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"Viajar na nossa realidade não pode ser agradável", diz Bianchi
DO COLUNISTA DA FOLHA
Cada novo filme de Sérgio
Bianchi é garantia de polêmica ou, no mínimo, de desconforto. Depois dos contundentes "A Causa Secreta" (1995)
e "Cronicamente Inviável" (2001), o
cineasta paranaense radicado em
São Paulo prepara-se para lançar
outro petardo, "Quanto Vale ou É
por Quilo?", com estréia prevista para 13 de maio.
Inspirado vagamente no conto
"Pai e Mãe", de Machado de Assis, o
novo longa alterna dois tempos históricos: os últimos anos da escravidão, no século 19, e os dias atuais.
Em ambos, os miseráveis são tratados como mercadoria. Bianchi concedeu esta entrevista na semana passada, quando finalizava a mixagem
de seu filme.
Folha - Como você definiria seu novo filme?
Sérgio Bianchi - Ele tem a mesma
linguagem de "Cronicamente Inviável", porque, no fundo, a gente sempre faz o mesmo filme. É um pouco
mais trabalhado, mais bem feito, no
sentido do cuidado de época numa
boa parte. Foi mais gaudioso trabalhar com os atores. Havia muitos
atores. E, como eu tinha uma estrutura um pouco melhor de produção,
trabalhei mais os atores, que é uma
coisa de que gosto muito.
Acho que tem coisas legais no filme. Essa coisa do negócio da caridade, ou melhor, do terceiro setor. Essa
coisa de ganhar dinheiro em cima de
pobre. Da movimentação de toda a
estrutura burguesa, que sobrevive
em cima da existência de criança
abandonada e de mendigo.
Folha - Então você manteve a idéia
das ONGs que fazem trabalho "filantrópico"?
Bianchi - Ficou isso, mas ficaram as
três classes: a classe alta, que é seqüestrada, a classe média, que é
trambiqueira em cima disso, que
tem os pequenos lucros, e há os empregados que trabalham, os operários que fazem o trabalho braçal, distribuem comida na rua e tal. No filme, tudo se mistura.
Ficou mais a idéia do uso do ser
humano como mercado. Um jogo
de classes. As classes que faturam
com isso e que capitalizam em cima
da existência do destituído, do marginalizado, enfim, do escravo.
Folha - Como surgiu a idéia do filme? Foi a partir do conto de Machado
de Assis ou este entrou num projeto já
esboçado?
Bianchi - Por uma certa preguiça
ou inadaptação mental, eu sempre
parto de um gancho. Mas o gancho
do Machado é uma espécie de amor,
de louvor a ele. No fundo não é nada
machadiano. Eu mudo tanto no
meio do caminho. Mas há certas ironias dele.
Folha - É o segundo conto de Machado que inspira um longa-metragem
seu. O outro foi "A Causa Secreta"...
Bianchi - Gosto muito das entrelinhas dele. Batem muito com a minha forma de ver a realidade. Às vezes é só uma frase que me inspira,
mas aí também tem a história, que
eu também uso. Para a minha cabeça, essa coisa de enredo, de romance,
é tão defasada que eu não consigo
muito. E existe essa armadilha, essa
tranca, no cinema de hoje: tem que
contar uma história.
Folha - Os temas dos seus filmes, esses temas mais críticos, mais indigestos, mais desagradáveis mesmo, eles
se impõem a você?
Bianchi - É minha observação da
realidade. Não sei se são desagradáveis. Mesmo o cinema norte-americano, tão adorado pelos colonizados, é bastante crítico da sociedade
de seu país. Não todos, claro. Mas
tem coisas muito críticas.
Aqui há o atraso de tentar achar
uma fórmula. Agora tem esse movimento de fazer filmes que são um
prolongamento da telenovela. Não
sei quanto tempo vai durar isso. Sabe propaganda enganosa?
Folha - Você disse que o próprio cinema dos EUA trata de temas importantes da realidade social...
