São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 2001

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O sociólogo José de Souza Martins contesta resenha do historiador Marco Villa

Dilemas de interpretação

José de Souza Martins
especial para a Folha

Na edição do Mais! de 11 de fevereiro, Marco Antonio Villa apresenta como resenha de meu livro "Reforma Agrária - O Impossível Diálogo" (Edusp) uma crônica tendenciosa que pede resposta. Ele desperdiçou uma boa oportunidade de dar uma demonstração de competência teórica, perdendo-se num emaranhado de considerações simplistas sobre o livro, o autor e o MST, fazendo ilações descabidas e julgamentos pessoais temerários.
As dificuldades de leitura de Villa são compreensíveis. Ele se sentiu alcançado pela crítica que no livro faço à interpretação maniqueísta e fundamentalista dos fatos relativos à reforma agrária, o que fica evidente no método de sua crônica: para ele, o mundo do conhecimento sobre essa sociedade está pobremente dividido entre os que optam pelo MST e os que optam pelo governo. Ele recorta arbitrariamente os temas, seleciona o que lhe interessa, junta o que não está junto e monta um discurso ideológico sobre aquilo que lhe convém dizer. Villa não entendeu que meu livro não é um livro sobre reforma agrária. É um livro, no campo da sociologia do conhecimento, que trata do impossível diálogo sobre a reforma agrária. É uma proposta de compreensão sociológica da incompreensão. É uma análise, portanto, do modo de conhecer a questão agrária por parte de seus diferentes protagonistas.
Villa leu o livro ansioso por encontrar nele a contestação da legitimidade da ação do MST e da CPT (Comissão Pastoral da Terra). Como não a encontrou, tratou de produzi-la recortando e suprimindo aspectos importantes do livro, suprimindo até mesmo a sua tese fundamental. O que está em discussão no livro é a situação e o destino dos trabalhadores rurais e sua contradição mais aguda no contexto da militância e da ação política: o campesinato, especialmente os acampados e os assentados dos programas de reforma agrária, dirigidos ou não pelo MST, age em defesa de valores do conservadorismo clássico: terra, trabalho, família, religião e comunidade. É o que constitui o cerne de sua utopia e justifica sua luta pela terra de trabalho. A decorrente crítica ao MST e à CPT é justamente esta: como conciliar esses valores da tradição conservadora com a ideologia e a retórica das agências de mediação, baseadas nas concepções leninistas do papel revolucionário da classe operária, que indevidamente atribuem ao campesinato?
Justamente, por isso, um tema essencial do livro é o desencontro entre a luta pela terra de trabalho (a utopia), que é a luta dos trabalhadores, e a luta por uma reforma agrária (e a ideologia em que ela se apóia), que é a luta das agências de mediação. Portanto, se há um desencontro entre essas agências e o governo, no que à reforma agrária se refere, é um desencontro sobre a forma da reforma e não quanto a estar ou não o governo fazendo reforma agrária ou se omitindo quanto à necessidade e à urgência dessa reforma.
Esse desencontro esconde outro: o desencontro entre o projeto revolucionário dos militantes das agências de mediação política da reforma e o projeto conservador implícito na efetiva luta e na esperança utópica dos trabalhadores rurais nela envolvidos.
Longe de polemizar com o MST e com a CPT (à qual dedico um capítulo), meu livro é uma proposta de compreensão sociológica da importância histórica que essas duas agências de mediação têm na história contemporânea do Brasil. Sobretudo na afirmação da identidade e do lugar histórico dos trabalhadores rurais e pobres da terra diante de um modelo de capitalismo e de um sistema de dominação que se nutrem de sua miséria e de sua humilhação. As lutas sociais que têm como eixo hoje o MST e a CPT (e também a Contag, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) representam um ganho histórico e o levantamento de uma poderosa barreira ética a um modelo de reprodução ampliada do capital que desconhece limites morais e a precedência do homem e da sociedade na produção e no destino da riqueza socialmente produzida. No redutivismo da retórica supostamente revolucionária esse ganho se perde no desconhecimento da própria ação.

Aplauso gratuito
Recuso-me ao aplauso gratuito, oportunista e demagógico ao MST e à CPT, que preconiza o professor de São Carlos. Aliás, com amigos cúmplices o MST e a CPT não precisam de inimigos. O que as agências de mediação precisam com urgência é aprofundar o conhecimento crítico sobre sua própria ação, único modo de efetivamente prestarem aos pobres da terra o serviço generoso a que se propõem. Villa, numa manifestação de atrevimento e desrespeito, diz que procuro desqualificar o MST e que ignoro o massacre de camponeses, em particular o de Eldorado de Carajás. Villa não tem o menor direito de fazer uma insinuação maldosa e irresponsável como essa. Em primeiro lugar porque o massacre nada tem a ver com os temas do livro. A tragédia das mortes camponesas, e não só a de Eldorado de Carajás, que parece ser a única que ele conhece, dos assassinatos impunes, da facilidade com que se dispõe da vida de pessoas simples e inocentes, pais de família, vítimas já de uma pobreza injusta e insultante, não pode ser objeto de um ato de arrogância política como o seu. Perdi muitos amigos e conhecidos nos conflitos fundiários do último quarto de século para tolerar um atrevimento desses, uma leviandade dessas. Estou entre os que há muito têm denunciado sistematicamente e procurado compreender o sentido dessa tragédia de todo o povo brasileiro e não admito que Villa ignore esse fato.

Domínio do território Na tentativa de atingir-me, Villa diz que sou um sociólogo complacente com o poder, simplesmente porque em minhas análises assinalo o indispensável papel do Estado na recuperação do domínio do território, perdido com a Lei de Terras, que é base para concretização da função social da propriedade e da reforma agrária que está sendo feita. Ele, funcionário público federal, é complacente com o quê? Infelizmente, ainda há acadêmicos que confundem a necessária militância do cidadão com a transformação do conhecimento crítico em conhecimento conivente e panfletário.


José de Souza Martins é professor titular de sociologia na USP, fellow de Trinity Hall e professor titular da cátedra Simón Bolivar da Universidade de Cambridge (Inglaterra, 1993/94), autor de, entre outros, "Fronteira - A Degradação do Outro nos Confins do Humano" e "A Sociabilidade do Homem Simples" (Hucitec).


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