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"Não quero falar apenas comigo mesma", diz Murat
DO COLUNISTA DA FOLHA
A carioca Lúcia Murat estreou
no cinema com "Que Bom
Te Ver Viva" (1988), um documentário sobre mulheres
torturadas na época do regime militar, um drama que conheceu, literalmente, na carne. Depois disso, fez
"Doces Poderes" (1996) e "Brava
Gente Brasileira" (2000). Seu novo
longa, "Quase Dois Irmãos", com
estréia marcada para 1º de abril, trata das relações entre dois amigos de
infância, um de classe média, outro
do morro, que se encontram na cadeia na época da ditadura e se reencontram nos dias de hoje, um como
senador e o outro como chefe do tráfico de drogas.
O filme ganhou os prêmios de melhores diretor e ator no Festival do
Rio, de música e montagem em Havana e de melhor filme latino-americano e prêmio do público em Mar
del Plata (Argentina), de onde a diretora concedeu, por e-mail, a entrevista a seguir.
Folha - Olhando seu cinema em conjunto, tem-se a impressão de que você
acertou as contas com o passado com
"Que Bom Te Ver Viva" e que, por isso,
"Quase Dois Irmãos" é um filme muito
mais preocupado com o presente e
com o futuro, diferentemente dos outros que tratam da época da ditadura.
Lúcia Murat - Você tem toda a razão. Na verdade, a idéia de fazer
"Quase Dois Irmãos" partiu de hoje,
quando vi filhas de amigos subindo
o morro e transando com traficantes. Nesse momento, me perguntei o
que essa geração estava pensando, o
que a nossa pretendia, que tipo de
relação estabelecíamos com o outro
lado. A partir daí, pensei o filme. Como a convivência e o conflito entre
os presos políticos e comuns (que eu
tinha vivido) era emblemática dessa
quase impossibilidade de encontro,
resolvi escolher essa experiência dos
anos 70 como centro dessa história.
Folha - Qual foi a participação de
Paulo Lins [autor do romance "Cidade
de Deus"] no projeto?
Murat - Começamos a trabalhar
em dezembro de 98. Fizemos várias
entrevistas com pessoas de todas as
gerações que a história conta (anos
50, 70 e hoje). Criamos uma escaleta
e depois separávamos as cenas que
cada um desenvolveria em separado. Ao final, discutíamos cada uma
das seqüências.
Para mim, a grande importância
de trabalhar com Paulo Lins era a
força e a verdade que ele podia trazer
do outro lado. Acho que, por termos
uma formação progressista, quando
criamos personagens pobres, caímos normalmente no paternalismo.
Assim como eu podia ser mais crítica à minha geração, o Paulo trazia
essa mesma crítica do lado de lá, permitindo que os personagens pobres
tivessem carne e osso. Em março de
99, parei o trabalho para fazer "Brava Gente Brasileira". Depois, em
2001, recomecei o projeto, procurando uma linguagem cinematográfica que representasse o que chamo
de circularidade da violência.
Folha - "Quase Dois Irmãos" revisita
uma matriz: a das histórias de amigos
de infância de condições sociais distintas que se reencontram depois,
quando a vida os distanciou (por
exemplo, "1900", de Bertolucci).
Murat - "1900" [de 1976] foi um filme que me marcou muito na época e
eu o revi antes de rodar o filme. Imagino que tenha sido influenciada por
esse "modelo", já que ele permite
que se trabalhe com uma radiografia
da realidade em diferentes épocas.
Talvez a dificuldade desse modelo
seja superar os arquétipos, criando
personagens de carne e osso.
Folha - "Quase Dois Irmãos", assim
como "Brava Gente Brasileira", trata
de relações afetivas dilaceradas pela
história. Em sua opinião, são aproximações condenadas ao fracasso?
Murat - Talvez pela minha história
de vida, eu trabalhe mais com a contradição do que com o encontro.
Acho que no conflito, como ficou estabelecido nesses dois filmes, não
havia saída. Porque o intelectual
português e a índia de "Brava Gente"
viviam culturas que se contrapunham e disputavam o poder, e uma
-a branca- acaba por se impor,
causando o dilaceramento.
No caso de "Quase Dois Irmãos",
dada a tragédia social que vivemos,
não vejo um final romântico possível. Mesmo que, contraditoriamente, esse filme só tenha sido possível
porque pessoas vindas desses dois
mundos se juntaram para fazê-lo
(Paulo Lins, no roteiro, e cerca de 80
atores vieram das comunidades).
Acho que todo o trabalho cultural
que está sendo feito nas favelas, no
qual incluo experiências como meu
filme, pode ajudar algumas pessoas,
mas não é capaz de mudar a situação
social em que vivemos.
Folha - Há, na cinematografia, um
sem-número de abordagens da política: Costa-Gavras, Pontecorvo, Glauber, Bertolucci, Godard. De qual delas
você se sente mais próxima?
Murat - Não deve ser por coincidência que a minha geração foi formada justamente por esses cineastas
que você cita. Quase todos me tocaram um dia. Eu acrescentaria ainda
"A Guerra Acabou" (1966), de Alain
Resnais, como outro filme emblemático. Costa-Gavras me interessou
mais pelos temas do que pela experiência cinematográfica . E também
Renoir, tanto nos seus trabalhos sobre a guerra como sobre as relações
sociais. Finalmente, não posso esquecer de Buñuel, que também fez a
cabeça da minha geração falando de
cristianismo e culpa.
Folha - É possível fazer um filme político que seja ao mesmo tempo de entretenimento e de reflexão?
Murat - É difícil trabalhar com esses conceitos (política e entretenimento). Tenho imenso prazer em
filmes que me fazem pensar ou usufruir de uma estética nova. Isso é entretenimento ou cultura? Não penso
em entreter ninguém. Mas, quando
estou na sala de edição montando
meu filme, penso no público. Não
gostaria, nessa busca, de estar falando apenas comigo mesma.
(JGC)
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