São Paulo, domingo, 27 de março de 2005

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"Viajar na nossa realidade não pode ser agradável", diz Bianchi

DO COLUNISTA DA FOLHA

Cada novo filme de Sérgio Bianchi é garantia de polêmica ou, no mínimo, de desconforto. Depois dos contundentes "A Causa Secreta" (1995) e "Cronicamente Inviável" (2001), o cineasta paranaense radicado em São Paulo prepara-se para lançar outro petardo, "Quanto Vale ou É por Quilo?", com estréia prevista para 13 de maio.
Inspirado vagamente no conto "Pai e Mãe", de Machado de Assis, o novo longa alterna dois tempos históricos: os últimos anos da escravidão, no século 19, e os dias atuais. Em ambos, os miseráveis são tratados como mercadoria. Bianchi concedeu esta entrevista na semana passada, quando finalizava a mixagem de seu filme.

Folha - Como você definiria seu novo filme?
Sérgio Bianchi -
Ele tem a mesma linguagem de "Cronicamente Inviável", porque, no fundo, a gente sempre faz o mesmo filme. É um pouco mais trabalhado, mais bem feito, no sentido do cuidado de época numa boa parte. Foi mais gaudioso trabalhar com os atores. Havia muitos atores. E, como eu tinha uma estrutura um pouco melhor de produção, trabalhei mais os atores, que é uma coisa de que gosto muito.
Acho que tem coisas legais no filme. Essa coisa do negócio da caridade, ou melhor, do terceiro setor. Essa coisa de ganhar dinheiro em cima de pobre. Da movimentação de toda a estrutura burguesa, que sobrevive em cima da existência de criança abandonada e de mendigo.

Folha - Então você manteve a idéia das ONGs que fazem trabalho "filantrópico"?
Bianchi -
Ficou isso, mas ficaram as três classes: a classe alta, que é seqüestrada, a classe média, que é trambiqueira em cima disso, que tem os pequenos lucros, e há os empregados que trabalham, os operários que fazem o trabalho braçal, distribuem comida na rua e tal. No filme, tudo se mistura.
Ficou mais a idéia do uso do ser humano como mercado. Um jogo de classes. As classes que faturam com isso e que capitalizam em cima da existência do destituído, do marginalizado, enfim, do escravo.

Folha - Como surgiu a idéia do filme? Foi a partir do conto de Machado de Assis ou este entrou num projeto já esboçado?
Bianchi -
Por uma certa preguiça ou inadaptação mental, eu sempre parto de um gancho. Mas o gancho do Machado é uma espécie de amor, de louvor a ele. No fundo não é nada machadiano. Eu mudo tanto no meio do caminho. Mas há certas ironias dele.

Folha - É o segundo conto de Machado que inspira um longa-metragem seu. O outro foi "A Causa Secreta"...
Bianchi -
Gosto muito das entrelinhas dele. Batem muito com a minha forma de ver a realidade. Às vezes é só uma frase que me inspira, mas aí também tem a história, que eu também uso. Para a minha cabeça, essa coisa de enredo, de romance, é tão defasada que eu não consigo muito. E existe essa armadilha, essa tranca, no cinema de hoje: tem que contar uma história.

Folha - Os temas dos seus filmes, esses temas mais críticos, mais indigestos, mais desagradáveis mesmo, eles se impõem a você?
Bianchi -
É minha observação da realidade. Não sei se são desagradáveis. Mesmo o cinema norte-americano, tão adorado pelos colonizados, é bastante crítico da sociedade de seu país. Não todos, claro. Mas tem coisas muito críticas.
Aqui há o atraso de tentar achar uma fórmula. Agora tem esse movimento de fazer filmes que são um prolongamento da telenovela. Não sei quanto tempo vai durar isso. Sabe propaganda enganosa?

