São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 2001

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Leia prefácio inédito do ensaísta para nova edição de "Sentimento do Mundo"

Vontade e corrosão na poesia de Drummond

Não há por que buscar na poesia de Drummond os jogos clássicos de oposição entre o local e o universal, tão ao gosto dos escritores e críticos das literaturas periféricas ou emergentes

por Silviano Santiago

"Portanto, é possível distribuir minha solidão, torná-la meio de conhecimento."
Carlos Drummond de Andrade, "América"

O mundo -o sentimento que dele tem o poeta- pode ser uma abstração, como, aliás, o foi no poema que abre "Alguma Poesia", primeira coleção de versos de Carlos Drummond de Andrade. Ali, o mundo aparecia sob a forma de sortilégio da vontade individual, bem ao gosto das vanguardas do início do século. Recordemos: "Mundo mundo vasto mundo./ Se eu me chamasse Raimundo/ seria uma rima não seria uma solução". Já o sentimento do mundo -no livro que leva por título essa expressão- é objetivo e material, visceralmente político.
O sentimento do mundo passa a estar na imanência do corpo solitário e rebelde do poeta ("Tenho Apenas Duas Mãos"), na premência da vida presente e da solidariedade entre os homens (ver o poema "Mãos Dadas"), na urgência da luta de classes ("Para onde vai o operário? Teria vergonha de chamá-lo meu irmão."), na violência da guerra contra Hitler ("O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos"), na iminência da revolução socioeconômica ("-Ó vida futura! nós te criaremos") e na ardência da utopia socialista ("Aurora,/ entretanto, eu te diviso, ainda tímida,/ inexperiente das luzes que vais acender/ e dos bens que repartirás com todos os homens.").
Na terceira coleção de versos de Carlos Drummond, publicada em 1940, o sentimento do mundo se manifesta também pelas palavras tristes, adornadas por "flores amarelas e medrosas", de um "madrigal lúgubre". O sentimento do mundo se nega a pactuar com um mundo e com homens que, por artimanhas da macroeconomia rearticulada pelo capital desde a Grande Depressão, perderam a força e o viço ("Não serei o poeta de um mundo caduco"). Nega-se a aceitar a falta de remédio para o que remédio tem. Nega-se a conviver com a razão dos suicidas em potencial. Nega-se, finalmente, a aceitar, sem gritar, uma imagem sofrida que se tornou única e simbólica da atualidade -a do menino que chora na noite. O sentimento do mundo pode vir também do mais profundo da noite que toma conta das metrópoles, trazendo para os homens a incompreensão e a desesperança. É sombria e pessimista a visão de mundo que se justapõe à esperança da revolução e da utopia. O poeta pode querer se recolher a uma "casa de cadáveres". Só ali -acredita passageiramente- esquecerá "o jornal sujo embrulhando fatos, homens e comida guardada...".

