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Leia prefácio inédito do ensaísta para nova edição de "Sentimento do Mundo"
Vontade e corrosão na poesia de Drummond
Não há por que buscar na poesia de Drummond os jogos clássicos de oposição entre o local e o universal, tão ao gosto dos escritores e críticos das literaturas periféricas ou emergentes
por Silviano Santiago
"Portanto, é possível distribuir minha solidão, torná-la meio de conhecimento."
Carlos Drummond de Andrade, "América"
O mundo -o sentimento que
dele tem o poeta- pode ser
uma abstração, como, aliás, o
foi no poema que abre "Alguma Poesia", primeira coleção de versos
de Carlos Drummond de Andrade. Ali, o
mundo aparecia sob a forma de sortilégio da vontade individual, bem ao gosto
das vanguardas do início do século. Recordemos: "Mundo mundo vasto mundo./ Se eu me chamasse Raimundo/ seria
uma rima não seria uma solução". Já o
sentimento do mundo -no livro que leva por título essa expressão- é objetivo
e material, visceralmente político.
O sentimento do mundo passa a estar
na imanência do corpo solitário e rebelde do poeta ("Tenho Apenas Duas
Mãos"), na premência da vida presente e
da solidariedade entre os homens (ver o
poema "Mãos Dadas"), na urgência da
luta de classes ("Para onde vai o operário? Teria vergonha de chamá-lo meu irmão."), na violência da guerra contra Hitler ("O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos"), na iminência da revolução socioeconômica
("-Ó vida futura! nós te criaremos") e
na ardência da utopia socialista ("Aurora,/ entretanto, eu te diviso, ainda tímida,/ inexperiente das luzes que vais acender/ e dos bens que repartirás com todos os homens.").
Na terceira coleção de versos de Carlos
Drummond, publicada em 1940, o sentimento do mundo se manifesta também
pelas palavras tristes, adornadas por
"flores amarelas e medrosas", de um
"madrigal lúgubre". O sentimento do
mundo se nega a pactuar com um mundo e com homens que, por artimanhas
da macroeconomia rearticulada pelo capital desde a Grande Depressão, perderam a força e o viço ("Não serei o poeta
de um mundo caduco"). Nega-se a aceitar a falta de remédio para o que remédio
tem. Nega-se a conviver com a razão dos
suicidas em potencial. Nega-se, finalmente, a aceitar, sem gritar, uma imagem sofrida que se tornou única e simbólica da atualidade -a do menino que
chora na noite. O sentimento do mundo
pode vir também do mais profundo da
noite que toma conta das metrópoles,
trazendo para os homens a incompreensão e a desesperança. É sombria e pessimista a visão de mundo que se justapõe à
esperança da revolução e da utopia. O
poeta pode querer se recolher a uma "casa de cadáveres". Só ali -acredita passageiramente- esquecerá "o jornal sujo
embrulhando fatos, homens e comida
guardada...".
Fotografias intoleráveis No nosso tempo, o sentimento do mundo não
poderia ser diferente. As várias facetas
oblíquas que o constituem obedecem a
uma única ordem, imperadora: "Chegou
o tempo em que a vida é uma ordem./ A
vida apenas, sem mistificação". Nem o
verme conseguiu roer "o imortal soluço
de vida que rebentava" do "álbum de fotografias intoleráveis".
Ao poeta maduro, consciente do seu
ofício e da sua função, compete a tarefa
de dar forma concreta e atual, complexa,
à abstração de mundo, que, na sua poesia
anterior, se expressava de maneira irônica e, na fala corrente dos mortais, se expressa de maneira alienada. Ao transformar o mundo em objeto abstrato, ao caracterizá-lo como enleio seu ou nosso, o
poeta tornava a ele e ao sujeito que o
enunciava exóticos. Ou seja: em "Alguma Poesia" e na fala comum, o mundo é
objeto tão exótico quanto o será o cidadão brasileiro caso nele não seja incluído
de maneira crítica.
Daí advém, nos dois livros anteriores a
"Sentimento do Mundo", o sentido progressista, já que antiufanista, da negação
e da pergunta iconoclastas: "Nenhum
Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?". Já o livro que iremos ler, que reúne
poemas escritos sintomaticamente entre
1935 e 1940, inaugura uma nova fase na
poesia de Carlos Drummond de Andrade. Referendemo-la na passagem do
pronome eu ao pronome nós, na cumplicidade entre poeta e leitor: "Não serei o
poeta de um mundo caduco. (...) O presente é tão grande, não nos afastemos./
Não nos afastemos muito, vamos de
mãos dadas".
