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Em "Invenção e Memória" Lygia Fagundes Telles
reelabora sua experiência com afeto e ironia
Expansão do vivido
José Maria Cançado
especial para a Folha
Bons escritores costumam chegar a um momento na sua obra no qual memória e invenção já
não se distinguem. A memória, como que pela
pressão do próprio vivido, toca o que parece
nunca acontecido. A invenção, pela pressão desse biográfico expandido em que se torna o escritor, abriga o
que aconteceu e nunca deixou de acontecer.
Esse último livro de Lygia Fagundes Telles é a outra
volta -irônica, meio enviezada e perfeitamente amorosa- das suas memórias, suas experiências, da sua juventude e amizades. Não falta a essa reelaboração o quê
de desgarramento e a irização que existe nos quadros de
ficção. Isso por causa do uso, nos relatos que se deveria
chamar de mais autobiográficos (que talvez sejam os
melhores), da alusão, do recorte elíptico dos diálogos,
de espacialização significativa do vivido, próprios da
ficção. E na ficção de Lygia Fagundes Telles em especial.
Mote jocoso
É assim na reconstituição ("Heffman") dos seus encontros,
quando da sua juventude, na livraria Jaraguá, aberta por Alfredo Mesquita na
rua Marconi (em São Paulo). Aí, conta a
autora, Alfredo Mesquita ensaiava uma
peça, na qual o personagem principal (o
mesmo Heffman), chegado da Europa,
provoca no grupo de jovens intelectuais
uma atitude tão admirativa e expectante
quanto datada e ironicamente guardada,
anos depois, na memória e experiência
comum de formação daqueles jovens (a
fala final da personagem interpretada
por Lygia Fagundes Telles -"Heffmann, não me abandone"- viraria
anos mais tarde uma espécie de mote jocoso e telefônico entre a própria Lygia e
Alfredo Mesquita).
Há muito de evocação e de crônica nesse relato, com a menção aos versos de
Mário de Andrade gravados na lareira da
casa de Alfredo Mesquita ("Essa impiedade da paineira consigo mesma,/ qualquer vento/ vento qualquer"), ao grupo
da revista "Clima", com um dos seus
membros, Antonio Candido, sendo o
"ponto" na noite de estréia no Teatro
Municipal de São Paulo, e uma certa atmosfera de recolhimento nada apequenado naquelas salas, nas conversas, na
sopa ao final dos ensaios, no globo terrestre de vidro misteriosamente aquecido. Mas há também uma mistura de melancolia e de pano rápido, de sensibilidade anelante e salto formativo diante do
perdido, de memória e sketch, que esboça um delicioso
quadro de ficção, de divertimento alto.
Mais perfeita reinvenção da memória talvez seja o relato "Rua Sabará, 400" (então endereço da autora e de
Paulo Emilio Salles Gomes, seu marido), em que os dois
discutem durante uma noite a elaboração de um roteiro
sobre "Dom Casmurro", encomendado pelo cineasta
Paulo César Saraceni.
No meio de gatos (com nomes epigramaticamente
aplicados por Paulo Emilio) e um diálogo ora interrompido, meio retomado, há quase uma machadianização
da cena doméstica, com o enigma de Capitu e a crueldade de Bentinho indo e
vindo na sala. Para esse arejamento, esse
bonito demandar o aberto que há na situação do número 440 da rua Sabará,
não concorre pouco o céu de subúrbio
carioca de Matacavalos dessa noite paulistana, "desabando de estrelas".
Programa negativo
Se há essa reinvenção da memória e das experiências da autora em alguns relatos
deste livro, o que nele é matéria de ficção aparece, se é
possível dizer assim, "lygianizado". Assim é em "Dia de
Dizer Não", que tem andamento, linhas e resolução de
um conto. Nele, a narradora, disposta a seguir o programa negativo anunciado no título, se recusa a comprar
os papéis de carta perfumados que um menino só tronco e muletas lhe oferece pela janela do táxi, para depois
voltar ao mesmo lugar e procurar em vão "a mão ossuda que sacudia o jardim do arco-íris".
Há nesse conto, e em alguns outros, como "O Cristo da Bahia", "A Chave na
Porta", um cerco, um constrangimento
da invenção pelo que, por ser Lygia Fagundes Telles, não pode se passar de outro jeito. Já se disse que a biografia ampla
e anticartorial em que se torna o escritor
é o lugar do justo.
Bobagem ficar especulando se os contos e relatos de "Invenção e Memória"
são piores do que os contos de "Antes do
Baile Verde" (1970), "Seminário dos Ratos" (1977), "A Disciplina do Amor"
(1983), ou que os romances "Ciranda de
Pedra" (1954), "Verão no Aquário"
(1964) e "As Meninas" (1973). Nos bons
escritores, a espacialização malandra e
meio coreográfica do vivido e da memória e a biografização secreta da ficção, como acontece neste livro, são talvez a mais
alta conquista. É assim que costumam
realizar o que lhes cabe -fazer tudo pelo
que não existe. Para isso não contam
pouco com o que para eles talvez exista
mais precariamente, eles mesmos.
Invenção e Memória
125 págs., R$ 15
de Lygia Fagundes Telles. Ed.
Rocco (r. Rodrigo Silva, 26, 5º
andar, CEP 20011-040, RJ. tel.
0/xx/21/507-2000).
José Maria Cançado é jornalista, autor de "Os Sapatos de Orfeu" (Scritta), biografia de Carlos
Drummond de Andrade.
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