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O caráter da periferia especial
Coletânea reúne artigos e ensaios de Ruy Marini, um dos formuladores da teoria da dependência
Francisco de Oliveira
especial para a Folha
Edita-se em boa hora uma coletânea de artigos de Ruy Mauro Marini sobre o tema da dependência;
ela é também uma homenagem a
um lutador do socialismo, um intelectual
brasileiro e latino-americano -poucos
brasileiros foram tão latino-americanos
quanto ele- dos mais importantes nas
quatro últimas décadas. Suas elaborações são das mais profícuas de nossa
ciência social no século que findou e ajudarão a fazer frente aos desafios à esquerda na presença do processo avassalador da mundialização do capital. Ainda mais quando uma parte significativa
da produção intelectual se refugiou no
"sexo dos anjos", na abulia de um pensamento sem radicalidade.
Ruy Mauro Marini saiu do Brasil depois de preso e torturado no sinistro Cenimar (Centro de Informações da Marinha), triste precursor da celerada Escola
de Mecânica da Marinha argentina. Processado pela ditadura militar, foi para o
Chile e, depois do golpe que derrubou
Salvador Allende em 1973, se fixou no
México durante duas décadas. Ali ganhou uma relevância extraordinária no
debate intelectual e político, na época do
exílio de milhares de intelectuais latino-americanos, e a difusão pelas grandes
editoras mexicanas o transformou em
patrimônio comum da América Latina.
Voltou ao Brasil na década de 90, vindo a
morrer em 1997; publicou pouco depois
da volta e a maior parte de sua produção
permanece inédita.
Em tempos de globalização, suas posições são mais do que atuais, posto que
suas principais preocupações teóricas
estiveram sempre ligadas às questões da
mundialização do capital e seu contrário,
a mundialização do socialismo. O tratamento da questão do imperialismo era
constante em Ruy Mauro, não apenas
como desdobramento de tradições muito caras aos socialistas e comunistas como porque a divisão do mundo em esferas de competição imperialista e a exacerbação do monopólio do imperialismo
pelos EUA reclamam a prossecução de
investigações sobre essa perversa e quase
inexorável dinâmica.
No ciclo das ditaduras latino-americanas, rastilho de pólvora do golpe de Estado no Brasil em 1964, o imperialismo e
seus sátrapas exigiam teoria e ação, a que
Ruy Mauro não fugiu, buscando entender as determinações daquela dinâmica,
em que suseranias subimperialistas se
insinuavam nas relações entre as próprias ditaduras. Esse foi um tema importante na sua discussão sobre o que chamou de subimperialismo do Brasil em
relação a nações como o Paraguai e a Bolívia e a divisão do trabalho "sujo" entre
Brasil e Argentina.
Caráter do capitalismo Esta coletânea que se oferece ao público se abre com uma palpitante discussão sobre o
caráter do golpe militar de 1964, talvez a
mais importante elaborada ao calor da
hora; mas não se trata de uma análise de
"conjuntura", feita ao modo em que nomes de figuraços -que às vezes são palhaços- enchem os olhos e substituem
as relações concretas entre as classes.
Ao contrário, Marini procede a uma
pesquisa sobre o caráter do capitalismo
na periferia, para situar e entender o golpe militar. Nos anos 70 Marini esteve no
centro dos formuladores do que veio a
ser chamado de "teoria da dependência", que teve, entre outros propositores
de uma nova interpretação da inserção e
subordinação dos países da periferia capitalista, Fernando Henrique Cardoso e
Enzo Faletto. Mais tarde, em artigo que é
citado por Marini e que é conhecido pela
geração acadêmica daquela época, José
Serra se juntou a Fernando Henrique para responder às formulações dependentistas de Marini. Nomes também expressivos foram os de André Gunder Frank e
o de Teotônio dos Santos. Cardoso e Faletto -e também Serra- formulavam
uma teoria da dependência de inspiração derivada da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) e
da teoria do subdesenvolvimento, com um largo
apelo e emprego das categorias teóricas de Max
Weber. O marxismo ali
comparecia como "noblesse oblige", mas de fato
o coração da teorização
era mais weberiano, o que
é inteiramente legítimo.
Até porque eles vinham do Ilpes (Instituto Latino-Americano de Planejamento
Econômico e Social), onde a figura e a influência de dom José Medina Echavarría,
provavelmente o melhor weberiano da
Ibero-América -ele era espanhol-,
eram importantes e generosas.
Marini, Frank e Dos Santos, por seu lado, fundavam suas elaborações em Marx
e Lênin, deste último, sobretudo, sua teorização sobre o imperialismo e o desenvolvimento "desigual e combinado". A
teoria da dependência, assim, em Marini
e nos demais, seria a forma do imperialismo numa periferia especial, caracteristicamente a América Latina, por determinações que não eram desimportantes:
tratava-se de economias periféricas, as
maiores produtoras mundiais de matérias-primas e bens primários, mas com
uma longa história de independência
política, o que adicionava complicadores
extraordinários à dependência.
