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Estudos no Brasil e na Inglaterra derrubam mitos sobre a vida e a atuação política do ditador soviético
A nova face de Stálin
RUY FAUSTO
ESPECIAL PARA A FOLHA
A editora Nova Fronteira publica
em português a primeira parte
(1879-1939) da biografia de Stálin,
por Dmitri Volkogonov ("Stálin
-Triunfo e Tragédia"), em tradução feita a partir da versão inglesa
[a segunda parte também está
saindo pela mesma editora]. O autor (1928-1995), general do Exército soviético, filho de um técnico em
agricultura que Stálin fuzilou, trabalhou no setor de propaganda do
Exército (época em que "adquiriu
a reputação de "linha dura'"), foi
diretor do Instituto de História Militar do Exército e, mais tarde, assessor do [ex-presidente] Boris
Ieltsin e presidente de uma comissão parlamentar que suspendeu o
sigilo de milhões de documentos
do Partido Comunista da União
Soviética.
Dadas as suas funções, pelo menos parcialmente o autor não precisou esperar por essa medida. O livro, publicado em 1989, utiliza materiais a que os biógrafos anteriores
não tinham acesso.
Da bibliografia mais recente sobre o tema, é preciso mencionar o
livro de Simon Sebag Montefiore
-"Stálin - The Court of the Red
Tsar" (Stálin - A Corte do Czar
Vermelho, ed. Phoenix, editado na
Grã Bretanha em 2003). O livro de
Montefiore contém uma espécie de
análise etnográfica da "corte" de
Stálin. Sob muitos aspectos, é o
complemento indispensável ao
trabalho de Volkogonov.
Gostos literários
Se a crueldade e a amoralidade de
Stálin são confirmadas pelos dois
autores, eles rompem com a visão,
que vem principalmente de Trótski -a de um Stálin "mediocridade
burocrática incolor" (Montefiore,
pág. 3). Volkogonov reconhece
"uma inteligência excepcional" (de
modo algum "genialidade"...) por
trás do amoralismo "anti-humano" de Stálin.
De qualquer modo, Stálin, autodidata com gostos literários e artísticos os mais tradicionais era freqüentador assíduo dos teatros e
grande leitor, principalmente de literatura e de história. O que não
excluía, muito pelo contrário, uma
grande hostilidade para com os
"intelectuais". Lembremo-nos de
que Hitler, que era igualmente um
autodidata semiculto, tinha um
ressentimento profundo em relação à intelligentsia.
Este primeiro volume nos conta
a ascensão de um dirigente de importância secundária à direção suprema do partido e do Estado. A
perspectiva de Volkogonov é bastante crítica em relação a Stálin,
mas ele idealiza, em alguma medida, a figura de Lênin e o leninismo.
Já com relação a Trótski, sem cair
na demonização tradicional e reconhecendo alguns méritos ao personagem, a sua crítica parece, apesar
de tudo, excessiva ("individualista", "egoísta", "eslavófilo" etc).
Nos textos posteriores de Volkogonov -outros tempos, sem dúvida-, ele critica Lênin e Trótski de
forma mais equilibrada.
No que se refere à relação bolchevismo/stalinismo, a perspectiva de
Montefiore, cujo livro é extraordinariamente rico, tem o defeito
oposto. Ao descrever as práticas
dos dirigentes stalinistas, o autor se
refere, freqüentemente e sem mais,
ao "bolchevismo". A responsabilidade do bolchevismo pelo que
aconteceu depois é muito grande,
porém importa lembrar que não
houve simples continuidade.
Nos dois livros, mostra-se bem
que a responsabilidade pelos crimes não é só de Stálin mas também
da sua equipe de colaboradores. Os
grandes co-responsáveis se chamam Molotóv, Vorochilóv -uma
figura particularmente repugnante
pelo amoralismo e a mediocridade,
embora fosse fisicamente corajoso- e Kaganovitch.
Também Béria -um sádico de
rara crueldade- e Zdanóv. Além
de Malenkóv, os dois livros revelam quanta culpa no cartório tinha,
igualmente, Kruschev, que, após a
morte de Stálin, lançaria a luta contra "o culto da personalidade".
A história da emergência do
grande terror stalinista é contada
em registro mais político por Volkogonov e, mais "etnográfico", por
Montefiore. É preciso ler os dois
textos para ter uma idéia completa
dessa novela de horror. Bem entendido, antes do grande terror
-refiro-me à liquidação irracional e "compulsiva" de quadros do
partido e da sociedade civil que se
dá a partir de 1934-, já tinha havido muita violência. E o genocídio
dos camponeses ocorrido no início
dos anos 30 ultrapassa de longe o
número de vítimas imediatas do
terror.
Grande terror
Porém a maneira pela qual Stálin
liqüida os seus companheiros de
partido durante o grande terror é,
se ouso dizer, notável -um verdadeiro clássico da brutalidade e da
abjeção. A história de Kamenev e
Zinoviev, antigos companheiros
de direção, é particularmente atroz
-Kamenev e Zinoviev já tinham
capitulado de um modo humilhante nos anos 20, mas só são processados nos anos 30. Stálin lhes
informa que, se se dispuserem a
confessar todos os "crimes" (trata-se das acusações mais estapafúrdias, de traição e conspiração), o
Bureau Político -mas do Bureau
político só aparecerão Stálin e mais
dois- lhes garantirá a vida.
