São Paulo, domingo, 26 de março de 2000


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Leia um trecho do livro "O Capital em Jogo - Fundamentos Filosóficos da Especulação Financeira", do economista Gilson Schwartz, que será lançado amanhã em São Paulo
A teoria da confiança

Gilson Schwartz

John Maynard Keynes é considerado um fundador da noção contemporânea de política econômica. E é visto como um forte crítico interno da teoria econômica clássica. Mas, se a política econômica é um campo normativo em contraposição à teoria positiva, como se combinam essas duas dimensões? Ganham evidência os contrapontos entre teoria e prática, lógica e aplicação, modelo e contexto.
Keynes, em Cambridge, interlocutor de Bertrand Russell e amigo de Ludwig Wittgenstein (todos atormentados pela percepção de uma crise civilizatória), começou desde cedo a conviver com a discussão das "regras do jogo" do Padrão Ouro.
A Política Econômica coloca em primeiro plano o debate sobre uma lógica e sua aplicação e, ao mesmo tempo, nesse contexto, a economia só faz sentido como uma prática de seguir regras cuja eficácia depende do contexto. São problemas análogos aos tratados por Wittgenstein na sua crítica à "fundamentação" lógica da matemática. O que é ou não aplicável depende não apenas de uma questão de engenharia ou cálculo, mas de uma forma de vida que se supõe respeitável e, no limite, inquestionável.
No estudo da política econômica, a transformação da economia numa realidade mais próxima à da linguagem, do pensamento e da lógica é enorme. Caricaturalmente, pode-se dizer que a economia torna-se nada mais que um sistema de símbolos cujo sentido está recorrentemente subordinado à maneira como a informação pode ser decodificada.
A política econômica define um "campo" (no sentido sociológico do conceito) no interior do qual o cálculo econômico pode fazer sentido -ainda que a cada momento a forma de vida capitalista se transforme.

 
A crítica da economia como falta de política exige uma Teoria da Política Econômica em substituição tanto à Economia Política Clássica quanto à Economia Pura. Nesse sentido, a economia e seu estudo devem abrir mão da busca de um "fundamento" (como o trabalho, a tecnologia, o Estado ou o mercado) e devem abrir-se ao debate prático sobre a fragilidade de todo fundamento possível. A realidade econômica mostra-se também como uma realidade comunicativa ou informacional, epistêmica ou linguística.
Ocorre que nas duas matrizes antagônicas do pensamento econômico moderno (que poderíamos caricaturar como Economia Política Clássica e Economia Pura) a política e em particular a política econômica foram às vezes escandalosamente amputadas em nome de formas variadas de objetividade científica -sempre em busca de uma argumentação que se pretende puramente lógica e se supõe capaz de guardar a devida distância das questões normativas (na economia pura) ou da ideologia burguesa (na economia política). E frequentemente todo o edifício conceitual, nas duas vertentes antagônicas, repousa sobre um "fundamento" derivado de uma teoria do valor. Já em Keynes o normativo, o convencional, o institucional e, de modo geral, o público saem da condição de resíduos pressupostos.
Na vida prática são comuns as situações que "escapam à lógica". É como se o capitalismo acumulasse traumas e atos falhos suscetíveis a terapias. A política econômica é um artefato por meio do qual sujeitos sociais reais disputam a primazia na condução dessas "terapias".
A economia capitalista é para Keynes sobretudo uma dinâmica organizacional que se desdobra através das contradições entre incerteza financeira e convenções monetárias, ou seja, de acertos e desacertos entre a temporalidade e as instituições que administram o tempo convencional.
Percebe-se assim com Keynes que o tempo não é neutro, nem passa impunemente. Como reconciliar tempo e lógica, mudança (instabilidade) e forma (estabilidade)? Eis a questão que está presente no debate filosófico (lógico e linguístico) do qual Keynes participa em Cambridge e que tinha em Wittgenstein a grande novidade (o espaço da linguagem passa a ser concebido como forma de vida).
Entretanto, apesar da temporalidade ser crucial na análise econômica, tanto clássicos e neoclássicos quanto marxistas e mesmo schumpeterianos tentam salvaguardar a responsabilidade da lógica econômica pura como âncora da racionalidade instrumental que decifra o tempo ao limite de torná-lo irrelevante, residual ou derivado.
O efeito imediato, mas duradouro, desse logicismo (no caso, economicismo) é a própria negação da lógica, pois o seu enunciado é uma contradição em termos. O logicismo é, na prática, um antilogicismo e, em ocasiões mais trágicas, um logicismo suicida (o suicídio pode ser coletivo). E, ao negar a vida, o logicismo economicista descarta igualmente, se não mutila, a política e a cultura, que se tornam derivações formais da própria economia. Keynes foi um autor de economia que superou a economia, depois de uma investigação sobre a lógica da probabilidade. A defesa da Política Econômica como campo fundamental da economia foi a resposta de Keynes à impossibilidade de uma teoria econômica aprisionada a um pseudofundamento lógico. Se há uma "história" relevante que precisa ser lembrada para legitimar esse exercício de interpretação é a da crise da hegemonia inglesa no final do século 19, com a emergência e a consolidação do Banco da Inglaterra como um banco central mundial "avant la lettre" (regime conhecido como Padrão Ouro).

