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A INVENÇÃO DA VELOCIDADE
JAMES DEAN, MORTO HÁ 50 ANOS, ENCARNOU
UMA ÉPOCA EMBALADA PELA AMPLIAÇÃO DA INDÚSTRIA AUTOMOBILÍSTICA, AMBIVALENTE ENTRE A REBELDIA
E A SEXUALIDADE REPRIMIDA E QUE VISLUMBROU
NOS CARROS UMA POSSIBILIDADE DE FUGA
ANTONIO BIVAR
ESPECIAL PARA A FOLHA
Era 30 de setembro de 1955,
cinco e meia da tarde. O sol,
uma bola de fogo. James Dean
corria a umas 100 milhas por
hora na Rota 466. Rolf, o mecânico,
ao seu lado, começa a sentir sono.
"Tudo certo?", pergunta Jimmy.
"Tudo certo", responde Rolf, já quase dormindo, embalado pelo ruído
monótono do motor.
Minutos depois, o Porsche Spyder
aproxima-se do cruzamento da 466
com a 41. Um Ford sedã, indo na direção contrária, começa a dobrar a
esquerda. O motorista, não avistando nenhum carro vindo, dobra. O
Porsche de Jimmy vai feito raio.
Jimmy diz a Rolf: "Aquele carro lá
tem que parar, ele tem que nos ver".
Repentinamente, um guinchar de
freios e o choque terrível. 17h45. James Dean está morto.
A polícia e as perguntas. Rolf Wutherich, o mecânico alemão especialista em carros de corrida, ainda em
Los Angeles, revisando o carro de
Jimmy, colocara cinto de segurança
apenas para o motorista. Na batida,
o mecânico foi atirado fora do Porsche, sofrendo ferimentos leves.
Jimmy, preso no assento -o impacto fora tão violento que teve o pescoço quebrado, fraturas múltiplas e lesões internas. A ambulância chega,
mas é tarde demais. O rapaz que dirigia o outro carro, um estudante
um ano mais novo que Jimmy, pálido, chorava: "Eu não tinha visto ele,
juro que não tinha visto ele...".
Nos dias seguintes o mundo ficava
sabendo da notícia. Quatro dias depois da tragédia, o corpo de James
Byron Dean foi levado pelo pai de
volta ao Estado de Indiana, a Fairmount, a cidadezinha onde nasceu,
no centro-oeste. Cerca de 4.000 pessoas acompanharam o funeral, no
dia 8 de outubro de 1955. O caixão
foi carregado por quatro ex-colegas
de ginásio até o cemitério, onde foi
enterrado perto da mãe. Nesse mesmo dia, "Juventude Transviada" estreava em Nova York.
Apenas um dos três filmes estrelados por James Dean, "Vidas Amargas", havia sido lançado antes de sua
morte. Do último, "Assim Caminha
a Humanidade", recém terminado,
Jimmy nem tinha completado a dublagem. O colega Nick Adams foi
convocado para botar voz no personagem.
A influência de "Juventude Transviada" sobre a garotada se alastra pelo mundo nos anos seguintes. Brigas
de faca, ruídos de motocicletas e corridas clandestinas de carro arrepiam
tudo o que é cidade. No Brasil, esses
jovens são chamados pelo título do
filme. Cada família tinha a sua ovelha negra. Estava criado o culto. E o
que é culto? É um fenômeno construído a partir do desejo coletivo, a
confirmação de que algo de significativo ocorrera.
Jimmy estava morto, mas seu espírito permanecia onipresente. Ele
deixara algo em que a juventude pudesse reconhecer a si própria. Milhares de jovens se produziam interior e
exteriormente a ponto de serem réplicas perfeitas dele. Assemelhar-se
a James Dean tornara-se uma obsessão entre os devotos. Fã-clubes espalhavam-se pelo mundo. E o mundo?
O caldeirão
O mundo em 1955 era assim: rolava a Guerra Fria. A indústria automobilística vivia seu boom também
no Brasil. País que tinha petróleo tinha tudo. A juventude, dez anos do
fim da Segunda Guerra, estava inquieta. Ou melhor, excitada. Uma
classe média em ascensão -a classe
do personagem de James Dean e colegas em "Juventude Transviada".
Na moda, um leque de opções. Do
existencialismo francês e seu derivado norte-americano, a "beat generation", à facção mais testosteronada e
intumescida, que ia de rock and roll,
bolinha -excitantes para ficar acordado e tranqüilizantes para dormir- e cuba libre (rum e coca) para
ganhar coragem. Antagonizavam o
clamor do sexo e a repressão.
Se os jovens do filme de James
Dean e dos subprodutos dele derivados, jovens da alta classe média, roubavam carros (e as garagens dos pais
estavam cheias deles) para curras e
rachas, os beatniks, supostamente
mais intelectualizados e um pouco
mais velhos (muitos já cursando faculdade ou as tendo abandonado),
também sofriam da mesma obsessão: dirigir em alta velocidade, como
bem atesta a bíblia beat, "On the
Road" ["Pé na Estrada" (L&PM)],
de Jack Kerouac.