Fotografias intoleráveis No nosso tempo, o sentimento do mundo não poderia ser diferente. As várias facetas oblíquas que o constituem obedecem a uma única ordem, imperadora: "Chegou o tempo em que a vida é uma ordem./ A vida apenas, sem mistificação". Nem o verme conseguiu roer "o imortal soluço de vida que rebentava" do "álbum de fotografias intoleráveis".
Ao poeta maduro, consciente do seu ofício e da sua função, compete a tarefa de dar forma concreta e atual, complexa, à abstração de mundo, que, na sua poesia anterior, se expressava de maneira irônica e, na fala corrente dos mortais, se expressa de maneira alienada. Ao transformar o mundo em objeto abstrato, ao caracterizá-lo como enleio seu ou nosso, o poeta tornava a ele e ao sujeito que o enunciava exóticos. Ou seja: em "Alguma Poesia" e na fala comum, o mundo é objeto tão exótico quanto o será o cidadão brasileiro caso nele não seja incluído de maneira crítica.
Daí advém, nos dois livros anteriores a "Sentimento do Mundo", o sentido progressista, já que antiufanista, da negação e da pergunta iconoclastas: "Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?". Já o livro que iremos ler, que reúne poemas escritos sintomaticamente entre 1935 e 1940, inaugura uma nova fase na poesia de Carlos Drummond de Andrade. Referendemo-la na passagem do pronome eu ao pronome nós, na cumplicidade entre poeta e leitor: "Não serei o poeta de um mundo caduco. (...) O presente é tão grande, não nos afastemos./ Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas".
A descoberta do mundo -e do complexo porque multifacetado sentimento que inflama a sensibilidade do poeta- se dá por um arriscado e definitivo mergulho no Brejo das Almas, nome de cidade que serve de título para a segunda coleção de poemas de Drummond. Brejo das Almas, nos diz a epígrafe do livro, "nada significa e nenhuma justificativa oferece". E é ainda nessa simbólica cidadezinha mineira, antes do mergulho, que o poeta enunciará a irremissível atração pelo chamado feminino e sedutor que chega do outro lado do vasto mundo. O canto da sereia -como está no poema "Oceania"- foi-lhe entoado por "certa menina enfezada/ para lá dos mares do sul". Com palavras certeiras, das ilhas Fiji, a moça dá por encerrada a primeira fase da poesia de Carlos Drummond: "fique quieto/ que depois da Oceania/ o mundo acaba... e que a praia/ é só areia e silêncio". Assim foi que a menina enfezada entoou para o poeta o impasse do amor impossível e os limites do mundo abstrato ou exótico, "docemente pornográfico", para ficar com dois vocábulos de outro poema.
Essa praia da Oceania, para onde foge a imaginação provinciana, não encontrará paralelo em "Sentimento do Mundo". Aqui terá, quando muito, o seu sucedâneo pelo avesso desconstrutor. Nas areias quentes do Leblon carioca, praia da pseudoliberação pelo prazer, os sentimentos reclusos do corpo jovem enganam vista e vida, ao mesmo tempo em que entorpecem raciocínio e memória. Leiamos o final do poema "Os Inocentes do Leblon" e recordemos, em contraponto, os versos da menina enfezada de Fiji: "Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram,/ mas a areia é quente, e há um óleo suave/ que eles passam nas costas, e esquecem".
O mergulho abissal dado pelo poeta no brejo das almas não significa, no entanto, a busca desvairada pelo cosmopolitismo absoluto. Pelo contrário. O lugar de onde o mergulhador atrevido salta para o mundo vem sempre marcado em "Sentimento do Mundo" como o da margem itabirana, ou mineira. Quem diz margem enuncia a origem ("Principalmente nasci em Itabira"), também enuncia a perspectiva socioeconômica da observação ("Tive ouro, tive gado, tive fazendas. Hoje sou funcionário público") e, finalmente, enuncia o patamar onde se exercem a autocrítica e a crítica ("sou triste, orgulhoso: de ferro"). Por isso, no interior da visão concreta e cosmopolita, que brota inarredável de "Sentimento do Mundo", exala, como adocicado perfume de dama-da-noite, a "Confidência do Itabirano". Sem o poema e/ou as confidências, o mundo objetivo e material, multifacetado e cosmopolita, descrito na terceira coletânea de versos do poeta, seria apenas e definitivamente o avesso do exotismo ufanista. Cosmopolitismo que seria, em última instância, mera fancaria de poetastro.
Não há, pois, por que buscar na poesia de Carlos Drummond os jogos clássicos de oposição entre o local e o universal, tão ao gosto dos escritores e críticos das literaturas periféricas ou emergentes. Entre região e mundo, nem equilíbrios nem desequilíbrios, nem compromissos nem contradições complementares. Depois de Machado de Assis, Drummond com o seu sentimento do mundo é quem tem uma visão simultânea e responsável dos acontecimentos sociopolíticos e econômicos no planeta Terra. Vale dizer: sua poesia expressa certa certeza sobre o espaço e a geografia mundiais, sobre o tempo e a história universais. (Na escrita de Machado e Drummond, intelectuais que recusaram os prazeres da viagem transcontinental para melhor e mais lucidamente viajarem pelo espaço e pelo tempo, a visão de mundo expressa pela dupla simultaneidade só pode ser coisa de bruxo da linguagem.)
Em poema de "A Rosa do Povo", Drummond descreverá a cidade natal como sendo uma única rua universal, à semelhança da imagem que se encontra ao final dos filmes clássicos de Carlitos: "Uma rua começa em Itabira, que vai dar em qualquer parte da terra./ Nessa rua passam chineses, índios, negros, mexicanos, turcos, uruguaios". Em poema do livro "José", Drummond sintetizará no nome duma outra rua, agora a parisiense rue du Regard, a rua itabirana: "Vem, farol tímido,/ dizer-nos que o mundo/ de fato é restrito,/ cabe num olhar". A cidade é coisa pública e universal.
Em "Sentimento do Mundo", Itabira é o lugar dos acontecimentos simultâneos, e o poeta, seu privilegiado observador. Nisso a cidade se assemelha ao jornal diário, e o poeta, ao leitor crítico. Lugar privilegiado de espreita e escuta, de arregimentação e camaradagem, de miséria e denúncia, de choro e medo, de revelações e clamor, Itabira é o centro da margem do mundo capitalista. Ali, no pulsar do coração solitário do poeta, se aproximam e se congregam todos os que estão sendo despossuídos pela centralização de uma economia injusta. E são legião. Estão todos empenhados nas múltiplas e paralelas batalhas contemporâneas de liberação: "Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição/ porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan". Natural que o poeta abdique dos valores de classe para poder entender a direção para a qual o operário aponta ao caminhar.

