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Pontos de partida quase idênticos de "Juventude", do Nobel J.M. Coetzee, e
"O Zahir", de Paulo Coelho, ajudam a entender o desnível entre um e outro
Vozes múltiplas e uma vida breve
ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
Para começar, uma historinha
exemplar, uma vez que um
dos escritores de que se tratará nesta resenha adora utilizá-las. Ela não ocupa, originalmente,
mais do que uma página, mas o que
interessa aqui pode ser resumido em
um breve parágrafo: "Em um espetáculo, o imitador de vozes atende a
inúmeros pedidos e simula ser as
mais diferentes pessoas até que, ao
final da apresentação, alguém na
platéia pede que ele imite a própria
voz: isso é impossível, isso ele não
consegue".
Tem-se aí, nessa versão reduzida
de um miniconto do austríaco Thomas Bernhard, uma boa representação do trabalho artístico. A idéia de
"própria voz" está associada normalmente ao conceito de "estilo", à
possibilidade de qualquer trabalho
de um autor ser reconhecido com facilidade por possuir determinadas
características. Ainda que isso aconteça em alguns casos, o mais comum
é que ocorra exatamente o contrário.
Ser incapaz de se reproduzir, como o "imitador de vozes", é ser um
artista em "estado puro". Por outro
lado, a reiteração da "própria voz"
remeteria então para a incapacidade
de fazer arte -no caso em discussão, literatura. O autor não consegue
fugir de si mesmo, a narrativa torna-se chapada, os personagens, reflexos
diluídos de seu criador.
Lembrar isso vem a calhar quando
são lançados, quase simultaneamente, os romances "Juventude
-Cenas da Vida na Província 2", de
J.M. Coetzee, e "O Zahir", de Paulo
Coelho, obras que possuem pontos
de partida similares e "pontos de
chegada" muito opostos.
Difícil de classificar
Não é incomum um escritor decidir contar sua vida ou trechos dela
em uma ou várias autobiografias.
Também não é raro o autor inserir,
"disfarçados", acontecimentos de
sua história pessoal em seus romances. O projeto de Coetzee em "Boyhood" (publicado há alguns anos
pela editora Best-Seller com o título
de "Cenas de uma Vida") e neste
"Juventude" não se enquadra em
nenhum dos dois casos, apesar das
semelhanças com ambos. Na verdade, ele é bem difícil de classificar.
Quem procurar a biografia do sul-africano no site do Prêmio Nobel
(que ele ganhou em 2003) aprenderá
que ele nasceu em 1940, freqüentou,
quando menino, escolas na Cidade
do Cabo e em Worcester, fez faculdade de inglês e matemática e morou na Inglaterra entre 1962 e 1965,
trabalhando como programador de
computadores enquanto pesquisava
para sua tese sobre Madox Ford.
Tem-se aí, com precisão, os locais,
datas e fatos das duas obras: na primeira ("Cenas de uma Vida"), as
tensas relações escolares e a proximidade da mãe e os conflitos com o
pai; na segunda ("Juventude"), a vida difícil em um país estranho, um
emprego monótono, a indefinição
sobre o futuro de escritor, uma vida
sexual sem muito sentido e os estudos a respeito de um escritor que o
decepcionara.
O livro, porém, é contado no tempo presente e em terceira pessoa,
uma combinação nada usual. Mas
ao mesmo tempo dá pistas para entender um pouco melhor o que se
passa ao refletir em certo trecho sobre um "diário", uma versão privada
e menos ordenada de uma autobiografia. Diz, por exemplo, que "a
questão de resolver o que deve permitir que apareça em seu diário e o
que deve ser para sempre escondido
está no coração de toda a escrita" ou
que ele é uma "ficção, uma de muitas ficções possíveis, verdadeira apenas no sentido em que uma obra de
arte é verdadeira, verdadeira consigo mesma, verdadeira em seus próprios objetivos imanentes".
Vê-se em Coetzee um escritor que
decide se valer de uma voz parecida
com a sua, mas que deixa claro que
ela não é de modo algum a mesma.
Afinal, como diz um personagem de
Sartre, "você precisa escolher: viver
ou narrar".
Se o sul-africano narra, Paulo Coelho vive: vive a sua vida e a revive em
seus livros. Diz neles com idêntica
voz o que diz fora deles, criando um
círculo de redundâncias impressionante. Em "O Zahir", o leitor acompanha a história de um escritor que,
após percorrer o caminho de Santiago de Compostela e escrever um livro de sucesso (cujo incrível nome é
"Tempo de Rasgar, Tempo de Costurar"), encontra-se às voltas com o
tédio e as dificuldades de sua vida
amorosa.
Para lidar com elas, envolve-se em
uma aventura místico-existencial
acompanhado por um jovem do Cazaquistão. As referências biográficas
aparecem a cada página e, a essa altura, é desnecessário enunciá-las.
Lugares-comuns
Ao contrário de "Juventude", em
que a condução lenta e cuidadosa vai
compondo um painel estranho e
complexo do protagonista e de seu
ambiente, em "O Zahir" vão se somando cenas confusamente armadas, clichês e lugares-comuns.
Para exemplificar, basta citar um
período como "todos deviam-se
sentir tristes, compadecidos, solidários com um homem que tem a alma
sangrando de amor; mas continuam
rindo, mergulhados em suas pequenas e miseráveis vidas que acontecem apenas nos finais de semana".
Se, em Coetzee, vida e invenção se
mesclam para potencializar a ficção,
em Coelho, a mistura funciona como mero adorno: enfeitam-se com
enredos primários os supostos ensinamentos que se busca passar
adiante.
O romance se transforma em uma
alongada palestra motivacional.
Após uma avaliação tão ríspida (e,
infelizmente, haveria muito mais a
comentar), talvez seja justo deixar
para o autor as últimas palavras.
Leia-se, portanto, a "resposta" que o
escritor-personagem de "O Zahir"
(eles são, como foi dito, intercambiáveis) pensa em dar -mas acaba
não dando- a um jornalista para o
seguinte dilema: "Por que a crítica é
tão dura com o seu trabalho?".
"Basta ler a biografia de qualquer
clássico no passado -e não me entenda mal, não estou me comparando- para descobrir que a crítica
sempre foi implacável com eles. A
razão é simples: os críticos são extremamente inseguros, não sabem direito o que está acontecendo, são democráticos quando falam de política, mas são fascistas quando falam
de cultura. Acham que o povo sabe
escolher seus governantes, mas não
sabe escolher filmes, livros, música."
A resposta que ele de fato daria sai
da boca do jornalista logo depois:
"Tem razão. Se você não é nada, se
seu trabalho não tem repercussão,
então ele merece ser elogiado. Mas
quem sair da mediocridade, fizer sucesso, está desafiando a lei, merece
ser punido".
Adriano Schwartz é professor de arte, literatura e cultura do Brasil na Escola de Artes,
Ciências e Humanidades da USP-Leste e autor de "O Abismo Invertido - Pessoa, Borges
e a Inquietude do Romance em "O Ano da
Morte de Ricardo Reis'" (ed. Globo).
Juventude
192 págs., R$ 35,00
de J.M. Coetzee. Trad. José Rubens Siqueira.
Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista,
702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/
xx/ 11/3707-3500).
O Zahir
318 págs., R$ 35,00
de Paulo Coelho. Ed. Rocco (rua Rodrigo Silva, 26, 4º andar, CEP 20011-040, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/2507-2000).
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