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ARTES PLÁSTICAS
Georges Mathieu explica a "abstração lírica", escola de pintura que
ajudou a criar nos anos 50
Sinais líricos
BETTY MILAN
especial para a Folha
"A sorte do Brasil é sua história
ter começado em 1500, o que significa não ter sofrido as influências maléficas do Renascimento",
afirma o artista plástico francês
Georges Mathieu na entrevista a
seguir. Ele nasceu em 1921 e é um
dos criadores da corrente artística
conhecida como abstração lírica.
Em 1954, expôs em Nova York e
começou uma carreira internacional. Em 1963, o Museu de Arte
Moderna de Paris o consagrou
com uma retrospectiva. Em 1976,
foi eleito membro da Academia
de Belas Artes e, dois anos depois,
viu sua obra reunida no Grand
Palais de Paris. Além de artista
plástico, Mathieu é autor de vários livros, como "O Massacre da
Sensibilidade" e "A Partir de Agora, Sozinho Diante de Deus".
Folha - Nos anos 50 o senhor
inventou a abstração lírica. Malraux a definiu como uma caligrafia ocidental. O que é a abstração lírica?
Georges Mathieu - Poderíamos
defini-la como um "novo nascimento da pintura". Trata-se do
abandono total de todas as estéticas anteriores fundadas na representação da natureza e nos ideais
de perfeição. Não é uma nova escola como o cubismo ou o surrealismo. A abstração lírica supõe
uma improvisação total das formas, uma ausência de premeditação, a ausência evidente de referência à natureza, ausência de um
modelo ou esboço prévio. Implica
necessariamente uma rapidez de
execução ligada a uma concentração extrema, que não tem nada a
ver com a "inspiração" e, em certos casos, é ligada a um estado segundo. A abstração lírica não é
uma caligrafia, embora tenha semelhanças muito superficiais
com as caligrafias orientais - japonesa, chinesa ou árabe. Na verdade, elas se referem a ideogramas com significações específicas
e nada têm a ver com a abstração.
Esta é feita de signos que só encontram as suas significações a
posteriori. O sinal precede sempre a significação, contrariamente
ao que faz toda criação pictural
ocidental há 20 séculos.
Folha - No século 20 o que impera é o relativismo, tudo é
aceitável. A palavra belo tem
por acaso um sentido?
Mathieu - A beleza, ao longo
dos séculos, perdeu as suas características de intemporalidade e de
universalidade. Sofreu assaltos da
originalidade, da expressividade,
do dinamismo, da energia e mesmo da violência. Jean Cocteau escreveu: "Aquele que corre menos
do que a beleza só pode produzir
obras medíocres; o que corre tão
rápido quanto ela produzirá
obras banais; o que corre mais rápido do que a beleza corre o risco
de ser incompreendido, vilipendiado, objeto de sarcasmo, de
ódio e de desprezo. Mas, se ele parar no meio do caminho e permitir à beleza cansada o alcançar,
nascerá uma obra-prima que será
o produto da fusão da beleza admitida e da beleza revelada". Desde Picasso e, sobretudo, Duchamp, a beleza frequentemente
deu lugar à provocação, à desrazão... Mas a noção de beleza ainda
goza de um certo crédito para
qualificar uma mulher, um objeto, um monumento. Assim, a catedral de Niemeyer em Brasília é
de uma beleza incontestável.
Folha - No campo das artes
plásticas o que aconteceu de
mais importante desde a Segunda Guerra Mundial?
Mathieu - Não aconteceu muita
coisa, salvo a abstração lírica, que
não tem nada a ver com a abstração geométrica, seja ela de Mondrian, Malevitch, Kandinski, Vassarely. Podemos citar: Manessier,
Nicolas de Stael, Etienne Martin,
Hartung, Wols.
Folha - O que o senhor pensa
do propósito de Jean Baudrillard, que diz: "A arte contemporânea é nula"?
Mathieu - Baudrillard tem razão. Bem antes dele, em 1992, eu
escrevi um panfleto intitulado "O
Massacre da Sensibilidade", em
que eu acusava os americanos de
terem invadido a Europa com
produtos pseudo-artísticos de
uma horrível feiúra. Em 200 anos
de vida, os americanos não elaboraram uma cultura verdadeiramente original. Sempre estiveram
à reboque da Escola de Paris. A influência da presença de André
Masson e de Max Ernst em Nova
York, em 1942, foi determinante
para a obra derrisória de um Pollock ou de um Rothko. Desde
1935 só Mark Tobey tinha criado
obras originais com os seus "white-writings", mas ele nunca foi devidamente considerado no seu
país. Decerto porque ele é muito
sensível e muito culto. Depois é a
catástrofe, uma catástrofe mundial. Os americanos continuam a
exportar os seus horrores e a contaminar o Ocidente.
