São Paulo, domingo, 28 de novembro de 2004

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Estudos no Brasil e na Inglaterra derrubam mitos sobre a vida e a atuação política do ditador soviético

A nova face de Stálin

RUY FAUSTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A editora Nova Fronteira publica em português a primeira parte (1879-1939) da biografia de Stálin, por Dmitri Volkogonov ("Stálin -Triunfo e Tragédia"), em tradução feita a partir da versão inglesa [a segunda parte também está saindo pela mesma editora]. O autor (1928-1995), general do Exército soviético, filho de um técnico em agricultura que Stálin fuzilou, trabalhou no setor de propaganda do Exército (época em que "adquiriu a reputação de "linha dura'"), foi diretor do Instituto de História Militar do Exército e, mais tarde, assessor do [ex-presidente] Boris Ieltsin e presidente de uma comissão parlamentar que suspendeu o sigilo de milhões de documentos do Partido Comunista da União Soviética.
Dadas as suas funções, pelo menos parcialmente o autor não precisou esperar por essa medida. O livro, publicado em 1989, utiliza materiais a que os biógrafos anteriores não tinham acesso.
Da bibliografia mais recente sobre o tema, é preciso mencionar o livro de Simon Sebag Montefiore -"Stálin - The Court of the Red Tsar" (Stálin - A Corte do Czar Vermelho, ed. Phoenix, editado na Grã Bretanha em 2003). O livro de Montefiore contém uma espécie de análise etnográfica da "corte" de Stálin. Sob muitos aspectos, é o complemento indispensável ao trabalho de Volkogonov.

Gostos literários
Se a crueldade e a amoralidade de Stálin são confirmadas pelos dois autores, eles rompem com a visão, que vem principalmente de Trótski -a de um Stálin "mediocridade burocrática incolor" (Montefiore, pág. 3). Volkogonov reconhece "uma inteligência excepcional" (de modo algum "genialidade"...) por trás do amoralismo "anti-humano" de Stálin.
De qualquer modo, Stálin, autodidata com gostos literários e artísticos os mais tradicionais era freqüentador assíduo dos teatros e grande leitor, principalmente de literatura e de história. O que não excluía, muito pelo contrário, uma grande hostilidade para com os "intelectuais". Lembremo-nos de que Hitler, que era igualmente um autodidata semiculto, tinha um ressentimento profundo em relação à intelligentsia.
Este primeiro volume nos conta a ascensão de um dirigente de importância secundária à direção suprema do partido e do Estado. A perspectiva de Volkogonov é bastante crítica em relação a Stálin, mas ele idealiza, em alguma medida, a figura de Lênin e o leninismo. Já com relação a Trótski, sem cair na demonização tradicional e reconhecendo alguns méritos ao personagem, a sua crítica parece, apesar de tudo, excessiva ("individualista", "egoísta", "eslavófilo" etc).
Nos textos posteriores de Volkogonov -outros tempos, sem dúvida-, ele critica Lênin e Trótski de forma mais equilibrada.
No que se refere à relação bolchevismo/stalinismo, a perspectiva de Montefiore, cujo livro é extraordinariamente rico, tem o defeito oposto. Ao descrever as práticas dos dirigentes stalinistas, o autor se refere, freqüentemente e sem mais, ao "bolchevismo". A responsabilidade do bolchevismo pelo que aconteceu depois é muito grande, porém importa lembrar que não houve simples continuidade.
Nos dois livros, mostra-se bem que a responsabilidade pelos crimes não é só de Stálin mas também da sua equipe de colaboradores. Os grandes co-responsáveis se chamam Molotóv, Vorochilóv -uma figura particularmente repugnante pelo amoralismo e a mediocridade, embora fosse fisicamente corajoso- e Kaganovitch.
Também Béria -um sádico de rara crueldade- e Zdanóv. Além de Malenkóv, os dois livros revelam quanta culpa no cartório tinha, igualmente, Kruschev, que, após a morte de Stálin, lançaria a luta contra "o culto da personalidade".
A história da emergência do grande terror stalinista é contada em registro mais político por Volkogonov e, mais "etnográfico", por Montefiore. É preciso ler os dois textos para ter uma idéia completa dessa novela de horror. Bem entendido, antes do grande terror -refiro-me à liquidação irracional e "compulsiva" de quadros do partido e da sociedade civil que se dá a partir de 1934-, já tinha havido muita violência. E o genocídio dos camponeses ocorrido no início dos anos 30 ultrapassa de longe o número de vítimas imediatas do terror.

