|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+(L)ivros
"Histórias
do Sr. Keuner"
traz 15 peças inéditas
de Brecht recém-
descobertas
em uma
pasta na Suíça
Estripulias de joão-ninguém
SÉRGIO DE CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Em torno do sr. K, um
irônico pensador antiideológico, Brecht
escreveu dezenas de
fragmentos teórico-narrativos. A maioria das "Histórias do sr. Keuner" já era conhecida no Brasil: pela tradução de Marcelo Backes editada
em formato de bolso no Rio
Grande do Sul em 1998 (Unidade Editorial/Prefeitura de Porto Alegre) ou pela pioneira, a de
Paulo César de Souza, editada
em 1989 pela Brasiliense.
Revista para a editora 34, é
esta tradução que agora se
reimprime, com a inclusão de
15 fragmentos recém-descobertos, provenientes da chamada "Pasta de Zurique", do
espólio da documentarista suíça Reni Mertens-Bertozzi.
"A melhor maneira de uma
pessoa aprender é ela própria
fazer a coisa", nos diz a estética
teatral brechtiana. A incompletude do palco é uma ferramenta de co-responsabilização do
público.
É também essa a voz literária
de Keuner, um crítico alegre,
comedor de pudins, que aparece em textos curtos epigramáticos como um pensador que
pratica o desmonte das idéias
dominantes, fazendo-as colidir
com a prática real. O inacabamento programático de suas
palavras e gestos está no cerne
de sua postura dialética.
Ausência
Numa aparente contradição
com sua atitude clássica,
Brecht queria que seu teatro
transmitisse a sensação de que
"falta alguma coisa". A ausência
da emoção conclusiva aguça o
trabalho dos sentidos e convida
o espectador a investigar razões exteriores à ficção, que
provêm das forças sociais.
Nos escritos do sr. Keuner,
sujeito e objeto da crítica se alternam numa confusão chã que
beira a palhaçada, à maneira do
sufi Nasrudin. O divertimento
desse joão-ninguém Keuner é
gerar um curto-circuito na tendência idealista do leitor, sendo
esta, paradoxalmente, estimulada pelo questionamento do
caso. A evidência das idéias comuns é assim estranhada e negada. É o leitor quem produz suas lições.
Os conceitos reguladores
centrais dos atos na sociedade
moderna -propriedade, indivíduo, nação, Deus, bondade,
honestidade etc.- são enunciados de modo que a resposta genérica convencional seja ridicularizada junto com a própria
pergunta. Para Keuner, o caráter do sujeito "corrupto" não
pode ser entendido sem a reflexão sobre "a arte de não corromper", as opiniões estúpidas
devem nos levar à crítica das vivências estúpidas, a estética deve ser deduzida das necessidades da luta, e o desejo mais legítimo do ponto de vista moral é
o de existir.
Se o gesto irracional tem
sempre algo de idealista, a crítica de Keuner também não leva
a sério a teoria crítica sem utilidade prática.
Interessado no debate sobre
a mercantilização da vida, fenômeno típico de uma "época antiga" em que "devem ter existido muitas pessoas que eram
vistas apenas como objeto de
uso", Keuner repudia junto
com o processo de coisificação
dos homens a gritaria filosófica
sobre "o caráter incorrigível"
dos jornais ou sobre canções da
moda que determinam a vida
em situações decisivas. Os jornais são corrigíveis, não o homem como abstração. E, "se tivéssemos uma boa vida, não
precisaríamos realmente de
conselhos muito sábios".
Prática divertida
Seu comportamento por vezes lembra o de Brecht quando
sugeriu a Theodor Adorno "que
atacasse o capitalismo por ter
acabado com o hábito de pechinchar. Foi isso que eliminou
toda a imaginação, todo o humor, todo o embate divertido,
em suma toda a graça que havia
no comércio".
Nas histórias do sr. Keuner,
qualquer teoria que engendre a
passividade -mesmo a mais
verdadeira- é rejeitada como
contribuição à naturalização,
como "metafisicante", incapaz
de "terrenalizar" a experiência
e ajudar os homens na tarefa de
produzir seu destino. De modo
sinuoso, Keuner desconfia dos
que desconfiam da práxis.
Como nas principais criações
de Brecht, ele habita uma zona
simbólica em que a reificação
não é absoluta, em que existe
uma medida humana do "não",
em que é possível a construção
de gestos coletivos de mudança
para melhor, a partir de relações não submersas no ciclo
mercantil da troca nem afastadas das disputas pelas conquistas produtivas.
Ação coletiva
"Só aparentemente as coisas
já não dependem das nossas
decisões; na realidade, as decisões tornaram-se simplesmente mais difíceis de tomar", escreveu certa vez Brecht, contrariando a idéia de que "o sujeito está liquidado com ossos e
tudo" e que as causas das tragédias são muito abstratas para
que possam ser nomeadas.
É na reinvenção do conhecimento divertido e no fortalecimento, pelo movimento, da capacidade da ação coletiva que
Brecht continua a dar sentido à
tese de Marx de que o pensamento que vale a pena é o que
intervém na prática e se deixa
criticar por ela. A boa crítica,
segundo Keuner-Brecht, é a
que reconhece sua incompletude fundamental, aquela que
produz para conhecer.
SÉRGIO DE CARVALHO é diretor teatral e professor de dramaturgia na USP. Atualmente ensaia "O Círculo de Giz Caucasiano", de Brecht.
HISTÓRIAS DO SR. KEUNER
Autor: Bertolt Brecht
Tradutor: Paulo César de Souza
Editora: Editora 34 (tel. 0/xx/11/
3816-6777)
Quanto: R$ 29 (144 págs.)
Texto Anterior: + (c)ultura: Visão de Barthes Próximo Texto: + inédito: O sr. K. e a política alemã Índice
|