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Inquietudes a três vozes
"Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond" reúne cartas, bilhetes, cartões e telegramas trocados entre os poetas durante as décadas de 40 e 50
Alcides Villaça
especial para a Folha
Nosso interesse em ler cartas alheias tanto se
explica pelo impulso primitivo da bisbilhotice
humana como pode se justificar pelo interesse
mais sisudo na cultura de época, no debate de
idéias, na degustação do estilo de escrever e na sondagem íntima da personalidade. No caso desta "Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond", o
calibre dos poetas públicos envolvidos de fato abarca as
justificativas todas, e nossa curiosidade culmina em
prazerosa instrução.
São cartas, bilhetes, cartões e telegramas trocados entre Cabral e seus dois reverenciados poetas e amigos,
quase tudo ao longo das décadas de 40 e 50 -período
em que nasce, se desenvolve e se afirma a rigorosa arte
cabralina. Então poeta da novíssima geração, em diálogo com as vozes mais altas das duas anteriores, Cabral
(1920-99) vai expressando suas inquietudes de criador e
de crítico, recebendo em troca a palavra direta e afetuosa de Bandeira e, de Drummond, a resposta menos
pontual e a admiração um tanto mais cerimoniosa.
Em meio à diversidade das inúmeras notícias miúdas,
das providências solicitadas e dos beliscões em desafetos, que interessam muito e não deixam de transpirar
temas e clima de época, é possível costurar com interesse uma linha de reflexões ligadas ao ato da criação. Se
estas não constituem nenhuma suprema revelação
quanto ao espírito dos correspondentes,
modulam ou reiteram de modo muito
sugestivo alguns elementos básicos de
suas convicções.
Na correspondência de Cabral com
Bandeira (1886-1968), mais substanciosa
que a com Drummond (1902-87), o lado
cabralino da crescente atração pelo "difícil", pelo perfeccionismo e pela obsessiva
limpeza da forma construtiva, encontra
no outro pernambucano a contrapartida
do interesse por "aquela delícia das coisas imperfeitas"
-divergência tão reveladora dos caminhos trilhados
pelo poeta da "antilírica" e pelo lírico assumido. Nos
passos decisivos de escritor em formação, Cabral vai revelando ao amigo os tateios e os avanços de seus experimentos no caminho poético em que quer alcançar o
"puro funcionamento dos meios", em desafio direto à
"sensibilidade habituada".
Essa convicção quanto ao mérito das formas limpas e
funcionais não ocorre sem paradoxos: o jovem poeta
não só não está minimamente atraído pela asséptica
poesia "torre de marfim" como também reconhece e
admira a intensidade da fonte prosaica da nossa lírica,
capaz de expressões como "tenro cocô de cabrito"
(Bandeira), "chorei no prato de carne" (Drummond)
ou "bebe nuvem come terra e urina mar" (Vinícius).
Bandeira é sensível à dificuldade da confluência buscada por Cabral entre o impulso da experimentação estética mais decantada e o empenho na representação
dramática da geografia humana nordestina. A propósito do recém-criado "O Cão sem Plumas", Bandeira reconhece a envergadura de alta poesia e contrapõe o
poema novo e fundamental aos primeiros exercícios de
intelectualismo poético do amigo, interpretando: "(...)
Você já se sentiu habilitado a fazer a técnica servir ao
seu sentimento e não, como antes, pôr o seu sentimento
no aperfeiçoar a técnica".
Piparotes dos jovens poetas Já a respeito de
Bandeira, o leitor terá notícias, por exemplo, da sua desconcertante experiência de candidato
político pelo Partido Socialista; da origem de sua definitiva ojeriza pelos comunistas; dos piparotes que olimpicamente vai recebendo de jovens poetas da
geração de 45, interessados em demolir
"os gagás de 22"; da fria ou polêmica recepção de poemas como "O Bicho" e
"Boi Morto".
Na parte referente a Cabral-Drummond há também proveitosas manifestações do ensaísmo curto das cartas (no qual Mário de
Andrade foi um mestre). Por exemplo: o poeta mineiro
reage com muito interesse aos poemas ainda inéditos
de "A Pedra do Sono". O Drummond do recente "Sentimento do Mundo" encontra um Cabral insatisfeito com
a própria poesia, desejoso de se livrar de certo "cubismo" para escrever numa "linguagem mais compreensível desse mundo de que os jornais nos dão notícias todos os dias, cujo barulho chega até nossa porta". Essa
inquietação encontra eco nas preocupações drummondianas quanto à "necessidade de comunicação" de uma
poesia "integrada ao nosso tempo, que o exprima limpidamente e que ao mesmo tempo o supere". O compartilhamento de tensões familiares leva-o a confessar:
"Estou sentindo um prazer tão grande em escrever-lhe
esta carta".
Mais tarde, depois de ler "Anfion e Antiode", Drummond distingue a originalidade das opções do amigo,
que "está abrindo caminho para uma poesia empacada", com aqueles versos de uma "pureza feroz". Décadas depois, diante do "Auto do Frade", reconhecerá a
vitalidade dramática do engenho poético de Cabral.
As atrações deste livro não se restringem, é claro, à
costura pontilhada das reflexões. Há incontáveis pontas
soltas que também fazem ouvir, pela menção direta ou
no espaço relevantíssimo das entrelinhas, certa respiração cultural da época. Há os anexos, onde o leitor encontrará parte praticamente desconhecida da produção
de Cabral: poemas não recolhidos, escritos críticos e
traduções de poetas catalães.
E há o estudo introdutório e as notas de Flora Süssekind, a organizadora do volume. Nestas, a pesquisadora
é implacavelmente minuciosa, esclarecendo todas as referências, alusões e lacunas, fazendo remissões, fornecendo bibliografia, levantando hipóteses, quase não resistindo a uma intervenção direta nas conversas entre
os poetas. Explica-se: a voz de cartas como estas, voz do
afeto honesto e do pensamento aberto, é fala genuinamente pessoal, que se quer ouvir em pura presença.
Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond
320 págs., R$ 32,00
Flora Süssekind (org.). Ed. Nova
Fronteira (r. Bambina, 25, CEP
22251-050, RJ, tel. 0/xx/21/537-8770) .
Alcides Villaça é professor de literatura brasileira na USP.
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