São Paulo, domingo, 27 de março de 2005

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"Mostrei os guerrilheiros como seres falíveis, e não como caricaturas", diz Venturi

DO COLUNISTA DA FOLHA

Autor do documentário "O Velho - História de Luiz Carlos Prestes" (1997) e do drama moral "Latitude Zero" (1999), o paulista Toni Venturi lança, em 15 de abril, seu novo filme, "Cabra-Cega". É um "huis clos" político, no qual um guerrilheiro ferido se esconde num apartamento, enquanto, do lado de fora, o regime militar esmaga as organizações de esquerda.
"Cabra-Cega" ganhou vários prêmios no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, incluindo os de direção, roteiro, ator (Leonardo Medeiros) e do público.

Folha - Como surgiu a idéia de filmar "Cabra-Cega"?
Toni Venturi -
Revendo "O Velho", senti que havia tratado de forma superficial o episódio da resistência armada contra o regime militar. Meu chapa Fernando Bonassi me falou de uma idéia do Roberto Moreira ("Contra Todos"): um homem fechado, enlouquecendo de solidão, no turbilhão da ditadura.
Bonassi e Victor Navas desenvolveram o argumento. Fui atrás de mais material, fiz uma longa pesquisa, que gerou o documentário "No Olho do Furacão", um trabalho a quatro mãos com Renato Tapajós, ex-Ala Vermelha [grupo surgido da cisão do PC do B durante a ditadura]. Esse material bruto serviu para o Di Moretti e eu chegarmos ao roteiro final. Procurei fazer um filme realista e dinâmico (elipses temporais e espaciais, música eletrônica dos hits da época) para os jovens de hoje, que pouco sabem sobre o período. O ponto de vista é o cotidiano do "aparelho", o centro isolado e um mundo ("off screen") em decomposição, que se fecha inexoravelmente.

Folha - "Cabra-Cega" se insere num conjunto de filmes que têm tentado rever os chamados "anos de chumbo" da vida política brasileira. Por que está ocorrendo essa revisão 20 anos depois do final da ditadura?
Venturi -
A brutal violência praticada pelo Estado contra os brasileiros da classe média e operários no período é pouco conhecida da maioria. É necessário conhecer essa história, não com espírito de revanchismo, mas para entender bem, para que nunca mais aconteça de novo. "Cabra-Cega" procura mostrar os guerrilheiros como seres humanos (falíveis e vitais), e não caricaturas toscas de jovens teleguiados por Cuba.
O filme também aponta para o fato de que, apesar das perdas e do alto custo, vale a pena lutar por algo em que se acredita. Só os recentes "Ação entre Amigos", do Beto Brant, "Conspiração do Silêncio", do Ronaldo Duque, e "Quase Dois Irmãos", da Lúcia Murat, escapam do maniqueísmo infantil dos outros filmes que tentaram abordar a época.

Folha - Você não acha que essa revisita à história do confronto entre guerrilhas e regime militar pode ter um efeito catártico?
Venturi -
Gostaria até que os filmes que estão chegando provocassem algum impacto transformador, mas isso não vai acontecer. Nossos filmes ficarão relegados ao gueto de costume (circuito de salas "cult") e serão parte do mosaico estilhaçado da história dos derrotados. Hoje em dia, para galvanizar efeitos catárticos coletivos numa sociedade midiática e globalizada, só atos extraordinários e hediondos como os do maior encenador da atualidade, Bin Laden.


"Cabra-Cega" é realista e dinâmico, para aqueles que pouco sabem do período


Folha - Não teme que você e o roteirista Di Moretti, jovens para ter vivido a época narrada do filme, sejam acusados de não conhecer "de primeira mão" as situações retratadas?
Venturi -
Não somos tão jovens assim. Em 68, participei das passeatas como estudante do Ginásio Vocacional. Colhemos 11 longos depoimentos de ex-guerrilheiros, que reconstruíram suas vidas, a matéria-prima das histórias costuradas no roteiro. Tivemos a consultoria formal de Alípio Freire, escritor e ex-Ala Vermelha. E também a consultoria informal de Carlos Eugenio Paz, o Clemente, ex-comandante da ALN [Ação Libertadora Nacional], que inspirou livremente o personagem Tiago. (JGC)


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