Grande terror
Porém a maneira pela qual Stálin liqüida os seus companheiros de partido durante o grande terror é, se ouso dizer, notável -um verdadeiro clássico da brutalidade e da abjeção. A história de Kamenev e Zinoviev, antigos companheiros de direção, é particularmente atroz -Kamenev e Zinoviev já tinham capitulado de um modo humilhante nos anos 20, mas só são processados nos anos 30. Stálin lhes informa que, se se dispuserem a confessar todos os "crimes" (trata-se das acusações mais estapafúrdias, de traição e conspiração), o Bureau Político -mas do Bureau político só aparecerão Stálin e mais dois- lhes garantirá a vida.
Como era de esperar, eles confessam tudo e são condenados à morte. No dia da execução, Zinoviev -Kamenev tem uma atitude mais firme- pede aos guardas, desesperada e inutilmente, para falar com Stálin. Semanas depois, num jantar comemorativo, um dos personagens da corte de Stálin, que fazia freqüentemente o papel de bufão, imita as últimas palavras de Zinoviev (o artista usa sotaque ídiche: Zinoviev -como o próprio bufão, que, mais tarde, também seria executado- era judeu). Stálin e os demais convivas riem a não poder mais.
Dentre os muitos problemas teóricos e históricos que a leitura de uma biografia de Stálin levanta, destaco três (só proponho algumas hipóteses, evidentemente). Um é o da natureza do regime stalinista. O segundo é o de por que a opinião mundial de esquerda se iludiu, em proporção impressionante, com a figura de Stálin e com a natureza do seu regime.
O terceiro problema, mais específico, é o das razões do terror. A primeira questão, que já discuti em outros lugares (permito-me remeter a um texto recente sobre Trótski que publiquei na revista "Lua Nova"), poderia ser resumida pelos dois termos que utilizei no título do presente artigo. Stálin foi em geral considerado pela crítica (de esquerda, em particular) como um burocrata. Mas ele aparece também -ou antes?- como um déspota (Castoriadis considerava uma tolice a afirmação de Trótski de que Stálin é a quintessência da burocracia; uma atitude crítica que vai na mesma direção, embora menos radical, se encontra, também, no historiador Moshe Lewin).
Na realidade, Stálin foi as duas coisas. E mais: a reunião desses dois "estilos" numa só pessoa é um sintoma da originalidade do "sistema stalinista" (observe-se que também no nazismo há despotismo -ou tirania, não discuto aqui a nuança- e burocracia. Porém, se Hitler foi um déspota, ele não foi, como Stálin, um burocrata).
Para a segunda questão, diria, que embora essa não seja a única razão, seria importante ressaltar que a doutrina hegemônica no interior da esquerda desde o final do século 19, o marxismo, estava mal preparada para pensar a emergência de um "tertius" entre o capitalismo e o socialismo (em última análise, porque apesar de todas as suas inovações, o marxismo dependia demais da filosofia do progresso) e mal preparada, em especial, para decifrar um "tertius" que se apresentava sob a forma de um despotismo. Como já disse em outro lugar, "despotismo" não é um verdadeiro conceito no discurso de Marx. Sobre a questão dos motivos do terror, tenho a impressão de que havia ali pelo menos dois elementos.
De um lado, como os dois autores observam, havia o aspecto que poderíamos chamar de "queima de arquivo". Stálin queria liqüidar aqueles que sabiam demais e que sabiam principalmente duas coisas: que o papel histórico de Stálin havia sido bastante secundário, e outra, mais grave, que no seu famoso "Testamento", Lênin tinha proposto o afastamento dele, Stálin, do Secretariado Geral, por ser excessivamente rude, pouco leal etc.
A liqüidação desses "arquivos" apareceu como uma necessidade a partir do 17º Congresso do Partido (1934), porque, para surpresa geral, na eleição para o Comitê Central, houve mais de 300 votos contra Stálin -com o agravante de que só houve três votos contra Kirov, o dirigente que seria assassinado pouco mais tarde, em circunstâncias misteriosas (que a votação tenha sido secreta e que a eleição de Stálin não estivesse ameaçada não protegeu os opositores. Stálin liqüidou em massa os participantes desse congresso). Havia assim um descontentamento surdo contra Stálin.
Mas, além disso, e sem falar na "inércia" de todo terror, para além do objetivo de eliminar testemunhas, Stálin deve ter visto o interesse que oferecia o terror. Provavelmente, ele se deu conta de que o despotismo não sobrevive sem um terror cíclico.


Ruy Fausto é filósofo, professor emérito da USP e leciona na Universidade de Paris 8. É autor de, entre outros livros, "Marx -Lógica e Política" (ed. 34) e "Dialética Marxista, Dialética Hegeliana" (ed. Paz e Terra).

Stálin (volume 1, 1879-1939)
416 págs., R$ 39,00
de Dmitri Volkogonov. Trad. Joubert de Oliveira Brízida. Nova Fronteira (r. Bambina, 25, CEP 22251-050, RJ, tel. 0/xx/21/ 2131-1111).

Stálin (volume 2, 1939-1953)
312 págs., R$ 39,00
de D. Volkogonov. Trad. Joubert de Oliveira Brízida. Nova Fronteira.

Stalin - The Court of the Red Tsar
816 págs., US$ 30
de Simon Sebag Montefiore. Ed. Knopf (EUA)

Onde encomendar
Livros em inglês podem ser encomendados, em SP, na livraria Cultura (tel. 0/xx/ 11/ 3170-4033) e, no RJ, na Leonardo da Vinci (tel. 0/ xx/ 21/ 2533-2237) ou no site www.amazon.com



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