Folha - Na sua Conferência de
Heidelberg de 1980, o senhor
diz que desde 1960 a pintura
americana não produziu nada
de novo. O que se passou nos
Estados Unidos nessa área?
Mathieu - A pintura americana
só existiu entre 1947 e 1960, inspirando-se, como eu já disse, na Escola de Paris: Gorky copia Miró.
Fora uma quinzena de pintores
que se chamavam "irascíveis",
reagindo contra o Museu de Arte
Moderna de Nova York, não houve nada de importante dando seguimento à dita vanguarda. Na
Europa existia a abstração lírica.
Folha - Os Estados Unidos criaram uma tradição plástica original, como o fizeram no cinema?
Mathieu - Não vendo nenhuma
inovação, o mundo do comércio
americano -marchands, curadores de museu, críticos de arte-
voltou-se para a Inglaterra, que tinha inventado a arte pop. Introduziu nessa forma de arte a nova
geração de "commercial artists"
que trabalhava na publicidade.
Surgiu a arte pop americana, cujo
pai é o inglês Richard Hamilton.
Johns e Rauschenberg abriram
então o caminho para Oldenburg,
Lichtenstein, Rosenquist, Jim Dine, Tom Wesseman, Andy Warhol, que fizeram a crítica da civilização americana, na mesma tradição que é a da sua literatura, de
Sinclair Lewis a John Dos Passos...
Trata-se portanto de uma verdadeira impostura fazer o mundo
inteiro acreditar que existe uma
pintura e uma arte americana originais. A ausência de sensibilidade se agravará ainda com a posteridade de Allan Kapprow, que,
sob a influência póstuma de Marcel Duchamp, desviou a arte da
sua verdadeira vocação "criando"
a arte dita "conceitual", arte que
está tomando a Europa e a França
com o apoio inverossímil do Estado, por meio do Ministério da
Cultura. Desde 1981 esse Ministério tem uma política antidemocrática, absolutamente ditatorial,
com 16 mil conselheiros culturais
que atravessam o país para incitar
as municipalidades a adquirir instalações que elas não precisam e
só servem para entupir as reservas
dos museus. Isso quando 300 mil
pintores morrem de fome!
Folha - O nome do Brasil volta
repetidamente nos seus livros...
Mathieu - Fiquei três meses no
Brasil entre 1959 e 1960. Adorei o
país e seu povo. A sorte do Brasil é
sua história ter começado em
1500, o que significa não ter sofrido as influências maléficas do Renascimento. O Brasil começa em
pleno barroco, escapou ao racionalismo estreito de toda a tradição clássica. Vocês são a primeira
"civilização tropical". Gosto do
risco e da aventura completados
por uma aptidão a improvisar,
que nós encontramos nos procedimentos dos maiores arquitetos
brasileiros ou dos paisagistas. Isso
sem esquecer as qualidades de
fantasia, de imaginação e de sonho. Um sonho tornado realidade
pela presença de um milagre eterno, o milagre que vocês elevaram
ao nível de instituição nacional.
No Brasil, o jogo, o sagrado, a festa são mais bem vividos do que
em qualquer outro lugar.
Folha - O senhor milita por um
novo Renascimento. Como ele
poderá acontecer?
Mathieu - O Renascimento virá
talvez do exemplo do seu país, se
vocês não se deixarem dominar
pelo espírito de lucro e de interesse material como ocorre nos Estados Unidos. Eles não conseguiram nem criar uma verdadeira civilização, nem uma verdadeira
democracia.
Folha - O senhor escreve na
"Abstração Profética": "Tudo leva a pensar que o artista reinará
no mundo de amanhã". O senhor então é otimista?
Mathieu - Sim, um otimista desesperado. Por sinal, gostaria de
saber onde se encontra o quadro
"Macumba", que pintei no Museu
de Arte Moderna do Rio para a
minha exposição. O quadro foi
doado ao Museu. Fiquei sabendo
que o chassis tinha sido comido
por cupins, e o quadro enviado
para um lugar que fica a 50 quilômetros do Rio a fim de ser restaurado. Depois não soube mais o
que aconteceu. Onde está ele? (1).
Nota
1. Segundo informação do Museu de Arte Moderna do Rio, o quadro está registrado sob o título "Morte Antropofágica
do Bispo Sardinha" e foi pintado para
uma exposição de outubro de 1959. Por
precisar de restauração, encontra-se
guardado em um depósito. A diretoria
do museu já apresentou à Fundação Vitae proposta para sua restauração.
Betty Milan é escritora e psicanalista, autora
de "O Papagaio e o Doutor" (Record), entre
outros. A entrevista acima fará parte de seu
próximo livro, "O Século", com depoimentos
de intelectuais.
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