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Ponto de fuga
A estação dos sons
Jorge Coli
especial para a Folha
Bom senso não é lá muito um atributo brasileiro. Pelo menos não em
projetos e realizações públicas. Dessa
perspectiva, a Orquestra Sinfônica do
Estado e sua esplêndida sala na Estação Júlio Prestes, em SP, são o oposto
das nossas maluquices. No Brasil inteiro brotam prédios faraônicos, onde
os governos despejam cimento por
toneladas, onde os custos sobem generosamente a alturas vertiginosas.
Depois, esses mastodontes passam a
eternidade afora buscando pateticamente uma função e um sentido: talvez o exemplo mais espetacular seja o
Memorial da América Latina, em SP.
Com a Sinfônica não foi assim. A orquestra afirmou-se musicalmente,
dentro de um calendário regular e frequente. O grande hall da Estação, com
suas nobres colunas coríntias, foi bem
adaptado para recebê-la, e, se a acústica não é perfeita, é melhor do que a de
muitos auditórios famosos.
Programas escolhidos com inteligência introduzem obras raras em
meio a um repertório mais conhecido, abrindo-se bastante para composições brasileiras. Há um projeto de
gravá-las em CD, idéia fundamental
para que nosso repertório torne-se familiar a nós mesmos. Um público sincero, sem esnobismos, agrega-se no
seu amor pela música e na convicção
de que cultura tem um sentido civilizador. Paira, em tudo, uma boa e firme convicção, sem nada das indiferenças burocráticas. Como diria Madame Mère, a mãe de Napoleão Bonaparte: tomara que tudo isso dure.
Sustenido - O maestro Roberto
Minczuck é regente associado da Orquestra Sinfônica do Estado de São
Paulo. Além de qualidades técnicas
muito evidentes, ele possui algo raro,
não muito fácil de se encontrar. Com
personalidade, sabe avançar impondo um interesse constante ao discurso
musical, sem jamais decair para o banal, o esperado ou o redundante. Há
algumas semanas regeu, de modo admirável, o Concerto para Orquestra
de Bartók, com a Juilliard Symphony,
em Nova York. Em SP, dirigiu excertos de "Porgy and Bess", de Gershwin,
e, mais recentemente, a "Missa Solemnis", de Beethoven.
Sabiá - Ela se chama Edna d'Oliveira. Possui timbre lindo, homogêneo.
A isso se acrescenta um ouvido preciso e musicalidade, sentido do fraseado, do ritmo. Foi uma revelação, e um
sucesso, cantando as partes para soprano de "Porgy and Bess", no concerto oferecido pela Sinfônica do Estado. É uma voz delicada, mas com o
foco tão ajustado que alcançava as últimas fileiras da enorme sala da Estação Júlio Prestes.
Conversível - No filme "Os Três
Reis", soldados americanos, durante
a Guerra do Golfo, tentam matar o tédio. Não há mais tragédias, como no
Vietnã, e jornalistas procuram, com
desespero, algo sensacionalista para
filmar. Ao fugir dos jogos políticos e
militares, indo atrás do próprio interesse, um pequeno grupo serve de revelador para a infame amoralidade da
guerra, na qual Bush não vale muito
mais que Saddam Hussein. Humor,
fotografia dura, invenções narrativas
que não cessam, impedem o sentimentalismo nesse percurso de iniciação, ascendendo a uma plena convicção humanista. David O. Russel, o diretor, faz o âmbito individual, singular, desmascarar as instâncias gerais e
abstratas. Velho tema: basta pensar
em Stendhal ou Tolstói.
Com um sentido atualizado, porém,
e demonstrando, de modo concreto,
o sofrimento de cada um. O aspecto
humano vai se reduzindo e se concentrando na violência, sem argumentos,
do corpo mutilado. A câmera enfia-se
em túneis para exibir os segredos
avessos da guerra.
Do mesmo jeito, ela penetra dentro
do corpo, dos órgãos atingidos, para
expor, com frieza clínica, os mecanismos do ferimento, as causas individuais da dor e da morte.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com
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