Ignorância e certeza "Para onde vai ele, pisando assim tão firme?", pergunta o poeta. E logo responde: "Não sei". Na sua caminhada, o operário ignora os fios telegráficos que o poeta não ignora. A ignorância de um é a certeza do outro. Se escutasse os fios telegráficos, o operário ouviria "mensagens, que contam da Rússia, do Araguaia, dos Estados Unidos". Só o poeta as escuta e, por isso, maior é a sua curiosidade pelo destino do operário. Volta a perguntar: "Para onde vai o operário?". Entre a ignorância de um e a lucidez do outro, entre a classe social de um e a do outro, sobressai a diferença irreconciliável. Buscamos o mesmo fim, mas, entre nós, o abismo. A resposta à pergunta é outra: "Teria vergonha de chamá-lo meu irmão. Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca. E me despreza... Ou talvez seja eu próprio que me despreze a seus olhos". O populismo (de Vargas, de Perón, de Hitler ou qualquer outro) pode aproximar ilusoriamente poeta e operário, obrigando este a aceitar as idéias que não são dele, mas as do ditador. A lucidez ideológica, por sua vez, ao fingir ignorar o mundo das idéias, pode levar à santificação do operário na ignorância dele, tornando-o guia e mentor de coisas já sabidas.

Santificação A recusa ao populismo levaria à santificação do operário? Eis que ele caminha sobre as ondas do mar. Anota o poeta: "Eu pensava que isso fosse privilégio de alguns santos e de navios". No momento em que o operário busca o fim da caminhada fora da terra firme é que surge uma espécie de comunicação entre observador e observado. Nada de palavras. Um sorriso distante. Apenas um sorriso úmido. O poeta interpreta o sorriso já que lhe faltam as palavras de comunicação: "Único e precário agente de ligação entre nós, seu sorriso cada vez mais frio atravessa as grandes massas líquidas, choca-se contra as formações salinas, as fortalezas da costa, as medusas, atravessa tudo e vem beijar-me o rosto, trazer-me uma esperança de compreensão". Enorme surge a constatação final: "Quem sabe se um dia o compreenderei?".
"Sentimento do Mundo" permanece livro inigualável. Tanto pela minuciosa e intrincada descrição de um tempo que é, infelizmente, o nosso tempo, como ainda por dramatizar de forma contundente e original os percalços de uma vontade revolucionária que, ao querer se desvencilhar do papel escrito, se esboroa em madrigais lúgubres e congressos internacionais do medo. Vontade revolucionária que, ao se esbater contra o dobre de sinos do final de século e de milênio, perde o próprio sentido de ser numa história que foi pouco a pouco corroendo as suas premissas mais alvissareiras. O poeta previu o destino do seu livro: "Lagarta mole que escreves a história,/ escreve sem pressa mais esta história:/ o chão está verde de lagartas mortas.../ Adeus, princesa, até outra vida".


Silviano Santiago é escritor, poeta e crítico de literatura, autor de "Em Liberdade", "Keith Jarret no Blue Note", "Stella Manhattan" (Rocco) e "Nas Malhas da Letra" (Cia. das Letras), entre outros.

Autor será reeditado

A editora Record planeja reeditar grande parte da obra de Carlos Drummond de Andrade. Na primeira semana de março, chegam às livrarias os livros "Alguma Poesia", "Brejo das Almas", "Sentimento do Mundo" e "A Rosa do Povo". Outros livros serão lançados, sem periodicidade definida, até outubro de 2002, data do centenário de nascimento do poeta.



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