Voar no asfalto era o "must". Ficar
parado era apodrecer. Entrar num
carro e escapar era viver. Ou morrer,
como James Dean. O importante,
como receita contra o tédio, era viver perigosamente. No Brasil tínhamos um herói: o Chico Landi. E uma
mulher desafiava as pistas, uma mulher de nome Lula. Lula Gancia, mãe
de Barbara (colunista da Folha).
No ritmo acelerado do novo tempo, os sonhos de consumo tinham
muito a ver com o sonho americano.
Marilyn dormia pelada só com o
perfume Chanel número 5. Em 1956
surgia Elvis Presley requebrando os
quadris e ensandecendo ainda mais
a mocidade. Seu carisma será ainda
maior que o de James Dean. No Brasil de JK, Brasília saía do papel e ganhava arquitetura; São Paulo era o
pólo industrial. Novas estradas e rodovias cortavam o solo nacional.
Descer a estrada de Santos era fácil. Voava-se sobre o asfalto sem o
menor esforço. O problema era a
volta, a subida, o carburador pegando fogo, era preciso parar à beira de
nascentes e jogar água fria até parar
de sair fumaça. Era preciso ter saco.
No fundo, com toda a aceleração dos
novos tempos, quando se caía na
real, via-se que ainda engatinhávamos. O Rio continuava ditando moda, mas a garota de Ipanema ainda
estava de fralda. E no ziriguidum do
samba em si, éramos felizes e até sabíamos.
Pressa
"Se eu tivesse cem anos para viver,
eu ainda não teria tempo para fazer
tudo o que quero", dizia James Dean
numa entrevista. Parece que seus seguidores sentiam a mesma coisa. O
"rebelde problemático" era o novo
modelo. Um ano antes de "Juventude Transviada", um outro filme, "Sementes de Violência", produção barata da Metro, em preto-e-branco,
com Vic Morrow, lançava o rock
and roll ("Rock Around the Clock",
cantado por Bill Halley) e mostrava
adolescentes baderneiros pobres e
da periferia urbana. Esse filme (com
a ajuda da publicidade) induzia os
jovens à explosão de vandalismo nos
cinemas onde era exibido. O recém
inaugurado Cine Paulista, na rua
Augusta, foi depredado.
Era o ingênuo desejo da juventude
local de "viver intensamente". Ao
longo da rua Augusta, corrida a toda
velocidade não respeitava sinal nem
cruzamento. Os nossos filhinhos-de-papai imitavam os norte-americanos na "roleta paulista".
E James Dean? Bem, seu currículo
de ator resume-se a algumas participações em teledramas na TV em
Nova York, duas peças na Broadway
-por uma delas, "O Imoralista",
adaptada do livro de André Gide,
Jimmy ganhou o prêmio de revelação do ano em 1954- e seis filmes,
três deles em pontas insignificantes e
os outros três, filmes classe A, dos
quais foi o astro. Mas o sucesso seria
"post-mortem". Na formação do
mito foram investidos milhares de
dólares da Warner Bros.
No meio das filmagens de "Assim
Caminha a Humanidade", o forte
sentimento de frustração: "Hollywood é uma fábrica, mas eu não sou
uma máquina". Rebelde sem causa,
o jeito era escapar. O automóvel era
a grande arma. Que ele usou contra
si mesmo. Um dos grandes lemas da
época era: "Viva rápido, morra jovem e seja um belo cadáver". E ele
morreu. 30 de setembro de 1955.
Não tinha nem 25 anos. O impacto
de sua morte foi tão avassalador
quanto o da de Marilyn Monroe, sete anos depois. Mortes consideradas
"suicídio por inadvertência".
O mito só fez crescer nas décadas
seguintes. Seu "look" era perfeito: o
nariz, a estrutura óssea, o cabelo e
até a altura, mediana. Era um animal
belo e indomado, sim, mas frágil o
bastante para dar a impressão de
que poderia ser domesticado. Donde o conflito. Ser domesticado? De
jeito nenhum. No mais, era acentuadamente narcisista e sexualmente
ambíguo, causando forte atração em
ambos os sexos.
O diretor Nicholas Ray, que dirigiu
James Dean em "Juventude Transviada", disse mais tarde que o envolvimento do ator na criação de seu filme mais importante foi responsável
por muito do sucesso da fita. O interessante é que nesse filme sobre a juventude do dia, mesmo não tendo
usado nenhum rock em sua trilha
sonora (como seria de se esperar), a
música de Leonard Rosenman está
mais para uma sinfonia cósmico-melodramática e funciona na criação da atmosfera, que contou, na fotografia, com um estudo de cores em
vermelho e azul, numa combinação
tão abrasiva quanto a própria adolescência.
O efeito é profético e hipnótico -a
rebeldia juvenil, a androginia, a sexualidade reprimida, o auto erotismo, a solidão em família (o questionamento dos valores da geração dos
pais), o problema da delinqüência
juvenil no seio da classe média alta e
a fuga disso tudo pela velocidade.
Uma corrente de alternâncias e vulnerabilidade adolescente, do conturbado ao relaxado, como quem
pode desencadear uma erupção a
qualquer momento.
Antonio Bivar é escritor, dramaturgo e biógrafo, autor de "Yolanda" (ed. Girafa), "James Dean" (Brasiliense) e "As três primeiras
peças" (Atrito Art), entre outros livros.
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