São Paulo, domingo, 28 de novembro de 2004

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Ponto de fuga

Gato e sapato

Divulgação
Cena do filme "Meu Tio" (1956), do diretor francês Jacques Tati


JORGE COLI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Gatos - Bigodes ao Léu" (último álbum de Laerte, consagrado a felinos, editora Devir), é branco e tem todas as sonatas de Beethoven. Ele se parece mais com Haydn, porém. Quer dizer, as tirinhas se parecem. A comparação é meio esnobe, mas vale. Porque Haydn é um compositor sem complicações. Sua música não parte da criação difícil e angustiada nem da desenvoltura fácil. É como que feita de felicidade e não sai dela, mesmo quando melancólica, mesmo quando se inspira nas últimas palavras de Cristo na cruz. Com ele, a tristeza nunca se faz drama, é tristeza tranqüila, segura e sem arroubos, é tristeza... Feliz.
Todas essas bobagens estão escritas aqui para falar dos gatos de Laerte, que valem muito mais e melhor do que isso. Porém vai uma passagem de Joaquim le Breton, aquele da Missão Francesa, no primeiro livro sobre música publicado no Brasil (1820). Versa justamente sobre Haydn e teve uma ótima reedição recente (ed. Ateliê): "Convém conhecer a doutrina de Haydn em música. Era simples e clara: ele dizia "que uma composição devia ter uma bela melodia natural, as idéias seguidas, poucos ornatos e sobretudo nada de requintes e acompanhamentos sobrecarregados'". O gato paquera a gatinha: "Prismatização da minha luz solar! Sétimo selo do meu apocalipse! Castanhola da minha zarzuela!!". Os olhos de meia pálpebra da gatinha se fecham completamente, adormecidos. Nova tentativa, singela na metáfora: "Flor do meu jardim...". Pronto. A gatinha se arrepia e responde: "Bateu!".

Sobrinhos - A Magnus Opus Collection lançou em DVD, entre outros grandes filmes do cinema japonês, "Bom Dia" ("Ohayo"), de Yasujiro Ozu [1903-1963]. Data de 1959.
"Meu Tio", do francês Jacques Tati [1909-1982], realizado um ano antes (DVD Continental), deve ter provocado impacto sobre Ozu. O tom de comédia de "Bom Dia", com sua música alvoroçada, que pasticha Mozart e mandolinatas italianas, situa o humor no descompasso entre o mundo dos adultos e o das crianças. Vem inteiramente inserido no quotidiano. Nesses pontos, é, de fato, muito próximo de "Meu Tio".
Mais ainda, Ozu e Tati trabalham num registro cômico que é também antropológico. Analisam com cuidado o mundo da classe média de seus países, quando os avanços da modernidade internacional afetam a vida das pessoas.
Tati começou com "Carrossel da Esperança", de 1949: mundo arcaico da província francesa, feira de atrações numa aldeiazinha perdida. Ali, acontece a projeção de um documentário sobre a vida trepidante nos Estados Unidos. É o suficiente para perturbar o carteiro. Ele tenta aplicar, com resultados hilariantes, o princípio da eficácia e rentabilidade na entrega de suas cartas. Depois, nos filmes seguintes de Tati, mais e mais o mundo tecnológico devora as relações afetivas, atingindo o apogeu com "Trafic" e "Playtime".

Antena - Os filmes de Ozu se afastam da nostalgia não-moderna de Tati. Uma televisão é o ponto crucial de "Bom Dia". Ela não vem condenada. A pressão feita pelos meninos sobre os pais para que comprem o aparelho é mostrada com ternura.
Ao contrário de Tati, em que os eletrodomésticos são sempre ridículos, Ozu confere a eles o curioso papel de unir as pessoas. Tornam-se transmissores de vínculos silenciosos, muito humanos.

Detalhes - No mundo de Tati, a felicidade é plena porque a morte não existe. Tudo é jubilante e para sempre. Ozu, ao contrário, mesmo em suas comédias, intui a velhice e o fim. Não com o "pathos" do desespero, com lirismo exaltado ou com explicitação brutal. Nada das eloqüências poéticas de Kurosawa ou Mizoguchi. A morte está ali, no transitório dos laços que se tecem entre os seres, calma, adormecida.
A câmera, sempre imóvel, plantada no nível do chão, contempla o ir e vir dos humanos. A banalidade quotidiana se muda em metafísica, discreta e comovida. Ozu é um gênio absoluto, em seu amor pelo pequeno detalhe, pelas situações corriqueiras, em seu humor generoso e sua tristeza quieta.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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