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O italiano Galiani conta em "Da Moeda", obra publicada em 1751, a milenar história do dinheiro
Um abade na periferia do iluminismo
Oscar Pilagallo
da Reportagem Local
Ferdinando Galiani, contemporâneo
de Adam Smith, não costuma ser citado no ensino do pensamento econômico. Mas, após a leitura de "Da Moeda", que antecedeu em um quarto de século "A Riqueza das Nações", é de se perguntar se esse italiano não merece mais
do que uma nota de rodapé na história
que reserva papel inaugural a seu colega
escocês.
É verdade que Galiani não tinha credenciais acadêmicas para figurar entre
os grandes formuladores da chamada
ciência econômica. Era um abade que escrevia a partir da periferia do Iluminismo europeu do século 18 e que, ao ser
publicado, em 1751, tinha pouco mais de
20 anos. Com esse currículo pouco ortodoxo, não é de estranhar que tenha preferido que a obra saísse anônima.
"Da Moeda", entretanto, não deixa
transparecer essas desvantagens. A autoridade demonstrada pelo autor ao contar
a milenar história do dinheiro resiste, se
apreciada com perspectiva histórica, aos
250 anos que separam a primeira edição
da recém-lançada tradução brasileira.
Ferdinando Galiani (1728-1787) nasceu em Chieti, pequena cidade da costa
do mar Adriático. Aos oito anos, cruzou
a península e foi viver em Nápoles com
um tio que era o arcebispo da cidade. Lá
entrou em contato com as novas idéias
econômicas provenientes da Inglaterra,
França e Holanda.
Fim do domínio
A chegada de Galiani a Nápoles coincide com o fim de
mais de dois séculos de domínio estrangeiro, primeiro dos espanhóis, a partir de
1503, e depois dos austríacos, entre 1707
e 1734, quando tornou-se independente
sob a dinastia espanhola dos Bourbons.
A capital do reino vivia um período de
efervescência cultural e econômica liderado por dom Carlos, "rei das duas Sicílias", a quem Galiani dedica o livro. No
plano cultural, o início de seu reinado é
marcado pelas escavações nas cidades
soterradas pela erupção do Vesúvio, em
79 d.C., com grande impacto sobre o conhecimento do mundo antigo.
Apesar do ambiente favorável, havia
um descontentamento que, aos olhos de
Galiani, era infundado. O custo de vida
havia subido e a população reclamava,
fazendo com que o autor saísse em defesa do soberano. "Peço aos meus concidadãos que (...) se alegrem se a presença do
próprio rei entre nós tem feito encarecer
as coisas de maneira estável e produzido
aquele excesso de despesas que é filho da
opulência e da velocíssima circulação de
dinheiro", escreve. Quando Nápoles era
província, conclui, "os víveres eram mais
baratos porque o dinheiro era gasto na
corte longínqua".
Chapa branca
O livro não é, porém,
um panfleto engajado a
favor do monarca do dia
escrito por um analista
chapa branca, como se diria hoje. É antes um tratado ambicioso sobre questões monetárias em que a
circunstância é usada para ilustrar sua concepção
da moeda.
Intelectual antenado, correspondente
de Diderot e Voltaire, que eram seus
amigos, Galiani não só estava a par do
debate da época como dele participava.
Muito antes de Adam Smith criar a metáfora da mão invisível do mercado, ele
havia chegado à mesma conclusão sobre
a importância da oferta e da demanda na
formação do preço. Não se trata de atribuir nova paternidade à economia clássica, mas de perceber que o liberalismo
econômico era uma idéia que estava no
ar.
Galiani também antecipou as críticas
ao mercantilismo -ponto central da
obra de Smith-, mas tinha uma visão peculiar
do liberalismo, com ressalvas que levavam em
conta o interesse do relativamente pobre reino de
Nápoles, sem condições
de competir com os maiores centros de poder da
Europa. Assim, em relação ao comércio exterior, ele admitia o
protecionismo, tendo enfrentado, em
defesa da tese, os fisiocratas, influente
grupo de economistas franceses favorável à total liberdade do comércio (de trigo, no caso) e, por isso, considerado predecessor de Adam Smith.
Essa não era a única divergência com
seus pares mais notáveis durante os dez
anos que, a partir de 1759, morou em Paris. Num tempo em que todos os sacrifícios pareciam suportáveis para a manutenção de uma moeda forte, Galiani defendia a desvalorização quando necessária, porque, afinal, "a verdadeira riqueza
é o homem". Dizia temer menos os "depreciadores injustos" da moeda do que
seus "idólatras infames". Esses últimos,
afirmava, causam "graves males e erros,
que podem levar os Estados à miséria e
que, infelizmente, só chegam a ser conhecidos quando isso já ocorreu" -um
comentário que poderia ser feito sobre
experiências recentes de sobrevalorização da moeda.
Galiani escreve bem, e esse é mais um
ponto em comum com Adam Smith,
que, ao contrário da maioria dos economistas, se expressa com clareza. A retórica do autor italiano toca em seu limite
quando ele aborda a questão dos juros.
Como economista, percebe a inconsistência da crítica à remuneração de empréstimos; como religioso, não pode atacar abertamente os que condenam a usura, alvo preferencial da Igreja.
Diante do dilema, Galiani sai pela tangente ao argumentar que o ganho do credor é justificado pela incerteza de receber o emprestado. "Manter alguém em
ansiedade significa causar-lhe dor, então
é preciso pagá-lo. O que se chama fruto
do dinheiro não é senão o preço da ansiedade", diz. E logo confessa: "Se continuasse a falar mais sobre esse assunto,
iria ultrapassar os limites que me convém respeitar".
Embora datado, "Da Moeda" é um livro que se lê com prazer por quem se interessa pela gênese de debates que ainda
hoje estão nas páginas dos jornais. E não
deixa de ser didático, ao mostrar como
um economista de um reino atrasado
pode, sem renunciar a idéias modernas,
ajudar seu povo e seu príncipe a enfrentar as potências estrangeiras, cujos interesses não são necessariamente os mesmos.
Da Moeda
412 págs., R$ 45,00
de Ferdinando Galiani. Tradução de Marzia Terenzi Vicentini.
Segesta/Musa Editora (r. Cardoso de Almeida, 2.025, CEP
01251-001, SP, tel. 0/xx/11/
3862-2586).
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