São Paulo, domingo, 28 de abril de 2002

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"A República Mundial da s Letras" defende que o e spaço literário internaci onal se constituiu como uma luta progressiva contra a supremacia francesa

A capital que encolheu

Evando Nascimento
especial para a Folha

A Menor Mulher do Mundo" é uma história de Clarice Lispector citada por Gayatri Spivak em "A Critique of Postcolonial Reason" (Uma Crítica da Razão Colonial). Trata-se da fábula do explorador francês Marcel Pretre, que se depara na África com a menor tribo de pigmeus do mundo, na qual mora o menor dos seres humanos, uma mulher grávida. O momento mais delicado do encontro é quando o pequeno ser coça suas partes íntimas e sorri para seu pesquisador. Com grande estupefação, Pretre constata que o outro, ou a outra, ri, deseja, pensa, é sujeito, não se reduzindo a objeto de suas fantasias de onipotência. A ficção de Clarice Lispector sugere uma pergunta a ser colocada para "A República Mundial das Letras", publicado em excelente tradução: qual a menor literatura do mundo?

Confusão
O livro de Pascale Casanova manifesta uma disposição investigativa excepcional, mas confunde etnocentrismo com resultado de pesquisa, ao colocar a França e sua capital como fundamentos da instituição literária. Segundo a autora, o espaço literário internacional se constituiu progressivamente numa luta contra a supremacia francesa, conquistada no século 16 em combate contra o império do latim como língua de cultura, com o lançamento do manifesto "A Defesa e a Ilustração da Língua Francesa", de Du Bellay. Desconsideram-se outras nações européias na fundação da República das Letras modernas: "A França é a nação literária menos nacional; é nessa qualidade que pode exercer uma dominação quase incontestada sobre o mundo literário e fabricar a literatura universal consagrando os textos vindos de espaços excêntricos: de fato pode desnacionalizar, desparticularizar, literarizar, portanto, os textos que lhe chegam de horizontes longínquos para declará-los de valor e válidos no conjunto do universo literário sob sua jurisdição". Em 1995, o escritor Pascal Bruckner criticava no "Le Monde" o comportamento dos franceses que esperam um reconhecimento no estrangeiro para legitimar a produção artística de seu país. O artigo de Bruckner era duplamente sintomático: primeiro, a França vem perdendo seu prestígio histórico; segundo, por isso mesmo, ela passou a depender cada vez mais de outros centros para obter legitimação, papel de que se auto-investia anteriormente. O prestígio literário foi, até certo ponto, mantido pelo filosófico. Uma enquete do "Le Nouvel Observateur" revela que Derrida, com Foucault, Deleuze e outros, são os autores franceses mais traduzidos no exterior. A força desses pensadores se deve, entre outros aspectos, ao fato de articularem filosofia e literatura. Todavia eles não fazem beletrismo, pois não se trata de estetizar conceitos, mas sim de trazer para o discurso filosófico um tipo de pensamento que alguns textos literários formularam, como modo de liberação dos condicionamentos históricos. Paris provavelmente nunca mais voltará a ser o centro do mundo literário, sobretudo porque a questão hoje é propor deslocamentos do centro, ampliar a força da suposta periferia, afirmar o papel das "literaturas menores". A própria universalidade pode ser inteiramente revista. Duas das narrativas mais importantes do século 20 foram elaboradas a partir de valores bem específicos, "Grande Sertão: Veredas" e "Em Busca do Tempo Perdido". O texto de Guimarães Rosa é uma combinação potente do mais radicalmente local, beirando o regionalismo, e da ruptura com esse solo de partida, em diálogo com formas, assinaturas e contextos mundiais. O de Marcel Proust, por sua vez, teve como referência imediata os valores burgueses e aristocráticos da passagem do século 19 para o 20, mas propôs uma desconstrução desse universo, no que ele inclusive tinha de esteticamente conservador. É somente nas páginas relativas ao modernismo brasileiro e ao de outros países ditos periféricos que "A República Mundial das Letras" abre o horizonte de suas questões, ganhando em lucidez. Na curta, porém atenciosa, leitura que faz de "Macunaíma", Pascale Casanova observa os paradoxos de Mário de Andrade em defesa de um brasileirismo fictício: uma mistura anacrônica de credos, dispositivos, mitos e costumes que inviabilizam o fechamento numa unidade nacional. Isso torna o livro de Mário uma "grande" narrativa menor, rompendo simultânea e intensivamente com o nacionalismo tradicionalista dos românticos e com uma universalidade estereotipada, "made in France".

Devoração cultural
Casanova poderia ter levado às últimas consequências a antropofagia de Oswald de Andrade, que ela evoca em comparação com as idéias de Du Bellay, o qual falava em "devoração" cultural praticamente nos mesmos termos do escritor paulista. A estratégia antropófaga não é o único modo de desrecalque da dominação, mas importa compreendê-la como atitude expropriadora fundamental, quando se trata de deslocar o determinismo literário dos centros europeus.
Com esse gesto, Oswald e todos os que o repetiram em diferença nas décadas seguintes (os irmãos Campos, Caetano e Gil, José Celso Martinez Corrêa, Hélio Oiticica, Silviano Santiago) promoveram uma ampla tradução cultural, no sentido etimológico da palavra: "traducere", "ir mais além".
Como na fábula de Clarice Lispector, o europeu muitas vezes esquece que "nós", habitantes dos trópicos, somos sujeitos, dotados de um capital afetivo, estético, cultural, a ser disseminado entre as nações do planeta, abrindo as fronteiras para a alteridade.


Evando Nascimento é professor-adjunto de teoria da literatura na Universidade Federal de Juiz de Fora e autor de "Derrida e a Literatura" (editora da Universidade Federal Fluminense).


A República Mundial das Letras
440 págs. R$ 39,00 de Pascale Casanova. Trad. Marina Appenzeller. Estação Liberdade (r. Dona Elisa, 116, CEP 01155-030, SP, tel. 0/ xx/11/3661-2881).



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