São Paulo, domingo, 26 de março de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ponto de fuga

A estação dos sons

Jorge Coli
especial para a Folha

Bom senso não é lá muito um atributo brasileiro. Pelo menos não em projetos e realizações públicas. Dessa perspectiva, a Orquestra Sinfônica do Estado e sua esplêndida sala na Estação Júlio Prestes, em SP, são o oposto das nossas maluquices. No Brasil inteiro brotam prédios faraônicos, onde os governos despejam cimento por toneladas, onde os custos sobem generosamente a alturas vertiginosas. Depois, esses mastodontes passam a eternidade afora buscando pateticamente uma função e um sentido: talvez o exemplo mais espetacular seja o Memorial da América Latina, em SP.
Com a Sinfônica não foi assim. A orquestra afirmou-se musicalmente, dentro de um calendário regular e frequente. O grande hall da Estação, com suas nobres colunas coríntias, foi bem adaptado para recebê-la, e, se a acústica não é perfeita, é melhor do que a de muitos auditórios famosos.
Programas escolhidos com inteligência introduzem obras raras em meio a um repertório mais conhecido, abrindo-se bastante para composições brasileiras. Há um projeto de gravá-las em CD, idéia fundamental para que nosso repertório torne-se familiar a nós mesmos. Um público sincero, sem esnobismos, agrega-se no seu amor pela música e na convicção de que cultura tem um sentido civilizador. Paira, em tudo, uma boa e firme convicção, sem nada das indiferenças burocráticas. Como diria Madame Mère, a mãe de Napoleão Bonaparte: tomara que tudo isso dure.

Sustenido - O maestro Roberto Minczuck é regente associado da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. Além de qualidades técnicas muito evidentes, ele possui algo raro, não muito fácil de se encontrar. Com personalidade, sabe avançar impondo um interesse constante ao discurso musical, sem jamais decair para o banal, o esperado ou o redundante. Há algumas semanas regeu, de modo admirável, o Concerto para Orquestra de Bartók, com a Juilliard Symphony, em Nova York. Em SP, dirigiu excertos de "Porgy and Bess", de Gershwin, e, mais recentemente, a "Missa Solemnis", de Beethoven.

Sabiá - Ela se chama Edna d'Oliveira. Possui timbre lindo, homogêneo. A isso se acrescenta um ouvido preciso e musicalidade, sentido do fraseado, do ritmo. Foi uma revelação, e um sucesso, cantando as partes para soprano de "Porgy and Bess", no concerto oferecido pela Sinfônica do Estado. É uma voz delicada, mas com o foco tão ajustado que alcançava as últimas fileiras da enorme sala da Estação Júlio Prestes.

Conversível - No filme "Os Três Reis", soldados americanos, durante a Guerra do Golfo, tentam matar o tédio. Não há mais tragédias, como no Vietnã, e jornalistas procuram, com desespero, algo sensacionalista para filmar. Ao fugir dos jogos políticos e militares, indo atrás do próprio interesse, um pequeno grupo serve de revelador para a infame amoralidade da guerra, na qual Bush não vale muito mais que Saddam Hussein. Humor, fotografia dura, invenções narrativas que não cessam, impedem o sentimentalismo nesse percurso de iniciação, ascendendo a uma plena convicção humanista. David O. Russel, o diretor, faz o âmbito individual, singular, desmascarar as instâncias gerais e abstratas. Velho tema: basta pensar em Stendhal ou Tolstói.
Com um sentido atualizado, porém, e demonstrando, de modo concreto, o sofrimento de cada um. O aspecto humano vai se reduzindo e se concentrando na violência, sem argumentos, do corpo mutilado. A câmera enfia-se em túneis para exibir os segredos avessos da guerra.
Do mesmo jeito, ela penetra dentro do corpo, dos órgãos atingidos, para expor, com frieza clínica, os mecanismos do ferimento, as causas individuais da dor e da morte.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com


Texto Anterior: + livros - Oscar Pilagallo: Um abade na periferia do iluminismo
Próximo Texto: + primeira leitura - Gilson Schwartz: A teoria da confiança
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.