A tese básica da dependência, nas
mãos de Marini, se construía por meio
da superexploração do trabalho na periferia como contra-restação da permanente deterioração dos termos de intercâmbio na troca desigual entre países
produtores de manufaturas e produtores
de matérias-primas. Tratava-se, portanto, de uma tese apoiada e construída sobre a luta de classes. E centrava-se, como
na melhor tradição marxista, nos problemas gerados pela produção de mercadorias mediante a exploração da força de
trabalho.
A circulação ou a troca compareciam
como momento decisivo porque momento da realização do valor. Mas Marini não derivava a dependência da circulação, senão que esta se achava comprometida e enredada desde a constituição
das formas da produção capitalista na
periferia, a partir do escravismo no Brasil
e no Caribe, e da "encomienda" e da "mita" no resto da América
espanhola.
Ao contrário, Cardoso e
Faletto e, posteriormente,
Serra faziam da circulação
e das relações entre nações o fulcro de fundação
da dependência. À época,
Francisco Weffort assinalava, em crítica a Cardoso
e Faletto, essa substituição do conflito de
classes por um conflito entre nações. A
coletânea traz ao público brasileiro, pela
primeira vez, a discussão entre Cardoso e
José Serra, e Marini.
Período excepcional Tais discussões realizavam-se por meio de prestigiosas revistas latino-americanas, mas
no Brasil não foram nem sequer publicadas e portanto tiveram pouca repercussão. Elas são um registro de uma época
importante, em que a produção teórica
latino-americana se elevou notavelmente, em contraste com o marasmo que o
"pensamento único" instaurou nas duas
últimas décadas do século 20.
Para além das preferências teóricas,
ideológicas e pessoais, é forçoso reconhecer que se tratou de um período excepcional que, felizmente, parece renascer agora com a crítica aos processos da
mundialização do capital e das experiências de esterilização popular, no sentido
nazista do termo, do neoliberalismo latino-americano.
O leitor vai se beneficiar dessa discussão de alto nível, embora, como notará, a
produção de Marini se coloque, sempre,
num nível de elaboração e exigência teóricas muito superiores às de Cardoso e
Serra; estes discutiram bem pouco habermasianamente, em quem a presunção de verdade é pressuposto sem a qual
não há "ação comunicativa". Jogaram
sujo com o adversário, falsificando-lhe
as proposições, escamoteando questões
e pressupostos relevantes para a correta
compreensão do que estava em jogo. Ao
leitor "sem medo" -para usar a expressão de Renato Janine Ribeiro- importa
saber e distinguir, por entre a terminologia conceitual marxista que era, à época,
a moeda de troca mais constante nos
meios acadêmicos, o joio e o trigo.
A melhor forma de homenagear Ruy
Mauro Marini não é, certamente, lhe fazer a beatificação. Para um batalhador
exigente como ele o foi, importante é interrogar-lhe sobre a atualidade de suas
proposições. Assim a questão da dependência coloca um problema muito sério,
que Cardoso e Serra -e não mais Faletto, que há muito deixou de ser dependentista- resolvem pela tangente do
apelo à inserção acrítica no processo da
mundialização, como o provam sobejamente suas opções no governo: com a mundialização do capital, o
conceito de dependência ainda tem
força explicativa, capacidade heurística para interpretar os processos outrora "dependentes" da periferia? Mas
não nos cabe responder por eles.
Simulacros do dólar Quanto a
Marini, a mesma questão pode se colocar: se a dependência exigia, ainda
que em graus e ritmos bastante predeterminados, um certo grau de autonomia, expressão do conflito de classes interno, que se mostrava no próprio e precário controle da moeda, o
que dizer hoje, quando as moedas nacionais de fato são apenas simulacros
do dólar e em muitos casos a dolarização já é real? Pode-se pensar ainda nos
Estados latino-americanos como instâncias reguladoras do conflito de
classes, das quais emergia a tendência
à dependentização, mas que nunca se
davam diretamente e dependiam, por
sua vez, da intermediação do Estado?
Se a moeda, na teoria marxista, não é
senão o conflito de classes mediatizado e modificado pelo dinheiro que é a
violência da desigualdade codificada
e transformada em equivalente geral,
como se põe, hoje, essa questão?
A questão nacional é ainda relevante? E há, ainda, uma especificidade
que esteja a pedir uma teorização que
dê conta dela ou servem os manuais
do FMI?
Não há dúvida de que Marini se disporia a esse desafio, como o prova o
último dos ensaios contidos nesta coletânea, "Processo e Tendências da
Globalização Capitalista". A Sem-Face não deixou que ele desdobrasse em
novas investigações o tema que o
apaixonou durante toda a vida. Mas
sua produção bem pode ser um ponto
de partida para muitos que se colocam as mesmas questões, a serviço da
causa do socialismo e da libertação
humana.
Dialética da Dependência
296 págs., R$ 26,00
de Ruy Mauro Marini. Organização de Emir Sader. Laboratório
de Políticas Públicas/Clacso/Vozes (r. Frei Luís, 100, CEP 25689-900, Petrópolis, RJ, tel. 0/xx/24/
237-5112).
Francisco de Oliveira é professor titular do
departamento de sociologia da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e
presidente do Cenedic (Centro de Estudos dos
Direitos da Cidadania) da FFLCH-USP.
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