Momento limite
Há, tanto do ponto de vista histórico quanto do lógico, uma problemática central: o amadurecimento na economia ocidental moderna de uma prática pública de instituição de regras. No campo da filosofia dos sistemas econômicos, tanto o marxismo como o liberalismo vêem na sociedade capitalista um momento limite da operação de uma norma. A tradição marxista procura uma etapa posterior e, de preferência, "superior" à norma existente. A tradição liberal festeja a realização sempre pressuposta de um ideal de equilíbrio. Ainda que de modo antagônico, nas duas tradições a Ordem Capitalista é um ponto final. Keynes rejeita as duas tradições: o capitalismo liberal (politicamente, ou seja, democrático), não necessariamente ordenado, é a cada momento um novo início, é a reiteração de inícios e a abertura de possibilidades cujo teor só faz sentido mediante processos econômicos e institucionais de negociação estratégica. Mas, contra os marxistas, a crise não se afigura como oportunidade para uma inversão dialética num sistema contrário, e sim como risco de ruptura, caos e destruição. A linguagem (ou momento discursivo, informacional, comunicativo) que resume e reabre recorrentemente esse jogo negocial é a política econômica. Persuasão, confiança, convenções são elementos "extralógicos" essenciais na lógica de seguir regras. Uma lógica em que a contradição entre o modelo e sua aplicação define o jogo. É preciso "confiar" no modelo. Mas a confiança, como o crédito em Marx, é uma das formas da contradição. E sistemas contraditórios não podem subsistir, não são estáticos e, na sua dinâmica, abrem-se ao tempo sempre político de novos modelos e novas aplicações.

Construção do mundo
Se não há uma "Ciência da Ética", é preciso cautela redobrada diante das pretensões de formulação de uma ciência da economia. A obra de Keynes situa-se num cruzamento entre conhecimento e crença. Acreditar é uma condição necessária para o saber. Ou, como dizia Mark Twain, para conhecer o mundo eu preciso construí-lo.
O pensamento e a política cruzam-se numa espécie de "sedução racional", aliás antiga na história da Economia Política Clássica. Mas, se Adam Smith havia cunhado a teoria da Simpatia, J.M. Keynes focalizou a Confiança. E não ficou, como Smith, apegado à dimensão positiva do conceito, à solidariedade inquebrantável que ele sugere. Hobbesiano, Keynes tinha a memória do medo pânico.
Por caminhos diferentes, Keynes, como Smith, atentou para as relações entre atividade econômica e fundamentos da contratualidade. A instância da contratualidade não é a descrição de instrumentos jurídicos ou instituições reguladoras, embora remeta a esses elementos concretos. Teoricamente, a contratualidade é a possibilidade de entendimento, ou seja, algum consenso. Consenso que é a eleição de um cenário em que, por todos acreditarem na sua viabilidade, torna-se realidade. É um "wishfull thinking" de proporções leviatânicas.
A construção de cenários se dá numa sociedade de massas, onde a formação da opinião pública e dos consensos de mercado (especialmente dos mercados de capitais) é decisiva no rumo dos acontecimentos.
A existência de uma política econômica é ao mesmo tempo instauração de um campo onde ocorre em público o jogo de linguagem por meio do qual se vai simulando esse "wishfull thinking". Entre o conflito cego e os ideais de harmonia universal surge assim um momento aberto à lógica da representação, da busca de uma medida comum.
A existência da política econômica assume portanto o caráter de âncora ética do pensamento de Keynes. O refúgio privatista na racionalidade dos mercados ainda é o risco maior para o Bem Público da nossa era, na medida em que são recorrentes as ameaças de ruptura num padrão minimamente civilizado de confecção de solidariedades. O golpe, a guerra ou o "pacote" irrompem como bombas informacionais que abalam os fundamentos da comunicabilidade e, portanto, da própria contratualidade.
Como orquestrar o extravasamento dos "espíritos animais", transformando impulsos primários em acordos civilizados, ainda que sabidamente temporários e precários? Em que medida o surgimento das sociedades de massa e o desenvolvimento dos meios de comunicação e processamento de informação não contribuem e tornam irreversível a vivência cotidiana dessa dimensão pública da economia, ainda que nem sempre ou necessariamente estatal?
Até que ponto ainda é possível retomar a construção de futuros mediada por uma consciência ampliada das relações sociais?


LANÇAMENTO
"O Capital em Jogo" (Ed. Campus), de Gilson Schwartz, será lançado amanhã, a partir das 19h, em São Paulo, na Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, tel. 0/xx/11/285-4033).




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