São Paulo, domingo, 27 de agosto de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ literatura
Há 50 anos se matou, no auge da carreira, o poeta, romancista e editor Cesare Pavese, um dos mais importantes e inovadores escritores italianos deste século
Um autor distante de si mesmo

Maurício Santana Dias
da Redação

Em 26 de agosto de 1950, numa manhã quente de sábado, Cesare Pavese saiu da casa onde morava com a irmã, em Turim, e alugou um pequeno quarto no Albergo Roma, na mesma cidade. Seus biógrafos afirmam que ele teria dado alguns telefonemas e enviado algumas cartas, mas, como era verão e a cidade estava deserta, não conseguiu encontrar nenhum dos amigos. O fato é que, na noite do dia seguinte, Pavese foi encontrado morto, estirado na cama. Na pia, uns 20 e tantos envelopes de sonífero e, ao lado da cama, um bilhete: "Perdôo a todos e a todos peço perdão. Tudo bem? Não façam muita fofoca".
Naturalmente, nos últimos 50 anos não faltaram suposições e comentários de todo o tipo -"fofocas"- sobre as possíveis causas do suicídio do "famoso escritor". Naquela altura, aos 42 anos incompletos, Pavese era um dos autores mais festejados da Itália, publicara vários romances e contos, um livro de poesia, colaborava com as principais revistas de cultura do país, era editor da Einaudi e traduzira alguns clássicos da língua inglesa, como Melville, Dickens e Joyce. Dois meses antes de sua morte, havia recebido o mais importante prêmio literário italiano, o Strega, pelo volume "La Bella Estate" (O Belo Verão). Sua carreira estava no auge. Mas, para evitar especulações inúteis, talvez seja melhor deixar de lado o momento final, da consagração e do suicídio, e voltar ao princípio.
Cesare Pavese nasceu em 9 de setembro de 1908, na pequena cidade piemontesa de Santo Stefano Belbo, nas Langas, região de colinas onde se produz o mais encorpado vinho italiano, o barolo. Aquele lugar, com a cultura específica de seus vinhateiros e lavradores, iria se fixar como a principal imagem de quase tudo o que Pavese escreveria mais tarde.
Depois da morte do pai, quando Pavese tinha seis anos, a família se transferiu para Turim, cidade que também marcaria a sua obra. Naqueles anos, enquanto começava a Grande Guerra, Pavese iniciava seus estudos, primeiro numa escola de jesuítas e, mais tarde, no liceu Massimo d'Azeglio.
Nesse colégio, sob a orientação do professor Augusto Monti, formou-se um grupo de colegas que incluía, além de Pavese, Norberto Bobbio, Giulio Carlo Argan, Giulio Einaudi e Leone Ginzburg, marido da escritora Natalia Ginzburg, assassinado pelos fascistas em 1944. Numa das fotos de turma, a fisionomia de Pavese recorda a do poeta alemão Stefan George, no rosto anguloso, na tez morena, no cabelo cheio e escuro.
Enquanto alguns de seus colegas se encaminharam para o direito ou a engenharia, Pavese fez letras na Universidade de Turim, especializando-se em literatura norte-americana. A sua tese sobre Walt Whitman (1819-1892), defendida em 1930, fazia um elogio do democratismo e do uso libertário da língua inglesa pelo poeta das "Leaves of Grass", sendo quase reprovada pelo círculo de professores fascistas que a examinou.
No ano seguinte começaram as traduções que o tornariam conhecido no meio intelectual italiano: romances de Sinclair Lewis, Sherwood Anderson e a primeira edição italiana de "Moby Dick", de Melville. Com o siciliano Elio Vittorini, também tradutor dos americanos, Pavese buscava na literatura do Novo Mundo tudo o que a "Italieta" provinciana, beletrista e conservadora não podia oferecer. A "América", com todos os seus símbolos mais evidentes, com o cinema e os automóveis Ford, se tornou o grande mito cultural e político daquela geração de jovens escritores -mito que, no final dos anos 40, Pavese reavaliaria com desencanto. Nos ensaios que escreveu na década de 30 para a revista "La Cultura", hoje reunidos no volume "La Letteratura Americana e Altri Saggi" (A Literatura Americana e Outros Ensaios), Pavese tratou explicitamente desse processo de "subversão" via cultura norte-americana -que passava, entre outras coisas, pela assimilação de formas coloquiais à língua literária italiana.
Ao mesmo tempo em que traduzia e escrevia os poemas de seu primeiro livro, "Lavorare Stanca" (Trabalhar Cansa), Pavese, como não tinha a carteirinha do partido fascista, dava aulas de latim, italiano e filosofia em escolas noturnas. Em 1935, quando era editor de "La Cultura", foi preso e condenado por antifascismo a três anos de reclusão em Brancaleone, Calábria (sul da Itália). Vários de seus amigos, entre eles Ginzburg, Einaudi e Carlo Levi, foram presos na mesma semana. Data dessa época o início do seu famoso diário, publicado em 1952, que o próprio autor intitulou "Il Mestiere di Vivere" ("O Ofício de Viver", Ed. Bertrand), registrando na capa do manuscrito o seu período exato de composição: "1935-1950". O diário foi obviamente um laboratório de suas ficções e de sua formação intelectual, certamente também de seus fantasmas permanentes: a solidão sem remédio, o sentido radical de inadequação, a relação difícil com as mulheres. As passagens mais íntimas do caderno de notas eram estranhamente narradas em segunda pessoa ("Tu, Pavese..."), como se o distanciamento que o escritor costumava manter em relação aos outros se estendesse a si mesmo.
Enquanto cumpria a pena em Brancaleone, não muito longe de onde Gramsci também cumpria a sua, era publicada em Florença a primeira edição de "Lavorare Stanca" (1936), um livro que pouquíssima gente entendeu. Poemas de versos longos e narrativos, sem rima e com uma mesma cadência monótona de metro anapéstico, que tratavam de temas do cotidiano rural ou da vida boêmia e marginal de Turim; ou seja, quase o oposto da poesia elíptica e alusiva que se escrevia na época, em evidente polêmica com o hermetismo de um Montale ou Ungaretti.
Em março de 1936, Pavese já estava de volta a Turim, após ter enviado um pedido de perdão a Mussolini. Pouco depois de chegar à cidade, o escritor aceitou entrar para os quadros da recém-criada editora Einaudi, na qual se reunia boa parte do grupo de amigos do D'Azeglio (ao qual mais tarde se juntou o jovem Italo Calvino, apelidado por Pavese de "o esquilo da pena"), tornando-se um dos seus principais editores - "o ditador editorial", como ele gostava de se proclamar. De fato, um editor duríssimo, que respondeu nos seguintes termos ao então iniciante Edoardo Sanguineti, numa carta de 1950: "Caro Sanguineti, suas composições não me agradam, embora demonstrem capacidades miméticas quase prodigiosas (...)".
Nos anos 40 começa a sua fase mais produtiva. O ciclo de narrativas se abre com a novela "Paesi Tuoi" (1941), logo considerada pela crítica um dos textos fundadores da literatura neo-realista -escola que Pavese não se cansava de criticar. Durante os piores anos da Segunda Guerra, entre 1943-45, o escritor se refugiou com o nome de Carlo de Ambrogio num vilarejo do Piemonte e continuou a escrever seus livros, enquanto partisans e fascistas se matavam nas colinas ao redor. Nesse período Pavese dedicou-se sobretudo a estudos de mitologia e etnologia, lendo desde os gregos até Vico e Frazer. A antiga "fé" no ateísmo parecia balançar, e o diário de fato registra uma espécie de crise mística nesse período, mas sem conversões. Dessas experiências resultaram os livros "Feria d'Agosto" (1946) e "Dialoghi con Leucò" (1947), a meio caminho entre o ensaio e a ficção.
Com o fim da guerra, de volta a Turim, Pavese filiou-se ao Partido Comunista Italiano e ensaiou um romance engajado, "Il Compagno" (1947). Apesar da boa vontade, o resultado não foi dos mais felizes: a história de Pablo, que de repente passa de uma vida boêmia e sem compromissos à militância no PCI, parece meio forçada e não chega a convencer.

