São Paulo, domingo, 26 de março de 2000


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O italiano Galiani conta em "Da Moeda", obra publicada em 1751, a milenar história do dinheiro
Um abade na periferia do iluminismo

Oscar Pilagallo
da Reportagem Local

Ferdinando Galiani, contemporâneo de Adam Smith, não costuma ser citado no ensino do pensamento econômico. Mas, após a leitura de "Da Moeda", que antecedeu em um quarto de século "A Riqueza das Nações", é de se perguntar se esse italiano não merece mais do que uma nota de rodapé na história que reserva papel inaugural a seu colega escocês. É verdade que Galiani não tinha credenciais acadêmicas para figurar entre os grandes formuladores da chamada ciência econômica. Era um abade que escrevia a partir da periferia do Iluminismo europeu do século 18 e que, ao ser publicado, em 1751, tinha pouco mais de 20 anos. Com esse currículo pouco ortodoxo, não é de estranhar que tenha preferido que a obra saísse anônima. "Da Moeda", entretanto, não deixa transparecer essas desvantagens. A autoridade demonstrada pelo autor ao contar a milenar história do dinheiro resiste, se apreciada com perspectiva histórica, aos 250 anos que separam a primeira edição da recém-lançada tradução brasileira. Ferdinando Galiani (1728-1787) nasceu em Chieti, pequena cidade da costa do mar Adriático. Aos oito anos, cruzou a península e foi viver em Nápoles com um tio que era o arcebispo da cidade. Lá entrou em contato com as novas idéias econômicas provenientes da Inglaterra, França e Holanda.

Fim do domínio
A chegada de Galiani a Nápoles coincide com o fim de mais de dois séculos de domínio estrangeiro, primeiro dos espanhóis, a partir de 1503, e depois dos austríacos, entre 1707 e 1734, quando tornou-se independente sob a dinastia espanhola dos Bourbons. A capital do reino vivia um período de efervescência cultural e econômica liderado por dom Carlos, "rei das duas Sicílias", a quem Galiani dedica o livro. No plano cultural, o início de seu reinado é marcado pelas escavações nas cidades soterradas pela erupção do Vesúvio, em 79 d.C., com grande impacto sobre o conhecimento do mundo antigo. Apesar do ambiente favorável, havia um descontentamento que, aos olhos de Galiani, era infundado. O custo de vida havia subido e a população reclamava, fazendo com que o autor saísse em defesa do soberano. "Peço aos meus concidadãos que (...) se alegrem se a presença do próprio rei entre nós tem feito encarecer as coisas de maneira estável e produzido aquele excesso de despesas que é filho da opulência e da velocíssima circulação de dinheiro", escreve. Quando Nápoles era província, conclui, "os víveres eram mais baratos porque o dinheiro era gasto na corte longínqua".

Chapa branca
O livro não é, porém, um panfleto engajado a favor do monarca do dia escrito por um analista chapa branca, como se diria hoje. É antes um tratado ambicioso sobre questões monetárias em que a circunstância é usada para ilustrar sua concepção da moeda.
Intelectual antenado, correspondente de Diderot e Voltaire, que eram seus amigos, Galiani não só estava a par do debate da época como dele participava. Muito antes de Adam Smith criar a metáfora da mão invisível do mercado, ele havia chegado à mesma conclusão sobre a importância da oferta e da demanda na formação do preço. Não se trata de atribuir nova paternidade à economia clássica, mas de perceber que o liberalismo econômico era uma idéia que estava no ar.
Galiani também antecipou as críticas ao mercantilismo -ponto central da obra de Smith-, mas tinha uma visão peculiar do liberalismo, com ressalvas que levavam em conta o interesse do relativamente pobre reino de Nápoles, sem condições de competir com os maiores centros de poder da Europa. Assim, em relação ao comércio exterior, ele admitia o protecionismo, tendo enfrentado, em defesa da tese, os fisiocratas, influente grupo de economistas franceses favorável à total liberdade do comércio (de trigo, no caso) e, por isso, considerado predecessor de Adam Smith.
Essa não era a única divergência com seus pares mais notáveis durante os dez anos que, a partir de 1759, morou em Paris. Num tempo em que todos os sacrifícios pareciam suportáveis para a manutenção de uma moeda forte, Galiani defendia a desvalorização quando necessária, porque, afinal, "a verdadeira riqueza é o homem". Dizia temer menos os "depreciadores injustos" da moeda do que seus "idólatras infames". Esses últimos, afirmava, causam "graves males e erros, que podem levar os Estados à miséria e que, infelizmente, só chegam a ser conhecidos quando isso já ocorreu" -um comentário que poderia ser feito sobre experiências recentes de sobrevalorização da moeda.
Galiani escreve bem, e esse é mais um ponto em comum com Adam Smith, que, ao contrário da maioria dos economistas, se expressa com clareza. A retórica do autor italiano toca em seu limite quando ele aborda a questão dos juros. Como economista, percebe a inconsistência da crítica à remuneração de empréstimos; como religioso, não pode atacar abertamente os que condenam a usura, alvo preferencial da Igreja.
Diante do dilema, Galiani sai pela tangente ao argumentar que o ganho do credor é justificado pela incerteza de receber o emprestado. "Manter alguém em ansiedade significa causar-lhe dor, então é preciso pagá-lo. O que se chama fruto do dinheiro não é senão o preço da ansiedade", diz. E logo confessa: "Se continuasse a falar mais sobre esse assunto, iria ultrapassar os limites que me convém respeitar".
Embora datado, "Da Moeda" é um livro que se lê com prazer por quem se interessa pela gênese de debates que ainda hoje estão nas páginas dos jornais. E não deixa de ser didático, ao mostrar como um economista de um reino atrasado pode, sem renunciar a idéias modernas, ajudar seu povo e seu príncipe a enfrentar as potências estrangeiras, cujos interesses não são necessariamente os mesmos.



Da Moeda
412 págs., R$ 45,00 de Ferdinando Galiani. Tradução de Marzia Terenzi Vicentini. Segesta/Musa Editora (r. Cardoso de Almeida, 2.025, CEP 01251-001, SP, tel. 0/xx/11/ 3862-2586).




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