São Paulo, domingo, 27 de março de 2005

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Pontos de partida quase idênticos de "Juventude", do Nobel J.M. Coetzee, e "O Zahir", de Paulo Coelho, ajudam a entender o desnível entre um e outro

Vozes múltiplas e uma vida breve

ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Para começar, uma historinha exemplar, uma vez que um dos escritores de que se tratará nesta resenha adora utilizá-las. Ela não ocupa, originalmente, mais do que uma página, mas o que interessa aqui pode ser resumido em um breve parágrafo: "Em um espetáculo, o imitador de vozes atende a inúmeros pedidos e simula ser as mais diferentes pessoas até que, ao final da apresentação, alguém na platéia pede que ele imite a própria voz: isso é impossível, isso ele não consegue".
Tem-se aí, nessa versão reduzida de um miniconto do austríaco Thomas Bernhard, uma boa representação do trabalho artístico. A idéia de "própria voz" está associada normalmente ao conceito de "estilo", à possibilidade de qualquer trabalho de um autor ser reconhecido com facilidade por possuir determinadas características. Ainda que isso aconteça em alguns casos, o mais comum é que ocorra exatamente o contrário.
Ser incapaz de se reproduzir, como o "imitador de vozes", é ser um artista em "estado puro". Por outro lado, a reiteração da "própria voz" remeteria então para a incapacidade de fazer arte -no caso em discussão, literatura. O autor não consegue fugir de si mesmo, a narrativa torna-se chapada, os personagens, reflexos diluídos de seu criador.
Lembrar isso vem a calhar quando são lançados, quase simultaneamente, os romances "Juventude -Cenas da Vida na Província 2", de J.M. Coetzee, e "O Zahir", de Paulo Coelho, obras que possuem pontos de partida similares e "pontos de chegada" muito opostos.

Difícil de classificar
Não é incomum um escritor decidir contar sua vida ou trechos dela em uma ou várias autobiografias. Também não é raro o autor inserir, "disfarçados", acontecimentos de sua história pessoal em seus romances. O projeto de Coetzee em "Boyhood" (publicado há alguns anos pela editora Best-Seller com o título de "Cenas de uma Vida") e neste "Juventude" não se enquadra em nenhum dos dois casos, apesar das semelhanças com ambos. Na verdade, ele é bem difícil de classificar.
Quem procurar a biografia do sul-africano no site do Prêmio Nobel (que ele ganhou em 2003) aprenderá que ele nasceu em 1940, freqüentou, quando menino, escolas na Cidade do Cabo e em Worcester, fez faculdade de inglês e matemática e morou na Inglaterra entre 1962 e 1965, trabalhando como programador de computadores enquanto pesquisava para sua tese sobre Madox Ford.
Tem-se aí, com precisão, os locais, datas e fatos das duas obras: na primeira ("Cenas de uma Vida"), as tensas relações escolares e a proximidade da mãe e os conflitos com o pai; na segunda ("Juventude"), a vida difícil em um país estranho, um emprego monótono, a indefinição sobre o futuro de escritor, uma vida sexual sem muito sentido e os estudos a respeito de um escritor que o decepcionara.
O livro, porém, é contado no tempo presente e em terceira pessoa, uma combinação nada usual. Mas ao mesmo tempo dá pistas para entender um pouco melhor o que se passa ao refletir em certo trecho sobre um "diário", uma versão privada e menos ordenada de uma autobiografia. Diz, por exemplo, que "a questão de resolver o que deve permitir que apareça em seu diário e o que deve ser para sempre escondido está no coração de toda a escrita" ou que ele é uma "ficção, uma de muitas ficções possíveis, verdadeira apenas no sentido em que uma obra de arte é verdadeira, verdadeira consigo mesma, verdadeira em seus próprios objetivos imanentes".
Vê-se em Coetzee um escritor que decide se valer de uma voz parecida com a sua, mas que deixa claro que ela não é de modo algum a mesma. Afinal, como diz um personagem de Sartre, "você precisa escolher: viver ou narrar".
Se o sul-africano narra, Paulo Coelho vive: vive a sua vida e a revive em seus livros. Diz neles com idêntica voz o que diz fora deles, criando um círculo de redundâncias impressionante. Em "O Zahir", o leitor acompanha a história de um escritor que, após percorrer o caminho de Santiago de Compostela e escrever um livro de sucesso (cujo incrível nome é "Tempo de Rasgar, Tempo de Costurar"), encontra-se às voltas com o tédio e as dificuldades de sua vida amorosa.
Para lidar com elas, envolve-se em uma aventura místico-existencial acompanhado por um jovem do Cazaquistão. As referências biográficas aparecem a cada página e, a essa altura, é desnecessário enunciá-las.

Lugares-comuns
Ao contrário de "Juventude", em que a condução lenta e cuidadosa vai compondo um painel estranho e complexo do protagonista e de seu ambiente, em "O Zahir" vão se somando cenas confusamente armadas, clichês e lugares-comuns.
Para exemplificar, basta citar um período como "todos deviam-se sentir tristes, compadecidos, solidários com um homem que tem a alma sangrando de amor; mas continuam rindo, mergulhados em suas pequenas e miseráveis vidas que acontecem apenas nos finais de semana". Se, em Coetzee, vida e invenção se mesclam para potencializar a ficção, em Coelho, a mistura funciona como mero adorno: enfeitam-se com enredos primários os supostos ensinamentos que se busca passar adiante.
O romance se transforma em uma alongada palestra motivacional.
Após uma avaliação tão ríspida (e, infelizmente, haveria muito mais a comentar), talvez seja justo deixar para o autor as últimas palavras. Leia-se, portanto, a "resposta" que o escritor-personagem de "O Zahir" (eles são, como foi dito, intercambiáveis) pensa em dar -mas acaba não dando- a um jornalista para o seguinte dilema: "Por que a crítica é tão dura com o seu trabalho?".
"Basta ler a biografia de qualquer clássico no passado -e não me entenda mal, não estou me comparando- para descobrir que a crítica sempre foi implacável com eles. A razão é simples: os críticos são extremamente inseguros, não sabem direito o que está acontecendo, são democráticos quando falam de política, mas são fascistas quando falam de cultura. Acham que o povo sabe escolher seus governantes, mas não sabe escolher filmes, livros, música."
A resposta que ele de fato daria sai da boca do jornalista logo depois: "Tem razão. Se você não é nada, se seu trabalho não tem repercussão, então ele merece ser elogiado. Mas quem sair da mediocridade, fizer sucesso, está desafiando a lei, merece ser punido".


Adriano Schwartz é professor de arte, literatura e cultura do Brasil na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP-Leste e autor de "O Abismo Invertido - Pessoa, Borges e a Inquietude do Romance em "O Ano da Morte de Ricardo Reis'" (ed. Globo).


Juventude
192 págs., R$ 35,00 de J.M. Coetzee. Trad. José Rubens Siqueira. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/ xx/ 11/3707-3500).

O Zahir
318 págs., R$ 35,00 de Paulo Coelho. Ed. Rocco (rua Rodrigo Silva, 26, 4º andar, CEP 20011-040, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/2507-2000).


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