A descoberta do mundo -e do complexo porque multifacetado sentimento
que inflama a sensibilidade do poeta-
se dá por um arriscado e definitivo mergulho no Brejo das Almas, nome de cidade que serve de título para a segunda coleção de poemas de Drummond. Brejo
das Almas, nos diz a epígrafe do livro,
"nada significa e nenhuma justificativa
oferece". E é ainda nessa simbólica cidadezinha mineira, antes do mergulho, que
o poeta enunciará a irremissível atração
pelo chamado feminino e sedutor que
chega do outro lado do vasto mundo. O
canto da sereia -como está no poema
"Oceania"- foi-lhe entoado por "certa
menina enfezada/ para lá dos mares do
sul". Com palavras certeiras, das ilhas Fiji, a moça dá por encerrada a primeira fase da poesia de Carlos Drummond: "fique quieto/ que depois da Oceania/ o
mundo acaba... e que a praia/ é só areia e
silêncio". Assim foi que a menina enfezada entoou para o poeta o impasse do
amor impossível e os limites do mundo
abstrato ou exótico, "docemente pornográfico", para ficar com dois vocábulos
de outro poema.
Essa praia da Oceania, para onde foge a
imaginação provinciana, não encontrará
paralelo em "Sentimento do Mundo".
Aqui terá, quando muito, o seu sucedâneo pelo avesso desconstrutor. Nas
areias quentes do Leblon carioca, praia
da pseudoliberação pelo prazer, os sentimentos reclusos do corpo jovem enganam vista e vida, ao mesmo tempo em
que entorpecem raciocínio e memória.
Leiamos o final do poema "Os Inocentes
do Leblon" e recordemos, em contraponto, os versos da menina enfezada de
Fiji: "Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram,/ mas a areia é
quente, e há um óleo suave/ que eles passam nas costas, e esquecem".
O mergulho abissal dado pelo poeta no
brejo das almas não significa, no entanto,
a busca desvairada pelo cosmopolitismo
absoluto. Pelo contrário. O lugar de onde
o mergulhador atrevido salta para o
mundo vem sempre marcado em "Sentimento do Mundo" como o da margem
itabirana, ou mineira. Quem diz margem
enuncia a origem ("Principalmente nasci
em Itabira"), também enuncia a perspectiva socioeconômica da observação
("Tive ouro, tive gado, tive fazendas. Hoje sou funcionário público") e, finalmente, enuncia o patamar onde se exercem a
autocrítica e a crítica ("sou triste, orgulhoso: de ferro"). Por isso, no interior da
visão concreta e cosmopolita, que brota
inarredável de "Sentimento do Mundo",
exala, como adocicado perfume de dama-da-noite, a "Confidência do Itabirano". Sem o poema e/ou as confidências,
o mundo objetivo e material, multifacetado e cosmopolita, descrito na terceira
coletânea de versos do poeta, seria apenas e definitivamente o avesso do exotismo ufanista. Cosmopolitismo que seria,
em última instância, mera fancaria de
poetastro.
Não há, pois, por que buscar na poesia
de Carlos Drummond os jogos clássicos
de oposição entre o local e o universal,
tão ao gosto dos escritores e críticos das
literaturas periféricas ou emergentes.
Entre região e mundo, nem equilíbrios
nem desequilíbrios, nem compromissos
nem contradições complementares. Depois de Machado de Assis, Drummond
com o seu sentimento do mundo é quem
tem uma visão simultânea e responsável
dos acontecimentos sociopolíticos e econômicos no planeta Terra. Vale dizer:
sua poesia expressa certa certeza sobre o
espaço e a geografia mundiais, sobre o
tempo e a história universais. (Na escrita
de Machado e Drummond, intelectuais
que recusaram os prazeres da viagem
transcontinental para melhor e mais lucidamente viajarem pelo espaço e pelo
tempo, a visão de mundo expressa pela
dupla simultaneidade só pode ser coisa
de bruxo da linguagem.)
Em poema de "A Rosa do Povo",
Drummond descreverá a cidade natal
como sendo uma única rua universal, à
semelhança da imagem que se encontra
ao final dos filmes clássicos de Carlitos:
"Uma rua começa em Itabira, que vai dar
em qualquer parte da terra./ Nessa rua
passam chineses, índios, negros, mexicanos, turcos, uruguaios". Em poema do livro "José", Drummond sintetizará no
nome duma outra rua, agora a parisiense
rue du Regard, a rua itabirana: "Vem, farol tímido,/ dizer-nos que o mundo/ de
fato é restrito,/ cabe num olhar". A cidade é coisa pública e universal.