Bianchi - Sempre houve filmes norte-americanos que mexeram com a
realidade. Mas, como aqui não é hábito -a não ser dentro de parâmetros ideologicamente bastante restritos ou em clichês vagabundos-,
se você foge disso, faz, como você
disse, uma coisa desagradável. Não
entendi: por que é desagradável?
Folha - Os temas são desagradáveis.
Bianchi - Sim, mas viajar na nossa
realidade não pode ser agradável.
São pesados por causa da formatação que faço da realidade. Não sou
muito "otimista".
Folha - O fato de um filme tratar de
temas sociais relevantes não garante
que seja um filme crítico, não é? Muitas vezes esse tipo de tema é tratado
de maneira superficial, edulcorada...
Bianchi - Bom, tinha a maneira
rastaqüera, inferior, mal trabalhada,
e tem a cosmética, agora, que trata
de coisas sérias como se fossem geração espontânea. Usa toda a linguagem de Hollywood para emocionar
e envolver em cima do que é ruim no
cinema norte-americano. Não sei se
você vê televisão.
Tenho visto as "sitcoms" e séries
da Sony, da Universal, AXN, essas
coisas, e é tudo baixaria. Baixaria da
pesada. Agora 50% é pedofilia, então
você assiste durante 40 minutos à
tragédia do garoto estuprado. Muito
bem feitos. E, no final, como sempre,
tem a redenção. A pessoa má se ferra, mas no fundo puxa o lado de
identificação pela emoção, entendeu? Um pouco críticos do politicamente correto, mas um pouco para
as pessoas se envolverem com o lado
pernicioso e escroto. O Brasil fez a
fórmula, e ela se abriu lá fora.
Você faz, então, a nossa barbárie e
a trata como geração espontânea.
Não consegue entender por que
aconteceu isso. Não há nem uma visão ideologicamente comprometida, quer dizer: "Isso acontece por
causa disso, disso e disso". Não.
Acontece. Emocione-se agora com
uma criança matando, estuprando.
E bem feito. Bem montado, bem sonorizado, bem tudo.
Folha - Entrando na questão do cinema político em sentido estrito, como o de Costa-Gavras. Você acha que
é possível conciliar o entretenimento,
o espetáculo, com a reflexão, como
ele tenta?
Bianchi - Vários tentam, não só o
Costa-Gavras, mas a coisa ali é mais
partidária. Uma visão de reformar o
mundo. Eu não sei. Não vi o novo filme de Costa-Gavras.
Folha - Falo dos filmes que se pretendem críticos do establishment,
mas que usam linguagem de filme de
entretenimento. Isso não sabota a
própria intenção explícita?
Bianchi - Acaba diluindo, acho,
não sei. Quando usam a mesma fórmula, acaba ficando tudo igual. É isso? Você dilui, passa a ser palatável.
Você não percebeu os ecologistas
brasileiros, como se tornaram palatáveis e inconseqüentes? Eles se tornaram aristocratas, não é isso?
Pessoas muito ricas colecionavam
vasos Gallé, porque o cara fez tantos
vasos, morreu, só tinha aqueles. E
são belíssimos. Agora, você tem um
bando de gente que vira ecologista.
Por quê? Porque têm dinheiro e
compram um pedaço de terra que
tem um riacho ainda perfeito. Virou
uma grife. Isso, para mim, não tem
nada de ecologia. É uma aristocracia
que se embevece de possuir e viver
certas coisas que estão acabando.
Folha - Voltando ao cinema: que tipo de cinema político lhe interessa ou
emociona? Glauber Rocha, Godard,
Bertolucci?
Bianchi - Eu não sou de assistir a
muita coisa. Não sou culturalista,
nesse sentido. Acho que um filme
que fala da realidade e suas contradições é legal. Acho interessante colocar várias visões, várias ironias em
cima da coisa e deixar as pessoas
pensarem. Quando é uma coisa encaminhada, receituária, eu rejeito.
Porque já caíram todas as receitas.
Estamos num estado muito mais de
barbárie coletiva, de esgarçamento
da ética. Não suporto mais gente otimista e gente com receituário "político". Fazer tal filme para mudar o
mundo. Não muda nada.
(JGC)
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