São Paulo, Domingo, 25 de Julho de 1999
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ARTES PLÁSTICAS
Georges Mathieu explica a "abstração lírica", escola de pintura que ajudou a criar nos anos 50
Sinais líricos

BETTY MILAN
especial para a Folha

"A sorte do Brasil é sua história ter começado em 1500, o que significa não ter sofrido as influências maléficas do Renascimento", afirma o artista plástico francês Georges Mathieu na entrevista a seguir. Ele nasceu em 1921 e é um dos criadores da corrente artística conhecida como abstração lírica. Em 1954, expôs em Nova York e começou uma carreira internacional. Em 1963, o Museu de Arte Moderna de Paris o consagrou com uma retrospectiva. Em 1976, foi eleito membro da Academia de Belas Artes e, dois anos depois, viu sua obra reunida no Grand Palais de Paris. Além de artista plástico, Mathieu é autor de vários livros, como "O Massacre da Sensibilidade" e "A Partir de Agora, Sozinho Diante de Deus".

Folha - Nos anos 50 o senhor inventou a abstração lírica. Malraux a definiu como uma caligrafia ocidental. O que é a abstração lírica?
Georges Mathieu -
Poderíamos defini-la como um "novo nascimento da pintura". Trata-se do abandono total de todas as estéticas anteriores fundadas na representação da natureza e nos ideais de perfeição. Não é uma nova escola como o cubismo ou o surrealismo. A abstração lírica supõe uma improvisação total das formas, uma ausência de premeditação, a ausência evidente de referência à natureza, ausência de um modelo ou esboço prévio. Implica necessariamente uma rapidez de execução ligada a uma concentração extrema, que não tem nada a ver com a "inspiração" e, em certos casos, é ligada a um estado segundo. A abstração lírica não é uma caligrafia, embora tenha semelhanças muito superficiais com as caligrafias orientais - japonesa, chinesa ou árabe. Na verdade, elas se referem a ideogramas com significações específicas e nada têm a ver com a abstração. Esta é feita de signos que só encontram as suas significações a posteriori. O sinal precede sempre a significação, contrariamente ao que faz toda criação pictural ocidental há 20 séculos.

Folha - No século 20 o que impera é o relativismo, tudo é aceitável. A palavra belo tem por acaso um sentido?
Mathieu -
A beleza, ao longo dos séculos, perdeu as suas características de intemporalidade e de universalidade. Sofreu assaltos da originalidade, da expressividade, do dinamismo, da energia e mesmo da violência. Jean Cocteau escreveu: "Aquele que corre menos do que a beleza só pode produzir obras medíocres; o que corre tão rápido quanto ela produzirá obras banais; o que corre mais rápido do que a beleza corre o risco de ser incompreendido, vilipendiado, objeto de sarcasmo, de ódio e de desprezo. Mas, se ele parar no meio do caminho e permitir à beleza cansada o alcançar, nascerá uma obra-prima que será o produto da fusão da beleza admitida e da beleza revelada". Desde Picasso e, sobretudo, Duchamp, a beleza frequentemente deu lugar à provocação, à desrazão... Mas a noção de beleza ainda goza de um certo crédito para qualificar uma mulher, um objeto, um monumento. Assim, a catedral de Niemeyer em Brasília é de uma beleza incontestável.

Folha - No campo das artes plásticas o que aconteceu de mais importante desde a Segunda Guerra Mundial?
Mathieu -
Não aconteceu muita coisa, salvo a abstração lírica, que não tem nada a ver com a abstração geométrica, seja ela de Mondrian, Malevitch, Kandinski, Vassarely. Podemos citar: Manessier, Nicolas de Stael, Etienne Martin, Hartung, Wols.

Folha - O que o senhor pensa do propósito de Jean Baudrillard, que diz: "A arte contemporânea é nula"?
Mathieu -
Baudrillard tem razão. Bem antes dele, em 1992, eu escrevi um panfleto intitulado "O Massacre da Sensibilidade", em que eu acusava os americanos de terem invadido a Europa com produtos pseudo-artísticos de uma horrível feiúra. Em 200 anos de vida, os americanos não elaboraram uma cultura verdadeiramente original. Sempre estiveram à reboque da Escola de Paris. A influência da presença de André Masson e de Max Ernst em Nova York, em 1942, foi determinante para a obra derrisória de um Pollock ou de um Rothko. Desde 1935 só Mark Tobey tinha criado obras originais com os seus "white-writings", mas ele nunca foi devidamente considerado no seu país. Decerto porque ele é muito sensível e muito culto. Depois é a catástrofe, uma catástrofe mundial. Os americanos continuam a exportar os seus horrores e a contaminar o Ocidente.

