São Paulo, domingo, 27 de março de 2005

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O profeta Benjamin

"Aviso de Incêndio" faz uma interpretação frouxa da obra do pensador

SUSANA KAMPFF LAGES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em 1980, o filósofo italiano Cesare Cases fazia num breve texto um balanço irônico da recepção da obra benjaminiana na Itália: "Benjamin vai bem para todos e em tudo". Esse era o núcleo básico da argumentação, cuja atualidade e abrangência tem se reafirmado neste último quarto de século.
No meio tempo, a produção de comentários sobre o autor berlinense, seja ela a acadêmica ou a jornalística, sóbria ou inspirada, panorâmica ou pontual, de matiz filosófico, sociológico, literário ou estético (ou então gorda ou magra, como assinalou com bom humor Cases, reportando-se a um divertido livro dos anos 70, chamado "Swinging Benjamin"), só tem continuado seu périplo constelar e poliédrico.
Uma pequena estrela na constelação de comentários da obra benjaminiana é o livro de Michel Löwy: "Walter Benjamin - Aviso de Incêndio". Löwy tem uma extensíssima obra que focaliza, entre outros, a história do marxismo na América Latina e, de modo original, as relações entre marxismo, judaísmo e romantismo na Europa Central, de onde seu interesse pela obra de Benjamin, já anteriormente estudada, entre outros, no livro "Romantismo e Messianismo" (Perspectiva). Com este novo e bem-vindo livro, pretende realizar "uma análise talmúdica, palavra por palavra, frase por frase" das famosíssimas teses "Sobre o Conceito da História", texto cultuado em diversos âmbitos das ciências humanas. Em sua batalha decifradora, o autor se arma de razoável arsenal: o trabalho ancora-se em numerosas e pertinentes referências à história do marxismo, à filosofia da história benjaminiana e a teorias historiográficas mais recentes.
Entretanto a interpretação construída a partir desse conjunto de fontes resulta bastante frouxa e, às vezes, arbitrária. Na leitura, tem-se a impressão de que o texto benjaminiano, objeto da paixão e da emulação do comentador, é instrumentalizado para demonstrar algumas teses: Walter Benjamin precursor do movimento antiglobalização, dos movimentos ambientalistas, das políticas de gênero, da teologia da libertação; enfim, um Benjamin nem moderno nem pós-moderno, mas sempre fiel aos mais caros e românticos ideais de 68... A impressão de arbitrariedade desse tipo de interpretação se dá, entre outros, pela ligação um tanto abrupta entre fatos históricos comentados por Benjamin e fatos históricos da atualidade, sobretudo a latino-americana.
Em vez de um efeito de choque à maneira brechtiana ou benjaminiana, essa justaposição entre passado e presente transmite um didatismo sem força interpretativa, algo que talvez decorra de uma falta de interesse do autor pelos aspectos especificamente literários das teses e de uma confusão entre os planos empírico e teórico da reflexão.
É lícito ler Benjamin como pensador não ortodoxo da revolução e é pertinente a retomada de suas relações com a história do marxismo; faltaria apenas mostrar como sua dialética materialista se relaciona com o aparato teórico-conceitual construído ao longo de sua obra.
Nesse sentido, o leitor (ao menos o especializado) certamente irá se ressentir da falta de um exame mais demorado de conceitos-chave como "imagem" (bild), "tempo-de/do-agora" ("jetztzeit"), mônada, entre outros, e de uma reflexão que leve mais a sério o meio ("medium") no qual e pelo qual eles são construídos: a linguagem.
Graficamente bem editado e contendo uma nova e cuidadosa tradução das teses, por Jeanne-Marie Gagnebin e Marcos Müller, o livro padece um pouco, porém, daqueles probleminhas freqüentes em edições de obras de caráter acadêmico com citações em língua estrangeira: aqui e ali, erros de digitação, problemas de tradução, referências imprecisas ou incompletas, embora tenha o mérito de indicar as edições brasileiras existentes de muitas das obras comentadas. Mas o que faz mais falta, a meu ver, é uma bibliografia ao final do volume, algo útil para o leitor interessado em aprofundar seus conhecimentos sobre o contexto histórico em que foram escritas as teses, as relações da obra benjaminiana com a tradição marxista, assuntos esses cuja bibliografia o autor domina e discute, ainda que nem sempre consiga fazer com que renda frutos convincentes para sua argumentação.


Susana Kampff Lages é ensaísta, tradutora e autora de "Walter Benjamin - Tradução e Melancolia" (Edusp).


Walter Benjamin - Aviso de Incêndio
160 págs., R$ 32,00 de Michel Löwy. Trad. Wanda Caldeira Nogueira Brant. Ed. Boitempo (r. Euclides de Andrade, 27, CEP 05030-030, SP, tel. 0/xx/ 11/ 3875-7250).


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