Tom adequado
As melhores obras vieram nos últimos dois anos de vida, com as duas novelas de "Prima Che il Gallo Canti" (1948), o tríptico "La Bella Estate" (1949) e o romance "La Luna e i Falò" (1950). Neles Pavese encontrou o tom mais adequado para tratar de um certo ambiente burguês e proletário de Turim, de seus personagens melancólicos e frequentemente desesperados ou das estações que se repetem, sempre iguais, no interior do Piemonte. Consta que ele estaria planejando escrever um livro sobre a exploração dos animais pelo homem quando resolveu colocar um ponto final no diário ("Não mais palavras, um gesto"), sem nunca ter tirado os pés da Itália.
No ano seguinte à sua morte, Italo Calvino e Massimo Mila organizaram o volume de poemas inéditos "Verrà la Morte e Avrà i Tuoi Occhi" (da qual foi extraído o poema ao lado), muitos deles dedicados à atriz americana Costance Dowling, por quem Pavese se apaixonou e com quem teve um caso nos últimos meses de vida. É de Calvino um dos comentários mais lúcidos sobre o poeta de "Lavorare Stanca", feito aos dez anos de sua morte: "Pavese nos solicita um modo de leitura que infelizmente é raríssimo de encontrar na literatura contemporânea, isto é, ele quer ser lido como se lêem os grandes trágicos, que, em cada relação, em cada movimento de seus versos, condensam um máximo de motivações interiores e de razões universais -um modo de nos inserirmos na realidade, de vivê-la, compreendê-la e julgá-la, que perdemos completamente".


Texto Anterior: Ponto de fuga - Jorge Coli: O "bricoleur" da história
Próximo Texto: Virá a Morte e Terá Teus Olhos
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.