia entrar em acordo com as demandas das
partes independentes.
Método de treinamento Por tudo isso, a teoria
do contraponto será tratada, aqui, de forma totalmente
diferente. Não será considerada, de modo algum, uma
teoria, mas um método de treinamento, cujo propósito
principal será ensinar o aluno de forma a torná-lo apto a
utilizar posteriormente seu conhecimento quando
compuser.
Assim sendo, será aqui visado não apenas o desenvolvimento da habilidade do aluno na condução de vozes,
mas também a sua introdução aos princípios propriamente artísticos e composicionais, de modo que ele reconheça até que ponto esses princípios são duradouros
na arte. Consequentemente não haverá espaço, aqui,
para leis eternas. Sabendo que as leis do contraponto
têm sido negadas pelo desenvolvimento de nossa arte,
aqui só serão dadas sugestões que, de forma mais ou
menos estrita, irão se modificar apenas de acordo com
o ponto de vista didático.
Contraponto não é nem estética, nem teoria, mas um
meio pedagógico de treinamento. Não pode haver dúvida alguma de que, após dois séculos de desenvolvimento das formas homofônicas e de uma harmonia
muito complexa, os pensamentos musicais de nosso
tempo não são contrapontísticos, mas melódico/homofônico/harmônicos. Não deve haver dúvida quanto ao
fato de estarmos expressando nossos sentimentos musicais de um modo muito mais flexível e variado do que
o requer a arte contrapontística. Não deve haver dúvida
de que não restringiremos nosso conhecimento de harmonia, praticamente, ao ponto zero, por conta das necessidades do método contrapontístico em relação ao
desenvolvimento de uma idéia musical. Consequentemente, não há dúvida de que as regras e leis desta arte
não parecerão mais imutáveis ao nosso intelecto. Mas,
onde quer que as utilizemos, iremos percebê-las sob
uma ótica diferente: nossas leis, restrições, defesas, advertências e até mesmo sugestões terão o propósito de
conduzir gradualmente o aluno das formas mais simples às mais complexas; e esse é o motivo, por um lado,
de as criarmos, e, por outro, de reduzirmos, também
gradativamente, o seu rigor até que elas correspondam,
senão ao que o sentimento harmônico de nossa era requer, pelo menos ao sentimento harmônico de, por
exemplo, um Brahms ou um Wagner.
Velho estilo Basear o ensino do contraponto em
Palestrina é tão estúpido quanto basear o ensino de medicina em Esculápio. Nada poderia estar mais distante
das idéias contemporâneas, tanto estrutural quanto
ideologicamente, do que o estilo deste compositor.
Além disso, sua técnica contrapontística não é de forma
nenhuma superior à dos compositores holandeses e
nem sequer apresenta os problemas mais difíceis e suas
soluções descobertas logo após sua morte. Talvez não
seja totalmente equivocada a suposição de que um aluno, tendo uma vez "sentido a satisfação proveniente da
perfeição, jamais irá esquecê-la". Mas, por um lado, por
que deveria ele tentar escrever imitações imperfeitas de
um estilo, quando pode sentir a emanação da perfeição
das obras do autor mais do que de seus próprios rabiscos? E, por outro, não há maior perfeição musical do
que em Bach! Nem Beethoven ou Haydn, nem mesmo
Mozart, que dela mais se aproximou, jamais conquistaram essa perfeição. Mas parece que tal perfeição não resulta em um estilo que o aluno possa imitar. Essa perfeição é a da Idéia, da concepção básica, não a da elaboração. A última é somente a consequência natural da profundidade da idéia, e isso não pode ser imitado, tampouco ensinado.
"Exercícios Preliminares em Contraponto", de Arnold Schoenberg.
Tradução de Eduardo Seincman. Ed. Via Lettera (tel. 0/xx/11/3862-0760), 257 págs., R$ 35,50.
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