Folha - Você disse que o próprio cinema dos EUA trata de temas importantes da realidade social...
Bianchi -
Sempre houve filmes norte-americanos que mexeram com a realidade. Mas, como aqui não é hábito -a não ser dentro de parâmetros ideologicamente bastante restritos ou em clichês vagabundos-, se você foge disso, faz, como você disse, uma coisa desagradável. Não entendi: por que é desagradável?

Folha - Os temas são desagradáveis.
Bianchi -
Sim, mas viajar na nossa realidade não pode ser agradável. São pesados por causa da formatação que faço da realidade. Não sou muito "otimista".

Folha - O fato de um filme tratar de temas sociais relevantes não garante que seja um filme crítico, não é? Muitas vezes esse tipo de tema é tratado de maneira superficial, edulcorada...
Bianchi -
Bom, tinha a maneira rastaqüera, inferior, mal trabalhada, e tem a cosmética, agora, que trata de coisas sérias como se fossem geração espontânea. Usa toda a linguagem de Hollywood para emocionar e envolver em cima do que é ruim no cinema norte-americano. Não sei se você vê televisão.
Tenho visto as "sitcoms" e séries da Sony, da Universal, AXN, essas coisas, e é tudo baixaria. Baixaria da pesada. Agora 50% é pedofilia, então você assiste durante 40 minutos à tragédia do garoto estuprado. Muito bem feitos. E, no final, como sempre, tem a redenção. A pessoa má se ferra, mas no fundo puxa o lado de identificação pela emoção, entendeu? Um pouco críticos do politicamente correto, mas um pouco para as pessoas se envolverem com o lado pernicioso e escroto. O Brasil fez a fórmula, e ela se abriu lá fora.
Você faz, então, a nossa barbárie e a trata como geração espontânea. Não consegue entender por que aconteceu isso. Não há nem uma visão ideologicamente comprometida, quer dizer: "Isso acontece por causa disso, disso e disso". Não. Acontece. Emocione-se agora com uma criança matando, estuprando. E bem feito. Bem montado, bem sonorizado, bem tudo.

Folha - Entrando na questão do cinema político em sentido estrito, como o de Costa-Gavras. Você acha que é possível conciliar o entretenimento, o espetáculo, com a reflexão, como ele tenta?
Bianchi -
Vários tentam, não só o Costa-Gavras, mas a coisa ali é mais partidária. Uma visão de reformar o mundo. Eu não sei. Não vi o novo filme de Costa-Gavras.

Folha - Falo dos filmes que se pretendem críticos do establishment, mas que usam linguagem de filme de entretenimento. Isso não sabota a própria intenção explícita?
Bianchi -
Acaba diluindo, acho, não sei. Quando usam a mesma fórmula, acaba ficando tudo igual. É isso? Você dilui, passa a ser palatável. Você não percebeu os ecologistas brasileiros, como se tornaram palatáveis e inconseqüentes? Eles se tornaram aristocratas, não é isso?
Pessoas muito ricas colecionavam vasos Gallé, porque o cara fez tantos vasos, morreu, só tinha aqueles. E são belíssimos. Agora, você tem um bando de gente que vira ecologista. Por quê? Porque têm dinheiro e compram um pedaço de terra que tem um riacho ainda perfeito. Virou uma grife. Isso, para mim, não tem nada de ecologia. É uma aristocracia que se embevece de possuir e viver certas coisas que estão acabando.

Folha - Voltando ao cinema: que tipo de cinema político lhe interessa ou emociona? Glauber Rocha, Godard, Bertolucci?
Bianchi -
Eu não sou de assistir a muita coisa. Não sou culturalista, nesse sentido. Acho que um filme que fala da realidade e suas contradições é legal. Acho interessante colocar várias visões, várias ironias em cima da coisa e deixar as pessoas pensarem. Quando é uma coisa encaminhada, receituária, eu rejeito. Porque já caíram todas as receitas. Estamos num estado muito mais de barbárie coletiva, de esgarçamento da ética. Não suporto mais gente otimista e gente com receituário "político". Fazer tal filme para mudar o mundo. Não muda nada. (JGC)


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