São Paulo, domingo, 25 de setembro de 2005

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A INVENÇÃO DA VELOCIDADE

JAMES DEAN, MORTO HÁ 50 ANOS, ENCARNOU UMA ÉPOCA EMBALADA PELA AMPLIAÇÃO DA INDÚSTRIA AUTOMOBILÍSTICA, AMBIVALENTE ENTRE A REBELDIA E A SEXUALIDADE REPRIMIDA E QUE VISLUMBROU NOS CARROS UMA POSSIBILIDADE DE FUGA

ANTONIO BIVAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Era 30 de setembro de 1955, cinco e meia da tarde. O sol, uma bola de fogo. James Dean corria a umas 100 milhas por hora na Rota 466. Rolf, o mecânico, ao seu lado, começa a sentir sono. "Tudo certo?", pergunta Jimmy. "Tudo certo", responde Rolf, já quase dormindo, embalado pelo ruído monótono do motor.
Minutos depois, o Porsche Spyder aproxima-se do cruzamento da 466 com a 41. Um Ford sedã, indo na direção contrária, começa a dobrar a esquerda. O motorista, não avistando nenhum carro vindo, dobra. O Porsche de Jimmy vai feito raio. Jimmy diz a Rolf: "Aquele carro lá tem que parar, ele tem que nos ver". Repentinamente, um guinchar de freios e o choque terrível. 17h45. James Dean está morto.
A polícia e as perguntas. Rolf Wutherich, o mecânico alemão especialista em carros de corrida, ainda em Los Angeles, revisando o carro de Jimmy, colocara cinto de segurança apenas para o motorista. Na batida, o mecânico foi atirado fora do Porsche, sofrendo ferimentos leves. Jimmy, preso no assento -o impacto fora tão violento que teve o pescoço quebrado, fraturas múltiplas e lesões internas. A ambulância chega, mas é tarde demais. O rapaz que dirigia o outro carro, um estudante um ano mais novo que Jimmy, pálido, chorava: "Eu não tinha visto ele, juro que não tinha visto ele...".
Nos dias seguintes o mundo ficava sabendo da notícia. Quatro dias depois da tragédia, o corpo de James Byron Dean foi levado pelo pai de volta ao Estado de Indiana, a Fairmount, a cidadezinha onde nasceu, no centro-oeste. Cerca de 4.000 pessoas acompanharam o funeral, no dia 8 de outubro de 1955. O caixão foi carregado por quatro ex-colegas de ginásio até o cemitério, onde foi enterrado perto da mãe. Nesse mesmo dia, "Juventude Transviada" estreava em Nova York.
Apenas um dos três filmes estrelados por James Dean, "Vidas Amargas", havia sido lançado antes de sua morte. Do último, "Assim Caminha a Humanidade", recém terminado, Jimmy nem tinha completado a dublagem. O colega Nick Adams foi convocado para botar voz no personagem.
A influência de "Juventude Transviada" sobre a garotada se alastra pelo mundo nos anos seguintes. Brigas de faca, ruídos de motocicletas e corridas clandestinas de carro arrepiam tudo o que é cidade. No Brasil, esses jovens são chamados pelo título do filme. Cada família tinha a sua ovelha negra. Estava criado o culto. E o que é culto? É um fenômeno construído a partir do desejo coletivo, a confirmação de que algo de significativo ocorrera.
Jimmy estava morto, mas seu espírito permanecia onipresente. Ele deixara algo em que a juventude pudesse reconhecer a si própria. Milhares de jovens se produziam interior e exteriormente a ponto de serem réplicas perfeitas dele. Assemelhar-se a James Dean tornara-se uma obsessão entre os devotos. Fã-clubes espalhavam-se pelo mundo. E o mundo?

O caldeirão
O mundo em 1955 era assim: rolava a Guerra Fria. A indústria automobilística vivia seu boom também no Brasil. País que tinha petróleo tinha tudo. A juventude, dez anos do fim da Segunda Guerra, estava inquieta. Ou melhor, excitada. Uma classe média em ascensão -a classe do personagem de James Dean e colegas em "Juventude Transviada".
Na moda, um leque de opções. Do existencialismo francês e seu derivado norte-americano, a "beat generation", à facção mais testosteronada e intumescida, que ia de rock and roll, bolinha -excitantes para ficar acordado e tranqüilizantes para dormir- e cuba libre (rum e coca) para ganhar coragem. Antagonizavam o clamor do sexo e a repressão.
Se os jovens do filme de James Dean e dos subprodutos dele derivados, jovens da alta classe média, roubavam carros (e as garagens dos pais estavam cheias deles) para curras e rachas, os beatniks, supostamente mais intelectualizados e um pouco mais velhos (muitos já cursando faculdade ou as tendo abandonado), também sofriam da mesma obsessão: dirigir em alta velocidade, como bem atesta a bíblia beat, "On the Road" ["Pé na Estrada" (L&PM)], de Jack Kerouac.
Voar no asfalto era o "must". Ficar parado era apodrecer. Entrar num carro e escapar era viver. Ou morrer, como James Dean. O importante, como receita contra o tédio, era viver perigosamente. No Brasil tínhamos um herói: o Chico Landi. E uma mulher desafiava as pistas, uma mulher de nome Lula. Lula Gancia, mãe de Barbara (colunista da Folha).
No ritmo acelerado do novo tempo, os sonhos de consumo tinham muito a ver com o sonho americano. Marilyn dormia pelada só com o perfume Chanel número 5. Em 1956 surgia Elvis Presley requebrando os quadris e ensandecendo ainda mais a mocidade. Seu carisma será ainda maior que o de James Dean. No Brasil de JK, Brasília saía do papel e ganhava arquitetura; São Paulo era o pólo industrial. Novas estradas e rodovias cortavam o solo nacional.
Descer a estrada de Santos era fácil. Voava-se sobre o asfalto sem o menor esforço. O problema era a volta, a subida, o carburador pegando fogo, era preciso parar à beira de nascentes e jogar água fria até parar de sair fumaça. Era preciso ter saco. No fundo, com toda a aceleração dos novos tempos, quando se caía na real, via-se que ainda engatinhávamos. O Rio continuava ditando moda, mas a garota de Ipanema ainda estava de fralda. E no ziriguidum do samba em si, éramos felizes e até sabíamos.

