São Paulo, domingo, 29 de março de 1998

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Mas os depoimentos espontâneos acrescentaram ao filme uma força poética que ultrapassa o puramente documental. Muitas coisas só podem ser ditas por carta. A comunicação por carta tem um tempo próprio, uma extensão particular e uma reflexividade incompatíveis com meios de comunicação frios como o e-mail. Nas cartas enviadas, muitas vezes nada havia de pragmaticamente utilitário. Falava-se constantemente de sentimentos, da vontade de torná-los vivos para o outro. Em certa medida já havíamos intuído isto nas cartas de "Socorro Nobre", que eram dilacerantes de emoção e de verdade.
Folha - Você poderia falar um pouco mais sobre a questão dos ícones televisivos? Os personagens de "Socorro Nobre", "Terra Estrangeira" e "Central do Brasil" são todos fascinantes, mas nada têm a ver com o padrão de imagens humanas criado pelo consumo. Você busca mostrar expressões do humano que escapem aos clichês da propaganda de mercadorias?
Salles -
Na verdade, isto tem a ver com a riquíssima tradição do cinema brasileiro. Veja o Cinema Novo! Um dos grandes méritos de Nelson Pereira dos Santos foi o de ter mostrado o rosto do Brasil na tela.
Antes do Cinema Novo, o cinema brasileiro era um cinema de estúdio ou um cinema paródico. O que as chanchadas, por exemplo, faziam, às vezes de maneira muito divertida, era desconstruir o cinema americano, caricaturando-o.
Já o Cinema Novo e, surpreendentemente antes dele, Orson Welles, em "Nem Tudo É Verdade", sobretudo na parte filmada no Ceará, mostraram brasileiros quase nunca vistos no cinema nacional.
Quando se vê hoje "Vidas Secas", fica-se impactado não só pela modernidade do filme, mas pelo fato de que cada gesto dos personagens tem um significado que transcende o próprio gesto. Há uma qualidade emblemática e insubstituível em cada plano. Se você retira um deles, a arquitetura desmorona. Como numa ordem sinfônica, cada plano é grávido do próximo plano, assim como cada nota anuncia a nota seguinte.
Folha - Qual a relação entre isto que você diz e os personagens dos filmes cinemanovistas ou dos seus filmes?



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