São Paulo, domingo, 29 de março de 1998

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Folha - A dupla premiação de "Central do Brasil" fez com que você fosse solicitado a dar muitas entrevistas sobre o filme. Em algumas você referiu-se ao tema das cartas. Em "Socorro Nobre", a correspondência é o eixo do seu documentário e em "Central" volta a ser o elemento chave do enredo. Você poderia falar um pouco mais sobre isto?
Walter Salles -
Fiquei muito impressionado com a maneira pela qual uma troca de cartas, uma coisa tão prosaica, pode ser decisiva na vida das pessoas. Comecei, assim, a pensar no que aconteceria se alguém insensibilizado pelo mundo, como a personagem Dora, de Fernanda Montenegro, impedisse as cartas de circularem. Isto significaria simplesmente impedir que estas pessoas tivessem voz.
Folha - Que relação você percebeu entre as cartas e o trajeto social e emocional dos personagens?
Salles -
A importância das cartas na vida de Socorro Nobre confirmou-se no caso de outras pessoas em "Central do Brasil". No primeiro dia de filmagem, a mesinha da Dora foi posta na estação. No roteiro havia uma série de cartas já escritas, e os atores, na maioria estreantes, tinham sido preparados para ditá-las. O conteúdo da correspondência falava dos laços com regiões ou familiares distantes e tentavam mostrar possíveis razões da migração interna brasileira. Só que, ao ver a mesinha, os próprios usuários da Central começaram a se sentar, a ditar as cartas e a pedir que fossem enviadas. Pouco a pouco fomos substituindo os depoimentos do roteiro pelos depoimentos espontâneos, que tinham uma carga afetiva, uma transparência de sentimentos sem dúvida responsáveis pela voltagem emocional do filme.
Folha - De que tratavam as cartas? Que afetos eram esses?
Salles -
É impressionante como você diz tudo numa carta. As pessoas que sentaram ali e, mais tarde, fizeram o mesmo em Cruzeiro do Nordeste, no interior de Pernambuco, onde a cena das cartas se repete, tinham um enorme desejo de contarem histórias e, sobretudo, de serem ouvidas. Estas pessoas não têm voz pública e jamais aparecem na televisão, pois seus rostos e modos de vida não fazem parte da iconografia televisiva. Entretanto, quando falavam, diziam coisas de uma beleza inegável. Lembro, agora, do que dizia Pabst, o cineasta alemão: o realismo nada mais é do que uma ponte para o poético. Em Berlim disseram que o filme tinha uma carga documental interessante. É verdade.



continua




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