Em "Sentimento do Mundo", Itabira é
o lugar dos acontecimentos simultâneos,
e o poeta, seu privilegiado observador.
Nisso a cidade se assemelha ao jornal
diário, e o poeta, ao leitor crítico. Lugar
privilegiado de espreita e escuta, de arregimentação e camaradagem, de miséria
e denúncia, de choro e medo, de revelações e clamor, Itabira é o centro da margem do mundo capitalista. Ali, no pulsar
do coração solitário do poeta, se aproximam e se congregam todos os que estão
sendo despossuídos pela centralização
de uma economia injusta. E são legião.
Estão todos empenhados nas múltiplas e
paralelas batalhas contemporâneas de liberação: "Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição/ porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha
de Manhattan". Natural que o poeta abdique dos valores de classe para poder
entender a direção para a qual o operário
aponta ao caminhar.
Ignorância e certeza "Para onde vai ele, pisando assim tão firme?", pergunta o poeta. E logo responde: "Não
sei". Na sua caminhada, o operário ignora os fios telegráficos que o poeta não ignora. A ignorância de um é a certeza do
outro. Se escutasse os fios telegráficos, o
operário ouviria "mensagens, que contam da Rússia, do Araguaia, dos Estados
Unidos". Só o poeta as escuta e, por isso,
maior é a sua curiosidade pelo destino
do operário. Volta a perguntar: "Para
onde vai o operário?". Entre a ignorância
de um e a lucidez do outro, entre a classe
social de um e a do outro, sobressai a diferença irreconciliável. Buscamos o mesmo fim, mas, entre nós, o abismo. A resposta à pergunta é outra: "Teria vergonha de chamá-lo meu irmão. Ele sabe
que não é, nunca foi meu irmão, que não
nos entenderemos nunca. E me despreza... Ou talvez seja eu próprio que me
despreze a seus olhos". O populismo (de
Vargas, de Perón, de Hitler ou qualquer
outro) pode aproximar ilusoriamente
poeta e operário, obrigando este a aceitar
as idéias que não são dele, mas as do ditador. A lucidez ideológica, por sua vez, ao
fingir ignorar o mundo das idéias, pode
levar à santificação do operário na ignorância dele, tornando-o guia e mentor de
coisas já sabidas.
Santificação A recusa ao populismo levaria à santificação do operário? Eis que ele caminha sobre as ondas do mar.
Anota o poeta: "Eu pensava que isso fosse privilégio de alguns santos e de navios". No momento em que o operário
busca o fim da caminhada fora da terra
firme é que surge uma espécie de comunicação entre observador e observado.
Nada de palavras. Um sorriso distante.
Apenas um sorriso úmido. O poeta interpreta o sorriso já que lhe faltam as palavras de comunicação: "Único e precário agente de ligação entre nós, seu sorriso cada vez mais frio atravessa as grandes
massas líquidas, choca-se contra as formações salinas, as fortalezas da costa, as
medusas, atravessa tudo e vem beijar-me
o rosto, trazer-me uma esperança de
compreensão". Enorme surge a constatação final: "Quem sabe se um dia o compreenderei?".
"Sentimento do Mundo" permanece
livro inigualável. Tanto pela minuciosa e
intrincada descrição de um tempo que é,
infelizmente, o nosso tempo, como ainda por dramatizar de forma contundente
e original os percalços de uma vontade
revolucionária que, ao querer se desvencilhar do papel escrito, se esboroa em
madrigais lúgubres e congressos internacionais do medo. Vontade revolucionária que, ao se esbater contra o dobre de
sinos do final de século e de milênio, perde o próprio sentido de ser numa história que foi pouco a pouco corroendo as
suas premissas mais alvissareiras. O poeta previu o destino do seu livro: "Lagarta
mole que escreves a história,/ escreve
sem pressa mais esta história:/ o chão está verde de lagartas mortas.../ Adeus,
princesa, até outra vida".
Silviano Santiago é escritor, poeta e crítico de literatura, autor de "Em Liberdade", "Keith Jarret no
Blue Note", "Stella Manhattan" (Rocco) e "Nas Malhas da Letra" (Cia. das Letras), entre outros.
Autor será reeditado
A editora Record planeja reeditar grande parte da obra de Carlos Drummond de Andrade. Na primeira semana de março, chegam às livrarias os livros "Alguma Poesia",
"Brejo das Almas", "Sentimento do Mundo" e "A Rosa do Povo". Outros livros serão
lançados, sem periodicidade definida, até outubro de 2002, data do centenário de
nascimento do poeta.
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