São Paulo, Domingo, 27 de Junho de 1999
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LIVROS
Antologia demonstra que só o preconceito justifica o desconhecimento da poesia portuguesa no Brasil
Um continente ignorado

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

Já há um bom tempo se nota, no Brasil, a febre de traduzir poesia, e não há sinais de que venha a arrefecer. Temos tido acesso à poesia moderna dos mais diversos países; o trabalho de grandes tradutores nos põe em contato com dinamarqueses, húngaros, gregos modernos e mesmo com os franceses mais recentes. O interesse pela poesia de outros países existe, e não há como justificar que os poetas de Portugal continuem praticamente desconhecidos por aqui.
É preconceito, sem dúvida. Acho que até se intensificou quando José Saramago recebeu o Prêmio Nobel; apesar de seus muitos admiradores, registrou-se por aqui um movimento de nítida antipatia diante da notícia.
Nomes como Herberto Hélder, Alexandre O'Neill e Sophia Breyner Andresen são de vez em quando mencionados, mas é como se não nos dissessem muito respeito. Cecília Meirelles e João Alves das Neves organizaram, nos anos 40 e 60, respectivamente, belíssimas antologias de poesia portuguesa. Nesses volumes é natural, todavia, que Fernando Pessoa ocupe o centro das atenções.
Esta "Antologia da Poesia Portuguesa Contemporânea" reúne mais de 70 poetas, de José Gomes Ferreira (1900-1985) a José Tolentino Mendonça, nascido em 1965. É um verdadeiro descobrimento.
A surpresa não decorre só de nossa ignorância, ou da alta qualidade de tanta coisa que encontramos nessas mais de 400 páginas. O mais espantoso no livro é que toda essa poesia se ofereça tão abertamente, que sua beleza se venha a mostrar tão próxima, tão familiar, ao alcance da mão.
De fato, se for possível especular sobre o que tantos autores têm em comum, é notável nessa antologia a sua, digamos, "acessibilidade". Não que os poemas sejam simplesmente "fáceis", simples de ler -o que seria um anátema para o gosto contemporâneo. Mas há na maioria desses poetas uma naturalidade, um bem-estar com a linguagem, uma certa ausência de crispação, que nada têm de concessivo, de sentimental ou de rasteiro. Mesmo na angústia, evita-se a gesticulação excessiva; o tom é íntimo, fluente, e a sutileza poética não costuma recorrer ao aparato -tão constante entre nós- da elipse, do fragmento e da contenção.
A que se deve essa aparência distensa, essa "respiração", essa limpidez? Talvez ao gosto dos antologistas; talvez porque em Portugal haja um público de poesia mais instituído do que aqui, diante do qual os autores se sintam à vontade. São hipóteses, apenas. Pode-se pensar em algumas outras.
Como nota Alexei Bueno na introdução ao livro, a modernidade do futurismo português, no começo do século, foi bem mais radical do que a dos brasileiros de 22. Ao mesmo tempo, pode-se acrescentar, o nosso processo de modernização social e econômica tem sido bem mais radical e turbulento do que o português; duplo motivo, quem sabe, para que literariamente oscilemos entre o rigor e a trepidação, enquanto lá o intrépido e o caseiro se conciliam.
A influência da quadra popular, gênero que Fernando Pessoa também exerceu, aparece a todo momento, com resultados muito felizes em Sophia Andresen, Alexandre O'Neill, Eugénio de Andrade ou Alberto de Lacerda. Há, por outro lado, um jeito de fazer versos longos e discursivos em que a prosa é uma influência e não um risco; nota-se isso nos poemas de Jorge de Sena, Fernando Pinto do Amaral e Vasco Graça Moura.
Poemas extensos, aliás, não intimidam os antologistas, e Herberto Hélder aparece aqui muito bem representado; nas suas meditações, de um lirismo livre e nada fácil, o jogo entre o não-dito e a fluência convida o leitor a uma constante releitura.
Mas o livro todo, na verdade, é feito para que não o larguemos tão depressa. A poesia portuguesa é um continente ignorado; "um não acabar-se", diriam eles -e termino, um pouco lusitanamente, citando os versos finais de um poema de Pedro Homem de Mello, dedicado a um amigo morto: "frágil, baloiça a barca... frágeis remos!/ E a mão de Deus? De súbito, amanhece.../ Nós, os Poetas, morremos/ Só quando alguém nos esquece."


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