São Paulo, domingo, 28 de maio de 2000


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Em "Invenção e Memória" Lygia Fagundes Telles reelabora sua experiência com afeto e ironia
Expansão do vivido

José Maria Cançado
especial para a Folha

Bons escritores costumam chegar a um momento na sua obra no qual memória e invenção já não se distinguem. A memória, como que pela pressão do próprio vivido, toca o que parece nunca acontecido. A invenção, pela pressão desse biográfico expandido em que se torna o escritor, abriga o que aconteceu e nunca deixou de acontecer. Esse último livro de Lygia Fagundes Telles é a outra volta -irônica, meio enviezada e perfeitamente amorosa- das suas memórias, suas experiências, da sua juventude e amizades. Não falta a essa reelaboração o quê de desgarramento e a irização que existe nos quadros de ficção. Isso por causa do uso, nos relatos que se deveria chamar de mais autobiográficos (que talvez sejam os melhores), da alusão, do recorte elíptico dos diálogos, de espacialização significativa do vivido, próprios da ficção. E na ficção de Lygia Fagundes Telles em especial.

Mote jocoso
É assim na reconstituição ("Heffman") dos seus encontros, quando da sua juventude, na livraria Jaraguá, aberta por Alfredo Mesquita na rua Marconi (em São Paulo). Aí, conta a autora, Alfredo Mesquita ensaiava uma peça, na qual o personagem principal (o mesmo Heffman), chegado da Europa, provoca no grupo de jovens intelectuais uma atitude tão admirativa e expectante quanto datada e ironicamente guardada, anos depois, na memória e experiência comum de formação daqueles jovens (a fala final da personagem interpretada por Lygia Fagundes Telles -"Heffmann, não me abandone"- viraria anos mais tarde uma espécie de mote jocoso e telefônico entre a própria Lygia e Alfredo Mesquita). Há muito de evocação e de crônica nesse relato, com a menção aos versos de Mário de Andrade gravados na lareira da casa de Alfredo Mesquita ("Essa impiedade da paineira consigo mesma,/ qualquer vento/ vento qualquer"), ao grupo da revista "Clima", com um dos seus membros, Antonio Candido, sendo o "ponto" na noite de estréia no Teatro Municipal de São Paulo, e uma certa atmosfera de recolhimento nada apequenado naquelas salas, nas conversas, na sopa ao final dos ensaios, no globo terrestre de vidro misteriosamente aquecido. Mas há também uma mistura de melancolia e de pano rápido, de sensibilidade anelante e salto formativo diante do perdido, de memória e sketch, que esboça um delicioso quadro de ficção, de divertimento alto. Mais perfeita reinvenção da memória talvez seja o relato "Rua Sabará, 400" (então endereço da autora e de Paulo Emilio Salles Gomes, seu marido), em que os dois discutem durante uma noite a elaboração de um roteiro sobre "Dom Casmurro", encomendado pelo cineasta Paulo César Saraceni. No meio de gatos (com nomes epigramaticamente aplicados por Paulo Emilio) e um diálogo ora interrompido, meio retomado, há quase uma machadianização da cena doméstica, com o enigma de Capitu e a crueldade de Bentinho indo e vindo na sala. Para esse arejamento, esse bonito demandar o aberto que há na situação do número 440 da rua Sabará, não concorre pouco o céu de subúrbio carioca de Matacavalos dessa noite paulistana, "desabando de estrelas".

Programa negativo
Se há essa reinvenção da memória e das experiências da autora em alguns relatos deste livro, o que nele é matéria de ficção aparece, se é possível dizer assim, "lygianizado". Assim é em "Dia de Dizer Não", que tem andamento, linhas e resolução de um conto. Nele, a narradora, disposta a seguir o programa negativo anunciado no título, se recusa a comprar os papéis de carta perfumados que um menino só tronco e muletas lhe oferece pela janela do táxi, para depois voltar ao mesmo lugar e procurar em vão "a mão ossuda que sacudia o jardim do arco-íris".
Há nesse conto, e em alguns outros, como "O Cristo da Bahia", "A Chave na Porta", um cerco, um constrangimento da invenção pelo que, por ser Lygia Fagundes Telles, não pode se passar de outro jeito. Já se disse que a biografia ampla e anticartorial em que se torna o escritor é o lugar do justo.
Bobagem ficar especulando se os contos e relatos de "Invenção e Memória" são piores do que os contos de "Antes do Baile Verde" (1970), "Seminário dos Ratos" (1977), "A Disciplina do Amor" (1983), ou que os romances "Ciranda de Pedra" (1954), "Verão no Aquário" (1964) e "As Meninas" (1973). Nos bons escritores, a espacialização malandra e meio coreográfica do vivido e da memória e a biografização secreta da ficção, como acontece neste livro, são talvez a mais alta conquista. É assim que costumam realizar o que lhes cabe -fazer tudo pelo que não existe. Para isso não contam pouco com o que para eles talvez exista mais precariamente, eles mesmos.



Invenção e Memória
125 págs., R$ 15 de Lygia Fagundes Telles. Ed. Rocco (r. Rodrigo Silva, 26, 5º andar, CEP 20011-040, RJ. tel. 0/xx/21/507-2000).



José Maria Cançado é jornalista, autor de "Os Sapatos de Orfeu" (Scritta), biografia de Carlos Drummond de Andrade.


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