São Paulo, domingo, 28 de novembro de 2004

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história

POR RONALDO VAINFAS

Religião recalcada

Uma lacuna de nossa historiografia se encontra no domínio das religiosidades. Lacuna espantosa, sendo o Brasil, ainda no século 21, país de sentimento religioso tão intenso e multifacetado no campo ou nas cidades, de norte a sul. E se trata de uma dívida dos historiadores, em particular, pois os antropólogos deram contribuições decisivas nesse campo, como nos estudos de Roger Bastide.
É verdade que, sobretudo em relação ao período colonial, alguns historiadores têm procurado, nos últimos 20 anos, descortinar temas e fontes até então esquecidos. Laura de Mello e Souza publicou livro hoje clássico sobre a feitiçaria e as práticas mágicas, como "O Diabo e a Terra de Santa Cruz" [Companhia das Letras].
Luiz Mott fez uma bela biografia de uma visionária africana no século 18, "A Rosa Egpcíaca" [ed. Bertrand]. Anita Novinsky publicou, ainda em 1972, "Cristãos-Novos na Bahia" [ed. Perspectiva], livro-chave sobre os judaizantes coloniais. Meu próprio estudo sobre a santidade na Bahia quinhentista ["A Heresia dos Índios", Cia. das Letras] buscou resgatar o sincretismo católico-tupinambá no limiar da colonização.
Mas ainda há muito o que pesquisar nesse domínio dos sincretismos religiosos, devoções e heresias. Os arquivos da Inquisição são riquíssimos para essa empreitada. Um momento particularmente rico e pouco estudado de nosso passado religioso foi o do período holandês em Pernambuco, entre 1630 e 1654, em especial porque foi o único em que católicos, calvinistas e judeus conviveram livremente no Brasil colonial.
Os calvinistas, de diversos matizes, chegaram a estabelecer um sínodo, nos anos 1640. Os judeus portugueses vieram de Amsterdã e fundaram duas sinagogas, uma no Recife, outra em Maurícia, e conseguiram converter muitos cristãos-novos à religião dos ancestrais. Os católicos ali permaneceram, com o aval dos holandeses, à exceção dos jesuítas. Faziam suas procissões e festas para desespero dos ministros protestantes.
Essa história é, porém, ainda mais complicada, se lembramos que os índios potiguares se dividiram na guerra, ficando uns do lado português, liderados por Felipe Camarão, e outros do lado holandês, convertidos ao calvinismo, liderados por Pedro Poti e outros.
O livro de Frans Schalkwijk, "A Igreja e o Estado no Brasil Holandês", é talvez o único a iluminar a missionação calvinista no Pernambuco holandês.
E muito haveria que estudar sobre os africanos em um tempo em que o tráfico se intensificou. Africanos que vinham de Angola e do Congo, muitos deles já católicos, pois não custa lembrar a conversão do rei do Congo ao catolicismo ainda no final do século 15. Isso talvez explique alguns traços católicos observados em Palmares, principal quilombo da história brasileira.
De modo que o Brasil holandês é um excelente contexto para rastrearmos um núcleo importante da brasilidade. Não no sentido que lhe dava a historiografia oitocentista, que viu na insurreição pernambucana a união das três raças contra o estrangeiro, mas porque ela pôs em cena, de um lado, mesclas religiosas formidáveis e, de outro, tensões de uma verdadeira babel cultural.


Ronaldo Vainfas é professor de história moderna na Universidade Federal Fluminense e autor de "Trópico dos Pecados" (ed. Nova Fronteira), entre outros livros.


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