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O sociólogo José de Souza Martins contesta resenha do historiador Marco Villa
Dilemas de interpretação
José de Souza Martins
especial para a Folha
Na edição do Mais! de 11 de fevereiro, Marco
Antonio Villa apresenta como resenha de
meu livro "Reforma Agrária - O Impossível
Diálogo" (Edusp) uma crônica tendenciosa
que pede resposta. Ele desperdiçou uma boa oportunidade de dar uma demonstração de competência teórica, perdendo-se num emaranhado de considerações
simplistas sobre o livro, o autor e o MST, fazendo ilações descabidas e julgamentos pessoais temerários.
As dificuldades de leitura de Villa são compreensíveis.
Ele se sentiu alcançado pela crítica que no livro faço à
interpretação maniqueísta e fundamentalista dos fatos
relativos à reforma agrária, o que fica evidente no método de sua crônica: para ele, o mundo do conhecimento sobre essa sociedade está pobremente dividido entre os
que optam pelo MST e os que optam pelo governo. Ele
recorta arbitrariamente os temas, seleciona o que lhe interessa, junta o que não está junto e monta um discurso
ideológico sobre aquilo que lhe convém dizer. Villa não
entendeu que meu livro não é um livro sobre reforma
agrária. É um livro, no campo da sociologia do conhecimento, que trata do impossível diálogo sobre a reforma
agrária. É uma proposta de compreensão sociológica da
incompreensão. É uma análise, portanto, do modo de
conhecer a questão agrária por parte de seus diferentes
protagonistas.
Villa leu o livro ansioso por encontrar nele a contestação da legitimidade da ação do MST e da CPT (Comissão Pastoral da Terra). Como não a encontrou, tratou
de produzi-la recortando e suprimindo aspectos importantes do livro, suprimindo até mesmo a sua tese
fundamental. O que está em discussão no livro é a situação e o destino dos trabalhadores rurais e sua contradição mais aguda no contexto da militância e da ação política: o campesinato, especialmente os acampados e os
assentados dos programas de reforma agrária, dirigidos
ou não pelo MST, age em defesa de valores do conservadorismo clássico: terra, trabalho, família, religião e comunidade. É o que constitui o cerne de sua utopia e justifica sua luta pela terra de trabalho. A decorrente crítica
ao MST e à CPT é justamente esta: como conciliar esses
valores da tradição conservadora com a ideologia e a retórica das agências de mediação, baseadas nas concepções leninistas do papel revolucionário da classe operária, que indevidamente atribuem ao campesinato?
Justamente, por isso, um tema essencial do livro é o
desencontro entre a luta pela terra de trabalho (a utopia), que é a luta dos trabalhadores, e a luta por uma reforma agrária (e a ideologia em que ela se apóia), que é a
luta das agências de mediação. Portanto, se há um desencontro entre essas agências e o governo, no que à reforma agrária se refere, é um desencontro sobre a forma
da reforma e não quanto a estar ou não o governo fazendo reforma agrária ou se omitindo quanto à necessidade e à urgência dessa reforma.
Esse desencontro esconde outro: o desencontro entre
o projeto revolucionário dos militantes das agências de
mediação política da reforma e o projeto conservador
implícito na efetiva luta e na esperança utópica dos trabalhadores rurais nela envolvidos.
Longe de polemizar com o MST e com a CPT (à qual
dedico um capítulo), meu livro é uma proposta de compreensão sociológica da importância histórica que essas duas agências de mediação têm na história contemporânea do Brasil. Sobretudo na afirmação da identidade
e do lugar histórico dos trabalhadores rurais e pobres
da terra diante de um modelo de capitalismo e de um
sistema de dominação que se nutrem de sua miséria e
de sua humilhação. As lutas sociais que têm como eixo
hoje o MST e a CPT (e também a Contag, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) representam um ganho histórico e o levantamento de
uma poderosa barreira ética a um modelo de reprodução ampliada do capital que desconhece limites morais e a precedência do homem e da sociedade na produção e no destino da riqueza socialmente produzida.
No redutivismo da retórica supostamente revolucionária esse ganho se perde no desconhecimento da
própria ação.
Aplauso gratuito
Recuso-me ao aplauso gratuito, oportunista e demagógico ao MST e à CPT, que
preconiza o professor de São Carlos. Aliás, com amigos cúmplices o MST e a CPT não precisam de inimigos. O que as agências de mediação precisam com urgência é aprofundar o conhecimento crítico sobre sua
própria ação, único modo de efetivamente prestarem
aos pobres da terra o serviço generoso a que se propõem.
Villa, numa manifestação de atrevimento e desrespeito, diz que procuro desqualificar o MST e que ignoro o massacre de camponeses, em particular o de Eldorado de Carajás. Villa não tem o menor direito de
fazer uma insinuação maldosa e irresponsável como
essa. Em primeiro lugar porque o massacre nada tem
a ver com os temas do livro. A tragédia das mortes
camponesas, e não só a de Eldorado de Carajás, que
parece ser a única que ele conhece, dos assassinatos
impunes, da facilidade com que se dispõe da vida de
pessoas simples e inocentes, pais de família, vítimas já
de uma pobreza injusta e insultante, não pode ser objeto de um ato de arrogância política como o seu. Perdi
muitos amigos e conhecidos nos conflitos fundiários
do último quarto de século para tolerar um atrevimento desses, uma leviandade dessas. Estou entre os
que há muito têm denunciado sistematicamente e
procurado compreender o sentido dessa tragédia de
todo o povo brasileiro e não admito que Villa ignore
esse fato.
Domínio do território Na tentativa de atingir-me, Villa diz que sou um sociólogo complacente com o poder, simplesmente porque em minhas análises assinalo o indispensável papel do Estado na recuperação
do domínio do território, perdido com a Lei de Terras,
que é base para concretização da função social da propriedade e da reforma agrária que está sendo feita. Ele,
funcionário público federal, é complacente com o
quê? Infelizmente, ainda há acadêmicos que confundem a necessária militância do cidadão com a transformação do conhecimento crítico em conhecimento
conivente e panfletário.
José de Souza Martins é professor titular de sociologia na USP, fellow de Trinity Hall e professor titular da cátedra Simón Bolivar da
Universidade de Cambridge (Inglaterra, 1993/94), autor de, entre
outros, "Fronteira - A Degradação do Outro nos Confins do Humano" e "A Sociabilidade do Homem Simples" (Hucitec).
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