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história
POR RONALDO VAINFAS
Religião recalcada
Uma lacuna de nossa historiografia se encontra no domínio das
religiosidades. Lacuna espantosa,
sendo o Brasil, ainda no século 21,
país de sentimento religioso tão
intenso e multifacetado no campo
ou nas cidades, de norte a sul. E se
trata de uma dívida dos historiadores, em particular, pois os antropólogos deram contribuições
decisivas nesse campo, como nos
estudos de Roger Bastide.
É verdade que, sobretudo em relação ao período colonial, alguns
historiadores têm procurado, nos
últimos 20 anos, descortinar temas e fontes até então esquecidos.
Laura de Mello e Souza publicou
livro hoje clássico sobre a feitiçaria
e as práticas mágicas, como "O
Diabo e a Terra de Santa Cruz"
[Companhia das Letras].
Luiz Mott fez uma bela biografia
de uma visionária africana no século 18, "A Rosa Egpcíaca" [ed.
Bertrand]. Anita Novinsky publicou, ainda em 1972, "Cristãos-Novos na Bahia" [ed. Perspectiva], livro-chave sobre os judaizantes coloniais. Meu próprio estudo sobre
a santidade na Bahia quinhentista
["A Heresia dos Índios", Cia. das
Letras] buscou resgatar o sincretismo católico-tupinambá no limiar da colonização.
Mas ainda há muito o que pesquisar nesse domínio dos sincretismos religiosos, devoções e heresias. Os arquivos da Inquisição são
riquíssimos para essa empreitada.
Um momento particularmente rico e pouco estudado de nosso passado religioso foi o do período holandês em Pernambuco, entre
1630 e 1654, em especial porque foi
o único em que católicos, calvinistas e judeus conviveram livremente no Brasil colonial.
Os calvinistas, de diversos matizes, chegaram a estabelecer um sínodo, nos anos 1640. Os judeus
portugueses vieram de Amsterdã
e fundaram duas sinagogas, uma
no Recife, outra em Maurícia, e
conseguiram converter muitos
cristãos-novos à religião dos ancestrais. Os católicos ali permaneceram, com o aval dos holandeses,
à exceção dos jesuítas. Faziam suas
procissões e festas para desespero
dos ministros protestantes.
Essa história é, porém, ainda
mais complicada, se lembramos
que os índios potiguares se dividiram na guerra, ficando uns do lado
português, liderados por Felipe Camarão, e outros do lado holandês,
convertidos ao calvinismo, liderados por Pedro Poti e outros.
O livro de Frans Schalkwijk, "A
Igreja e o Estado no Brasil Holandês", é talvez o único a iluminar a
missionação calvinista no Pernambuco holandês.
E muito haveria que estudar sobre
os africanos em um tempo em que o
tráfico se intensificou. Africanos
que vinham de Angola e do Congo,
muitos deles já católicos, pois não
custa lembrar a conversão do rei do
Congo ao catolicismo ainda no final
do século 15. Isso talvez explique alguns traços católicos observados
em Palmares, principal quilombo
da história brasileira.
De modo que o Brasil holandês é
um excelente contexto para rastrearmos um núcleo importante da
brasilidade. Não no sentido que lhe
dava a historiografia oitocentista,
que viu na insurreição pernambucana a união das três raças contra o
estrangeiro, mas porque ela pôs em
cena, de um lado, mesclas religiosas
formidáveis e, de outro, tensões de
uma verdadeira babel cultural.
Ronaldo Vainfas é professor de história
moderna na Universidade Federal Fluminense e autor de "Trópico dos Pecados"
(ed. Nova Fronteira), entre outros livros.
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