São Paulo, domingo, 29 de março de 1998

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Salles - É que os personagens e suas atuações só ganham plena significação quando estão articulados a situações emocionais e sociais que eles próprios sublinham. Isto é visível em "Vidas Secas" ou em "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro". O que havia neste cinema é aquilo que o Hélio Pellegrino, com o brilho que era só seu, me disse certa vez, saindo de um filme do Glauber: "Esse filme pega na jugular da brasilidade". Foi isso que o Cinema Novo realmente fez, criar a possibilidade de se pensar num cinema que fosse um espelho da brasilidade.
Folha - Então, o objetivo de suas histórias e personagens é o de devolver aos brasileiros cenários esquecidos do Brasil?
Salles -
Bem, é nesta tradição que pretendo me inserir, dentro dos meus limites. Vendo "Vidas Secas" você entende melhor o que aconteceu naquela época do que vendo toda a produção televisiva que se iniciava no Brasil. O mesmo acontece com "São Paulo S/A", de Luiz Sérgio Person. Assistindo a este filme você vê como se deu o início da corrupção urbana brasileira e o processo de mimetização do modelo industrial dos países grandes. Pois bem, tento achar uma forma de expressão no jogo dos atores que melhor traduza os dilemas e saídas de minha época.
Folha - Dentro do tema da brasilidade, qual a diferença entre "Terra Estrangeira" e "Central do Brasil"?
Salles -
Em "Terra Estrangeira", o desespero do personagem de Laura Cardoso, com grande inteligência interpretativa, transforma-se na desesperança do filho que migra para Portugal. O exílio do garoto exprime o que Contardo Calligaris, em "Hello Brasil", descreveu como sendo o impasse de nossa identidade, a constituição da auto-estima.
No período Collor sofremos, talvez, a mais séria crise de auto-estima nacional. O filme tenta retratar aquele estado de coisas. Em "Central" o problema é outro. Dora carrega com ela a brutal indiferença de seu tempo. Não enviando as cartas, como prometera aos clientes, ela age com o cinismo dos que sabem que não vão ser punidos. Seu gesto é o espelho do que vem acontecendo aqui desde os anos 70 e 80. Nesta época, a indiferença secular dos poderosos para com quem não tinha poder parece ter crescido e ampliado seu círculo de influência. Isto veio junto com a idéia de que este será o país do futuro neoliberal, futuro que nem chegamos verdadeiramente a discutir, mas que já assumimos apressadamente.
Dora representa tudo isto. Ela tem uma relação totalmente aética com as pessoas que a cercam. Na verdade este é um filme sobre a importância de você perceber o outro. Procurei passar essa idéia, mostrando como alguém que nem sequer enviava as cartas que prometia enviar finalmente torna-se capaz de descobrir ela mesma a importância do que havia desprezado. Foi esta minha intenção. Não sei se fui bem-sucedido (risos).
Folha - Você toca em assuntos éticos e políticos, mas seu cinema não é nem um cinema de militância, nem tampouco um cinema de tese. Me dá a impressão de ser uma espécie de "cinema-compromisso". Enquanto na cultura em geral nota-se uma tendência para diluir os ideais morais no relativismo, na aparência, no simulacro, você fala de solidariedade, fraternidade, descoberta do outro e assim por diante. Isto é importante em sua vida de cineasta?
Salles -
Quando o projeto de "Central do Brasil" tomou corpo, sabíamos que o filme ia à contracorrente da tendência majoritária do cinema e poderia ter fraca receptividade por parte do público.



continua




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