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Ilusões ainda existentes
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
especial para a Folha
O caminho que leva Cristovão
Tezza de volta a "Ensaio da Paixão" é necessariamente de revisão. Mais de dez títulos depois, o
que fica dessa visão romanesca
dos anos 70, o que do entusiasmo
inicial no escritor experimentado? Romancista catarinense radicado em Curitiba, professor de
linguística na Universidade Federal do Paraná, a produção de Tezza não é pequena. Construiu, aos
poucos, um narrador urbano,
cindido entre a consciência da
criação, compulsão e busca semfim, e os compromissos da vida,
no limite, também uma construção, ficção vivida.
Nos seus melhores momentos,
como em "Trapo" (1988), "O Fantasma da Infância" (1994) ou
"Uma Noite em Curitiba" (1995),
a forma dividida da exposição
(um professor examinando os papéis de um poeta marginal suicida, como em "Trapo"; um filho
ajustando contas com a memória
do pai, também professor, cuja vida ruiu, a partir de um punhado
de cartas, em "Uma Noite em Curitiba") joga luz sobre a imperfeição de ambas. É esse gosto pelo
esquadrinhamento da divisão interior que põe em movimento o
Tezza escritor.
Na reedição de "Ensaio da Paixão", romance
de juventude,
escrito no final
dos anos 70, já
como balanço
de vivências recentes, rever
implica, para
leitor e autor,
certa dose de
ironia, de isenção crítica produzida pelo
tempo que permita considerar
objetivamente o que antes parecia
tão acertada expressão de uma
verdade, pessoal, acabada, cabal.
A idéia de encapsular a vida desconjuntada do país na imagem de
uma encenação coletiva, para público nenhum, da Paixão de Cristo, numa ilha catarinense ameaçada pelo arbítrio e paranóia do
poder constituído à força, precisou de um tanto de ingenuidade
sincera para ser levada a cabo. Ingenuidade que duplicava a sinceridade bem-intencionada dos que
viveram a época, certos de que a
nau dos loucos, a crítica corrosiva
da arte, do ócio, da recusa em
compactuar, da opção pela marginalidade e pela força dos laços
comunitários eram, mais que descobertas de uma geração, invenções de caminhos seguros para
uma sociedade mais livre e realizada.
Meia verdade. A apatia e o recalque conhecem muitas faces,
meios de assimilar, domesticados
e inofensivos, o gesto de protesto,
a rebeldia pela boa causa. Se, ainda assim, ela não perde sua razão,
em retrospecto, não há como evitar certo gosto melancólico, do
qual o ridículo não está totalmente isento, na reconstrução a posteriori dos dias em que as ilusões
ainda não estavam perdidas. A
ameaça de sentimentalismo só
pode ser neutralizada pela consciência crítica, da qual o humor é
uma forma.
No "Ensaio da Paixão", a pretensão à totalidade das metáforas
empregadas (a ilha como alegoria
do país, a criação coletiva como
reação à ordem unida do poder
militar, o arsenal de tipos recompondo em escala menor o mosaico da sociedade, a vida dos atores
como reencenações do destino de
queda e sofrimento da humanidade, paixão) carregou nas tintas a
ponto de converter o romance em
caricatura. As pitadas de realismo
mágico, também traço de época,
conferem-lhe apenas uma espécie
de ironia postiça, que finge ser
ironia o distanciamento que deveras sente, artificializando-o.
Nisto, o livro,
lido em retrospecto, naufraga no tempo,
datado. A moldura da mitologia bíblica
atualizada não
convence, os
tipos aparecem
engessados em
figuras de papel: um demônio tecnocrata, o pescador e seu
anjo da guarda, um Antonio Conselheiro local, meia dúzia de pequeno-burgueses, corpos estranhos, o escritor "vendido" e bem-sucedido, militares ensandecidos,
torturadores ambiciosos. Mostra
um escritor em gestação, muito
impregnado pela urgência de refletir sobre a experiência histórica
mais imediata e, apesar da distorção alegórica, excessivamente colado a ela, dilema que seu autor e a
ficção contemporânea brasileira
ainda não superou de todo.
A OBRA
Ensaio da Paixão Cristovão Tezza. Rocco (r. Rodrigo Silva, 26,
5º andar, CEP 20011-040, RJ, tel. 0/xx/21/507-2000). 328 págs. R$
29,00.
Fábio de Souza Andrade é professor de
teoria literária na Universidade Estadual de
Campinas e autor de "O Engenheiro Noturno
- A Lírica Final de Jorge de Lima" (Edusp).
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