São Paulo, domingo, 27 de março de 2005

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"Não quero falar apenas comigo mesma", diz Murat

DO COLUNISTA DA FOLHA

A carioca Lúcia Murat estreou no cinema com "Que Bom Te Ver Viva" (1988), um documentário sobre mulheres torturadas na época do regime militar, um drama que conheceu, literalmente, na carne. Depois disso, fez "Doces Poderes" (1996) e "Brava Gente Brasileira" (2000). Seu novo longa, "Quase Dois Irmãos", com estréia marcada para 1º de abril, trata das relações entre dois amigos de infância, um de classe média, outro do morro, que se encontram na cadeia na época da ditadura e se reencontram nos dias de hoje, um como senador e o outro como chefe do tráfico de drogas.
O filme ganhou os prêmios de melhores diretor e ator no Festival do Rio, de música e montagem em Havana e de melhor filme latino-americano e prêmio do público em Mar del Plata (Argentina), de onde a diretora concedeu, por e-mail, a entrevista a seguir.

Folha - Olhando seu cinema em conjunto, tem-se a impressão de que você acertou as contas com o passado com "Que Bom Te Ver Viva" e que, por isso, "Quase Dois Irmãos" é um filme muito mais preocupado com o presente e com o futuro, diferentemente dos outros que tratam da época da ditadura.
Lúcia Murat -
Você tem toda a razão. Na verdade, a idéia de fazer "Quase Dois Irmãos" partiu de hoje, quando vi filhas de amigos subindo o morro e transando com traficantes. Nesse momento, me perguntei o que essa geração estava pensando, o que a nossa pretendia, que tipo de relação estabelecíamos com o outro lado. A partir daí, pensei o filme. Como a convivência e o conflito entre os presos políticos e comuns (que eu tinha vivido) era emblemática dessa quase impossibilidade de encontro, resolvi escolher essa experiência dos anos 70 como centro dessa história.

Folha - Qual foi a participação de Paulo Lins [autor do romance "Cidade de Deus"] no projeto?
Murat -
Começamos a trabalhar em dezembro de 98. Fizemos várias entrevistas com pessoas de todas as gerações que a história conta (anos 50, 70 e hoje). Criamos uma escaleta e depois separávamos as cenas que cada um desenvolveria em separado. Ao final, discutíamos cada uma das seqüências.
Para mim, a grande importância de trabalhar com Paulo Lins era a força e a verdade que ele podia trazer do outro lado. Acho que, por termos uma formação progressista, quando criamos personagens pobres, caímos normalmente no paternalismo.
Assim como eu podia ser mais crítica à minha geração, o Paulo trazia essa mesma crítica do lado de lá, permitindo que os personagens pobres tivessem carne e osso. Em março de 99, parei o trabalho para fazer "Brava Gente Brasileira". Depois, em 2001, recomecei o projeto, procurando uma linguagem cinematográfica que representasse o que chamo de circularidade da violência.

Folha - "Quase Dois Irmãos" revisita uma matriz: a das histórias de amigos de infância de condições sociais distintas que se reencontram depois, quando a vida os distanciou (por exemplo, "1900", de Bertolucci).
Murat -
"1900" [de 1976] foi um filme que me marcou muito na época e eu o revi antes de rodar o filme. Imagino que tenha sido influenciada por esse "modelo", já que ele permite que se trabalhe com uma radiografia da realidade em diferentes épocas. Talvez a dificuldade desse modelo seja superar os arquétipos, criando personagens de carne e osso.

Folha - "Quase Dois Irmãos", assim como "Brava Gente Brasileira", trata de relações afetivas dilaceradas pela história. Em sua opinião, são aproximações condenadas ao fracasso?
Murat -
Talvez pela minha história de vida, eu trabalhe mais com a contradição do que com o encontro. Acho que no conflito, como ficou estabelecido nesses dois filmes, não havia saída. Porque o intelectual português e a índia de "Brava Gente" viviam culturas que se contrapunham e disputavam o poder, e uma -a branca- acaba por se impor, causando o dilaceramento.
No caso de "Quase Dois Irmãos", dada a tragédia social que vivemos, não vejo um final romântico possível. Mesmo que, contraditoriamente, esse filme só tenha sido possível porque pessoas vindas desses dois mundos se juntaram para fazê-lo (Paulo Lins, no roteiro, e cerca de 80 atores vieram das comunidades). Acho que todo o trabalho cultural que está sendo feito nas favelas, no qual incluo experiências como meu filme, pode ajudar algumas pessoas, mas não é capaz de mudar a situação social em que vivemos.

Folha - Há, na cinematografia, um sem-número de abordagens da política: Costa-Gavras, Pontecorvo, Glauber, Bertolucci, Godard. De qual delas você se sente mais próxima?
Murat -
Não deve ser por coincidência que a minha geração foi formada justamente por esses cineastas que você cita. Quase todos me tocaram um dia. Eu acrescentaria ainda "A Guerra Acabou" (1966), de Alain Resnais, como outro filme emblemático. Costa-Gavras me interessou mais pelos temas do que pela experiência cinematográfica . E também Renoir, tanto nos seus trabalhos sobre a guerra como sobre as relações sociais. Finalmente, não posso esquecer de Buñuel, que também fez a cabeça da minha geração falando de cristianismo e culpa.

Folha - É possível fazer um filme político que seja ao mesmo tempo de entretenimento e de reflexão?
Murat -
É difícil trabalhar com esses conceitos (política e entretenimento). Tenho imenso prazer em filmes que me fazem pensar ou usufruir de uma estética nova. Isso é entretenimento ou cultura? Não penso em entreter ninguém. Mas, quando estou na sala de edição montando meu filme, penso no público. Não gostaria, nessa busca, de estar falando apenas comigo mesma. (JGC)


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