Pressa
"Se eu tivesse cem anos para viver, eu ainda não teria tempo para fazer tudo o que quero", dizia James Dean numa entrevista. Parece que seus seguidores sentiam a mesma coisa. O "rebelde problemático" era o novo modelo. Um ano antes de "Juventude Transviada", um outro filme, "Sementes de Violência", produção barata da Metro, em preto-e-branco, com Vic Morrow, lançava o rock and roll ("Rock Around the Clock", cantado por Bill Halley) e mostrava adolescentes baderneiros pobres e da periferia urbana. Esse filme (com a ajuda da publicidade) induzia os jovens à explosão de vandalismo nos cinemas onde era exibido. O recém inaugurado Cine Paulista, na rua Augusta, foi depredado.
Era o ingênuo desejo da juventude local de "viver intensamente". Ao longo da rua Augusta, corrida a toda velocidade não respeitava sinal nem cruzamento. Os nossos filhinhos-de-papai imitavam os norte-americanos na "roleta paulista".
E James Dean? Bem, seu currículo de ator resume-se a algumas participações em teledramas na TV em Nova York, duas peças na Broadway -por uma delas, "O Imoralista", adaptada do livro de André Gide, Jimmy ganhou o prêmio de revelação do ano em 1954- e seis filmes, três deles em pontas insignificantes e os outros três, filmes classe A, dos quais foi o astro. Mas o sucesso seria "post-mortem". Na formação do mito foram investidos milhares de dólares da Warner Bros.
No meio das filmagens de "Assim Caminha a Humanidade", o forte sentimento de frustração: "Hollywood é uma fábrica, mas eu não sou uma máquina". Rebelde sem causa, o jeito era escapar. O automóvel era a grande arma. Que ele usou contra si mesmo. Um dos grandes lemas da época era: "Viva rápido, morra jovem e seja um belo cadáver". E ele morreu. 30 de setembro de 1955. Não tinha nem 25 anos. O impacto de sua morte foi tão avassalador quanto o da de Marilyn Monroe, sete anos depois. Mortes consideradas "suicídio por inadvertência".
O mito só fez crescer nas décadas seguintes. Seu "look" era perfeito: o nariz, a estrutura óssea, o cabelo e até a altura, mediana. Era um animal belo e indomado, sim, mas frágil o bastante para dar a impressão de que poderia ser domesticado. Donde o conflito. Ser domesticado? De jeito nenhum. No mais, era acentuadamente narcisista e sexualmente ambíguo, causando forte atração em ambos os sexos.
O diretor Nicholas Ray, que dirigiu James Dean em "Juventude Transviada", disse mais tarde que o envolvimento do ator na criação de seu filme mais importante foi responsável por muito do sucesso da fita. O interessante é que nesse filme sobre a juventude do dia, mesmo não tendo usado nenhum rock em sua trilha sonora (como seria de se esperar), a música de Leonard Rosenman está mais para uma sinfonia cósmico-melodramática e funciona na criação da atmosfera, que contou, na fotografia, com um estudo de cores em vermelho e azul, numa combinação tão abrasiva quanto a própria adolescência.
O efeito é profético e hipnótico -a rebeldia juvenil, a androginia, a sexualidade reprimida, o auto erotismo, a solidão em família (o questionamento dos valores da geração dos pais), o problema da delinqüência juvenil no seio da classe média alta e a fuga disso tudo pela velocidade. Uma corrente de alternâncias e vulnerabilidade adolescente, do conturbado ao relaxado, como quem pode desencadear uma erupção a qualquer momento.


Antonio Bivar é escritor, dramaturgo e biógrafo, autor de "Yolanda" (ed. Girafa), "James Dean" (Brasiliense) e "As três primeiras peças" (Atrito Art), entre outros livros.


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