Folha - Na sua Conferência de Heidelberg de 1980, o senhor diz que desde 1960 a pintura americana não produziu nada de novo. O que se passou nos Estados Unidos nessa área?
Mathieu -
A pintura americana só existiu entre 1947 e 1960, inspirando-se, como eu já disse, na Escola de Paris: Gorky copia Miró. Fora uma quinzena de pintores que se chamavam "irascíveis", reagindo contra o Museu de Arte Moderna de Nova York, não houve nada de importante dando seguimento à dita vanguarda. Na Europa existia a abstração lírica.

Folha - Os Estados Unidos criaram uma tradição plástica original, como o fizeram no cinema?
Mathieu -
Não vendo nenhuma inovação, o mundo do comércio americano -marchands, curadores de museu, críticos de arte- voltou-se para a Inglaterra, que tinha inventado a arte pop. Introduziu nessa forma de arte a nova geração de "commercial artists" que trabalhava na publicidade. Surgiu a arte pop americana, cujo pai é o inglês Richard Hamilton. Johns e Rauschenberg abriram então o caminho para Oldenburg, Lichtenstein, Rosenquist, Jim Dine, Tom Wesseman, Andy Warhol, que fizeram a crítica da civilização americana, na mesma tradição que é a da sua literatura, de Sinclair Lewis a John Dos Passos...
Trata-se portanto de uma verdadeira impostura fazer o mundo inteiro acreditar que existe uma pintura e uma arte americana originais. A ausência de sensibilidade se agravará ainda com a posteridade de Allan Kapprow, que, sob a influência póstuma de Marcel Duchamp, desviou a arte da sua verdadeira vocação "criando" a arte dita "conceitual", arte que está tomando a Europa e a França com o apoio inverossímil do Estado, por meio do Ministério da Cultura. Desde 1981 esse Ministério tem uma política antidemocrática, absolutamente ditatorial, com 16 mil conselheiros culturais que atravessam o país para incitar as municipalidades a adquirir instalações que elas não precisam e só servem para entupir as reservas dos museus. Isso quando 300 mil pintores morrem de fome!

Folha - O nome do Brasil volta repetidamente nos seus livros...
Mathieu -
Fiquei três meses no Brasil entre 1959 e 1960. Adorei o país e seu povo. A sorte do Brasil é sua história ter começado em 1500, o que significa não ter sofrido as influências maléficas do Renascimento. O Brasil começa em pleno barroco, escapou ao racionalismo estreito de toda a tradição clássica. Vocês são a primeira "civilização tropical". Gosto do risco e da aventura completados por uma aptidão a improvisar, que nós encontramos nos procedimentos dos maiores arquitetos brasileiros ou dos paisagistas. Isso sem esquecer as qualidades de fantasia, de imaginação e de sonho. Um sonho tornado realidade pela presença de um milagre eterno, o milagre que vocês elevaram ao nível de instituição nacional. No Brasil, o jogo, o sagrado, a festa são mais bem vividos do que em qualquer outro lugar.

Folha - O senhor milita por um novo Renascimento. Como ele poderá acontecer?
Mathieu -
O Renascimento virá talvez do exemplo do seu país, se vocês não se deixarem dominar pelo espírito de lucro e de interesse material como ocorre nos Estados Unidos. Eles não conseguiram nem criar uma verdadeira civilização, nem uma verdadeira democracia.

Folha - O senhor escreve na "Abstração Profética": "Tudo leva a pensar que o artista reinará no mundo de amanhã". O senhor então é otimista?
Mathieu -
Sim, um otimista desesperado. Por sinal, gostaria de saber onde se encontra o quadro "Macumba", que pintei no Museu de Arte Moderna do Rio para a minha exposição. O quadro foi doado ao Museu. Fiquei sabendo que o chassis tinha sido comido por cupins, e o quadro enviado para um lugar que fica a 50 quilômetros do Rio a fim de ser restaurado. Depois não soube mais o que aconteceu. Onde está ele? (1).

Nota
1. Segundo informação do Museu de Arte Moderna do Rio, o quadro está registrado sob o título "Morte Antropofágica do Bispo Sardinha" e foi pintado para uma exposição de outubro de 1959. Por precisar de restauração, encontra-se guardado em um depósito. A diretoria do museu já apresentou à Fundação Vitae proposta para sua restauração.


Betty Milan é escritora e psicanalista, autora de "O Papagaio e o Doutor" (Record), entre outros. A entrevista acima fará parte de seu próximo livro, "O Século", com depoimentos de intelectuais.


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