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Ponto de fuga
Gato e sapato
Divulgação
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Cena do filme "Meu Tio" (1956), do diretor francês Jacques Tati |
JORGE COLI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Gatos - Bigodes ao Léu" (último álbum de Laerte, consagrado a felinos, editora
Devir), é branco e tem todas as sonatas de Beethoven. Ele se parece
mais com Haydn, porém. Quer dizer, as tirinhas se parecem. A comparação é meio esnobe, mas vale.
Porque Haydn é um compositor
sem complicações. Sua música não
parte da criação difícil e angustiada
nem da desenvoltura fácil. É como
que feita de felicidade e não sai dela, mesmo quando melancólica,
mesmo quando se inspira nas últimas palavras de Cristo na cruz.
Com ele, a tristeza nunca se faz
drama, é tristeza tranqüila, segura
e sem arroubos, é tristeza... Feliz.
Todas essas bobagens estão escritas aqui para falar dos gatos de
Laerte, que valem muito mais e
melhor do que isso. Porém vai
uma passagem de Joaquim le Breton, aquele da Missão Francesa, no
primeiro livro sobre música publicado no Brasil (1820). Versa justamente sobre Haydn e teve uma ótima reedição recente (ed. Ateliê):
"Convém conhecer a doutrina de
Haydn em música. Era simples e
clara: ele dizia "que uma composição devia ter uma bela melodia natural, as idéias seguidas, poucos ornatos e sobretudo nada de requintes e acompanhamentos sobrecarregados'". O gato paquera a gatinha: "Prismatização da minha luz
solar! Sétimo selo do meu apocalipse! Castanhola da minha zarzuela!!". Os olhos de meia pálpebra da
gatinha se fecham completamente,
adormecidos. Nova tentativa, singela na metáfora: "Flor do meu jardim...". Pronto. A gatinha se arrepia e responde: "Bateu!".
Sobrinhos - A Magnus Opus Collection lançou em DVD, entre outros grandes filmes do cinema japonês, "Bom Dia" ("Ohayo"), de
Yasujiro Ozu [1903-1963]. Data de
1959.
"Meu Tio", do francês Jacques
Tati [1909-1982], realizado um ano
antes (DVD Continental), deve ter
provocado impacto sobre Ozu. O
tom de comédia de "Bom Dia",
com sua música alvoroçada, que
pasticha Mozart e mandolinatas
italianas, situa o humor no descompasso entre o mundo dos
adultos e o das crianças. Vem inteiramente inserido no quotidiano.
Nesses pontos, é, de fato, muito
próximo de "Meu Tio".
Mais ainda, Ozu e Tati trabalham
num registro cômico que é também antropológico. Analisam com
cuidado o mundo da classe média
de seus países, quando os avanços
da modernidade internacional afetam a vida das pessoas.
Tati começou com "Carrossel da
Esperança", de 1949: mundo arcaico da província francesa, feira de
atrações numa aldeiazinha perdida. Ali, acontece a projeção de um
documentário sobre a vida trepidante nos Estados Unidos. É o suficiente para perturbar o carteiro.
Ele tenta aplicar, com resultados
hilariantes, o princípio da eficácia e
rentabilidade na entrega de suas
cartas. Depois, nos filmes seguintes de Tati, mais e mais o mundo
tecnológico devora as relações afetivas, atingindo o apogeu com
"Trafic" e "Playtime".
Antena - Os filmes de Ozu se afastam da nostalgia não-moderna de
Tati. Uma televisão é o ponto crucial de "Bom Dia". Ela não vem
condenada. A pressão feita pelos
meninos sobre os pais para que
comprem o aparelho é mostrada
com ternura.
Ao contrário de Tati, em que os
eletrodomésticos são sempre ridículos, Ozu confere a eles o curioso
papel de unir as pessoas. Tornam-se transmissores de vínculos silenciosos, muito humanos.
Detalhes - No mundo de Tati, a felicidade é plena porque a morte
não existe. Tudo é jubilante e para
sempre. Ozu, ao contrário, mesmo
em suas comédias, intui a velhice e
o fim. Não com o "pathos" do desespero, com lirismo exaltado ou
com explicitação brutal. Nada das
eloqüências poéticas de Kurosawa
ou Mizoguchi. A morte está ali, no
transitório dos laços que se tecem
entre os seres, calma, adormecida.
A câmera, sempre imóvel, plantada no nível do chão, contempla o
ir e vir dos humanos. A banalidade
quotidiana se muda em metafísica,
discreta e comovida. Ozu é um gênio absoluto, em seu amor pelo pequeno detalhe, pelas situações corriqueiras, em seu humor generoso
e sua tristeza quieta.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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