São Paulo, domingo, 28 de maio de 2000


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+ literatura
O escritor norte-americano Louis Begley comenta romances de Dostoiévski, Franz Kafka e Thomas Bernhard
A necessidade dos anti-heróis

Louis Begley
especial para "Salon"

Uma idéia herética se enraizou nas mentes de muitos leitores: eles acreditam que o personagem principal de um romance deveria ser uma pessoa boa. Caso o autor, ao contrário, dote seu personagem principal de alguns dos defeitos de caráter e vícios que observou em si mesmo e nos outros, esperam que ele forneça, antes que chegue a última página do livro, uma experiência redentora que transforme esse protagonista em uma pessoa melhor. E ai do autor que não cumprir a regra. O veredicto nesse caso seria de que não se pode gostar de seu romance porque não é agradável. Gentil leitor, essa regra não existe. Grandes romances não têm nenhuma obrigação de ser agradáveis ou oferecer heróis e heroínas dignos de afeto. Tão logo suas ocupações o permitam, por favor, corram a ler as três obras-primas mencionadas abaixo.

Notas do Subterrâneo
Esse romance de Dostoiévski começa com uma frase famosa: "Sou um homem doente... sou um homem mau". O nome do personagem que nos fala jamais é revelado, mas sua situação é definida com abrupta eficiência. Ele tem 40 anos, um parente distante deixou-lhe 6.000 rublos como herança, o que basta para que subsista em algum lugar na periferia de São Petersburgo daquela maneira esquálida que os romances russos do século 19 nos ensinaram ser "de rigueur" para a "intelligentsia" empobrecida, e as únicas coisas que o separam da miséria crassa das massas são um diploma e o conhecimento rudimentar da língua francesa. As "Notas do Subterrâneo" (Ed. Bertrand Brasil) estão sendo escritas, nos conta ele, não para o público, já que ninguém as quereria ler, mas porque "no papel, de alguma forma isso parecerá mais solene". O que se segue é uma tirada brilhante -sarcástica e desesperada- contra a ilusão utilitária de que o homem, se ensinado a pensar corretamente, lutará pelo bem comum. O homem do subterrâneo sabe que isso é besteira; os homens amam o sofrimento tanto quanto, ou até mais, amam o bem-estar. Ele ilustra sua tese com uma confissão, lembranças dos acontecimentos que transcorreram -ele tem "centenas dessas memórias"- quando era um funcionário menor em um departamento do governo. O núcleo da história é sua visita a um bordel depois de um jantar regado a bebida com seus colegas de escola, todos mais ricos e bem-sucedidos. Ele acorda ao lado de uma mulher e, à toa, para humilhá-la e se engrandecer, ele a catequiza sobre a ignomínia e os perigos da vida de uma prostituta. Ou talvez o faça por compaixão genuína. Já que ele é um "paradoxalista", constantemente apanhado entre posições contraditórias, não se pode dizer ao certo. Ambas as posições são provavelmente verdadeiras. Antes de sair, dá seu endereço à moça. E, a partir daí, passa a viver apavorado com a idéia de que ela o leve a sério. A garota pode mesmo decidir visitá-lo em seu tugúrio, vê-lo em seu roupão imundo e remendado e perceber a extensão de sua nulidade. Quando a moça aparece, ele histericamente conta a ela a "verdade" sobre seus motivos. Quando uma vez mais acorda nos braços dela, a necessidade de humilhá-la retorna. Ele a força a aceitar dinheiro. Em um momento, ele a vê partir, deixando seu dinheiro sobre a mesa. Ele corre para a rua, atrás dela, mas não a encontra. De fato, nunca mais a vê. Refletindo sobre o ato de escrever a história desse encontro, ele começa a encarar a atividade como "punição corretiva", não literatura. Reconhece que "um romance precisa de um herói, e aqui estão reunidas, propositadamente, todas as qualidades de um anti-herói..." A grandeza de "Notas do Subterrâneo" jaz precisamente nesse ponto: a capacidade de Dostoiévski, por meio do vigor intelectual e humor de seu estilo, de tornar completamente convincentes as contraditórias características de seu anti-herói, conquistando nossa adesão à causa de um homem que não hesita em se ver como um monstro.

O Processo
Kafka via "Notas do Subterrâneo" como a verdadeira fonte de toda a literatura moderna e uma influência determinante em seu trabalho. Por sua vez, "O Processo" (Ed. Companhia das Letras), o melhor dos três romances inacabados de Kafka, talvez tenha deixado marcas mais profundas na consciência do século 20 do que qualquer outro romance. Devido ao seu impacto, o adjetivo "kafkiano" é usado em toda parte: não só entre os leitores da obra de Kafka, mas também entre as pessoas que aprenderam, por osmose, a usar o termo como abreviação para os meios arcanos e incontestáveis pelos quais o Estado moderno nos desumaniza. "O Processo" é a história de Joseph K., funcionário de um banco sobre quem alguém deve estar espalhando mentiras, porque, uma certa manhã, sem que tenha feito nada de errado, ele é detido por dois homens. Eles não lhe oferecem explicação nenhuma, e no entanto K. aceita sua autoridade. Depois, como um homem perdido em meio a um nevoeiro denso, ele tenta descobrir como funciona o tribunal no qual seu caso será julgado -um tribunal onipotente e onipresente, que talvez nem sequer seja parte de um Estado constituído. K. também é um anti-herói, e seu caráter é uma mistura de covardia servil, astúcia, oportunismo e um ocasional otimismo rebelde. Como o homem do subterrâneo, ele é assustadoramente solitário, e essa solidão é aliviada penas por encontros sexuais passageiros. No final, K. é executado pelos enviados do tribunal, homens que parecem velhos atores de décima categoria. Em um terreno baldio, um deles enterra a faca no coração de K. ""Como um cão!", disse ele; era como se a vergonha precisasse sobreviver a ele."

Árvores Abatidas
O austríaco Thomas Bernhard é com certeza o maior romancista a ter escrito em alemão na segunda metade do século 20. Sua admiração especial por Dostoiévski e Kafka não é acidental; ele compartilha com eles a incapacidade de ver qualquer sentimento ou circunstância senão como um conjunto de contradições, qualquer uma das quais deveria, mas na verdade não o faz, excluir sua antítese.
"Árvores Abatidas" (Ed. Rocco) é a história de um "jantar artístico" em Viena, ao qual o narrador comparece e do qual não sai, se bem que não haja nada que ele deteste mais do que jantares artísticos. Ele aceitou o convite porque lhe foi feito de forma abrupta por um casal de pessoas que 30 anos antes haviam sido seus melhores amigos e protetores, e a quem ele agora despreza. Mais cedo, naquele dia, os anfitriões, ele e uma mulher que também está convidada para o jantar foram ao funeral de outra mulher, uma amiga e provavelmente amante do narrador no passado, que se enforcara.
O convidado de honra, ator no Burgtheater de Viena, está atrasado. O jantar só é servido depois da meia-noite, e, enquanto eles esperam a refeição, que se arrasta em meio à peroração do ator, o narrador, em um monólogo vitriólico e maravilhosamente engraçado, disseca a vida da mulher morta, dos convidados e anfitriões e, evidentemente, a sua vida. Os narradores de Bernhard odeiam de maneira prodigiosa, e no entanto os amamos. São brilhantes demais para que nos comportemos de outra forma.


Louis Begley é escritor, autor de, entre outros, "O Homem Que Se Atrasava" e "Infância de Mentira" (Companhia das Letras).
Tradução de Clara Allain.


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