São Paulo, domingo, 25 de março de 2001

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Inquietudes a três vozes

"Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond" reúne cartas, bilhetes, cartões e telegramas trocados entre os poetas durante as décadas de 40 e 50

Alcides Villaça
especial para a Folha

Nosso interesse em ler cartas alheias tanto se explica pelo impulso primitivo da bisbilhotice humana como pode se justificar pelo interesse mais sisudo na cultura de época, no debate de idéias, na degustação do estilo de escrever e na sondagem íntima da personalidade. No caso desta "Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond", o calibre dos poetas públicos envolvidos de fato abarca as justificativas todas, e nossa curiosidade culmina em prazerosa instrução.
São cartas, bilhetes, cartões e telegramas trocados entre Cabral e seus dois reverenciados poetas e amigos, quase tudo ao longo das décadas de 40 e 50 -período em que nasce, se desenvolve e se afirma a rigorosa arte cabralina. Então poeta da novíssima geração, em diálogo com as vozes mais altas das duas anteriores, Cabral (1920-99) vai expressando suas inquietudes de criador e de crítico, recebendo em troca a palavra direta e afetuosa de Bandeira e, de Drummond, a resposta menos pontual e a admiração um tanto mais cerimoniosa.
Em meio à diversidade das inúmeras notícias miúdas, das providências solicitadas e dos beliscões em desafetos, que interessam muito e não deixam de transpirar temas e clima de época, é possível costurar com interesse uma linha de reflexões ligadas ao ato da criação. Se estas não constituem nenhuma suprema revelação quanto ao espírito dos correspondentes, modulam ou reiteram de modo muito sugestivo alguns elementos básicos de suas convicções.
Na correspondência de Cabral com Bandeira (1886-1968), mais substanciosa que a com Drummond (1902-87), o lado cabralino da crescente atração pelo "difícil", pelo perfeccionismo e pela obsessiva limpeza da forma construtiva, encontra no outro pernambucano a contrapartida do interesse por "aquela delícia das coisas imperfeitas" -divergência tão reveladora dos caminhos trilhados pelo poeta da "antilírica" e pelo lírico assumido. Nos passos decisivos de escritor em formação, Cabral vai revelando ao amigo os tateios e os avanços de seus experimentos no caminho poético em que quer alcançar o "puro funcionamento dos meios", em desafio direto à "sensibilidade habituada".
Essa convicção quanto ao mérito das formas limpas e funcionais não ocorre sem paradoxos: o jovem poeta não só não está minimamente atraído pela asséptica poesia "torre de marfim" como também reconhece e admira a intensidade da fonte prosaica da nossa lírica, capaz de expressões como "tenro cocô de cabrito" (Bandeira), "chorei no prato de carne" (Drummond) ou "bebe nuvem come terra e urina mar" (Vinícius).
Bandeira é sensível à dificuldade da confluência buscada por Cabral entre o impulso da experimentação estética mais decantada e o empenho na representação dramática da geografia humana nordestina. A propósito do recém-criado "O Cão sem Plumas", Bandeira reconhece a envergadura de alta poesia e contrapõe o poema novo e fundamental aos primeiros exercícios de intelectualismo poético do amigo, interpretando: "(...) Você já se sentiu habilitado a fazer a técnica servir ao seu sentimento e não, como antes, pôr o seu sentimento no aperfeiçoar a técnica".
Piparotes dos jovens poetas Já a respeito de Bandeira, o leitor terá notícias, por exemplo, da sua desconcertante experiência de candidato político pelo Partido Socialista; da origem de sua definitiva ojeriza pelos comunistas; dos piparotes que olimpicamente vai recebendo de jovens poetas da geração de 45, interessados em demolir "os gagás de 22"; da fria ou polêmica recepção de poemas como "O Bicho" e "Boi Morto".
Na parte referente a Cabral-Drummond há também proveitosas manifestações do ensaísmo curto das cartas (no qual Mário de Andrade foi um mestre). Por exemplo: o poeta mineiro reage com muito interesse aos poemas ainda inéditos de "A Pedra do Sono". O Drummond do recente "Sentimento do Mundo" encontra um Cabral insatisfeito com a própria poesia, desejoso de se livrar de certo "cubismo" para escrever numa "linguagem mais compreensível desse mundo de que os jornais nos dão notícias todos os dias, cujo barulho chega até nossa porta". Essa inquietação encontra eco nas preocupações drummondianas quanto à "necessidade de comunicação" de uma poesia "integrada ao nosso tempo, que o exprima limpidamente e que ao mesmo tempo o supere". O compartilhamento de tensões familiares leva-o a confessar: "Estou sentindo um prazer tão grande em escrever-lhe esta carta".
Mais tarde, depois de ler "Anfion e Antiode", Drummond distingue a originalidade das opções do amigo, que "está abrindo caminho para uma poesia empacada", com aqueles versos de uma "pureza feroz". Décadas depois, diante do "Auto do Frade", reconhecerá a vitalidade dramática do engenho poético de Cabral.
As atrações deste livro não se restringem, é claro, à costura pontilhada das reflexões. Há incontáveis pontas soltas que também fazem ouvir, pela menção direta ou no espaço relevantíssimo das entrelinhas, certa respiração cultural da época. Há os anexos, onde o leitor encontrará parte praticamente desconhecida da produção de Cabral: poemas não recolhidos, escritos críticos e traduções de poetas catalães.
E há o estudo introdutório e as notas de Flora Süssekind, a organizadora do volume. Nestas, a pesquisadora é implacavelmente minuciosa, esclarecendo todas as referências, alusões e lacunas, fazendo remissões, fornecendo bibliografia, levantando hipóteses, quase não resistindo a uma intervenção direta nas conversas entre os poetas. Explica-se: a voz de cartas como estas, voz do afeto honesto e do pensamento aberto, é fala genuinamente pessoal, que se quer ouvir em pura presença.



Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond
320 págs., R$ 32,00
Flora Süssekind (org.). Ed. Nova Fronteira (r. Bambina, 25, CEP 22251-050, RJ, tel. 0/xx/21/537-8770)

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Alcides Villaça é professor de literatura brasileira na USP.


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