Como era de esperar, eles confessam tudo e são condenados à morte. No dia da execução, Zinoviev
-Kamenev tem uma atitude mais
firme- pede aos guardas, desesperada e inutilmente, para falar
com Stálin. Semanas depois, num
jantar comemorativo, um dos personagens da corte de Stálin, que fazia freqüentemente o papel de bufão, imita as últimas palavras de Zinoviev (o artista usa sotaque ídiche: Zinoviev -como o próprio
bufão, que, mais tarde, também seria executado- era judeu). Stálin e
os demais convivas riem a não poder mais.
Dentre os muitos problemas teóricos e históricos que a leitura de
uma biografia de Stálin levanta,
destaco três (só proponho algumas
hipóteses, evidentemente). Um é o
da natureza do regime stalinista. O
segundo é o de por que a opinião
mundial de esquerda se iludiu, em
proporção impressionante, com a
figura de Stálin e com a natureza
do seu regime.
O terceiro problema, mais específico, é o das razões do terror. A primeira questão, que já discuti em outros lugares (permito-me remeter a
um texto recente sobre Trótski que publiquei na revista "Lua Nova"),
poderia ser resumida pelos dois
termos que utilizei no título do presente artigo. Stálin foi em geral considerado pela crítica (de esquerda,
em particular) como um burocrata.
Mas ele aparece também -ou antes?- como um déspota (Castoriadis considerava uma tolice a afirmação de Trótski de que Stálin é a
quintessência da burocracia; uma
atitude crítica que vai na mesma direção, embora menos radical, se
encontra, também, no historiador
Moshe Lewin).
Na realidade, Stálin foi as duas coisas. E mais: a reunião desses dois
"estilos" numa só pessoa é um sintoma da originalidade do "sistema
stalinista" (observe-se que também
no nazismo há despotismo -ou tirania, não discuto aqui a nuança-
e burocracia. Porém, se Hitler foi
um déspota, ele não foi, como Stálin, um burocrata).
Para a segunda questão, diria, que
embora essa não seja a única razão,
seria importante ressaltar que a
doutrina hegemônica no interior da
esquerda desde o final do século 19,
o marxismo, estava mal preparada
para pensar a emergência de um
"tertius" entre o capitalismo e o socialismo (em última análise, porque
apesar de todas as suas inovações, o
marxismo dependia demais da filosofia do progresso) e mal preparada, em especial, para decifrar um
"tertius" que se apresentava sob a
forma de um despotismo. Como já
disse em outro lugar, "despotismo"
não é um verdadeiro conceito no
discurso de Marx. Sobre a questão
dos motivos do terror, tenho a impressão de que havia ali pelo menos
dois elementos.
De um lado, como os dois autores
observam, havia o aspecto que poderíamos chamar de "queima de
arquivo". Stálin queria liqüidar
aqueles que sabiam demais e que
sabiam principalmente duas coisas:
que o papel histórico de Stálin havia
sido bastante secundário, e outra,
mais grave, que no seu famoso
"Testamento", Lênin tinha proposto o afastamento dele, Stálin, do Secretariado Geral, por ser excessivamente rude, pouco leal etc.
A liqüidação desses "arquivos"
apareceu como uma necessidade a
partir do 17º Congresso do Partido
(1934), porque, para surpresa geral,
na eleição para o Comitê Central,
houve mais de 300 votos contra Stálin -com o agravante de que só
houve três votos contra Kirov, o dirigente que seria assassinado pouco
mais tarde, em circunstâncias misteriosas (que a votação tenha sido
secreta e que a eleição de Stálin não
estivesse ameaçada não protegeu os
opositores. Stálin liqüidou em massa os participantes desse congresso). Havia assim um descontentamento surdo contra Stálin.
Mas, além disso, e sem falar na
"inércia" de todo terror, para além
do objetivo de eliminar testemunhas, Stálin deve ter visto o interesse que oferecia o terror. Provavelmente, ele se deu conta de que o
despotismo não sobrevive sem um
terror cíclico.
Ruy Fausto é filósofo, professor emérito
da USP e leciona na Universidade de Paris
8. É autor de, entre outros livros, "Marx -Lógica e Política" (ed. 34) e "Dialética Marxista, Dialética Hegeliana" (ed. Paz e Terra).
Stálin
(volume 1, 1879-1939)
416 págs., R$ 39,00
de Dmitri Volkogonov. Trad.
Joubert de Oliveira Brízida.
Nova Fronteira (r. Bambina,
25, CEP 22251-050, RJ, tel.
0/xx/21/ 2131-1111).
Stálin
(volume 2, 1939-1953)
312 págs., R$ 39,00
de D. Volkogonov. Trad.
Joubert de Oliveira Brízida.
Nova Fronteira.
Stalin - The Court
of the Red Tsar
816 págs., US$ 30
de Simon Sebag Montefiore. Ed. Knopf (EUA)
Onde encomendar
Livros em inglês podem ser
encomendados, em SP, na
livraria Cultura (tel. 0/xx/
11/ 3170-4033) e, no RJ, na
Leonardo da Vinci (tel. 0/
xx/ 21/ 2533-2237) ou no site www.amazon.com
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