São Paulo, domingo, 29 de março de 1998

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Folha - O filme, no entanto, tem sido bem recebido.
Salles -
Na verdade, o filme parece ter sido bem aceito pelos que o assistiram até agora. Raciocinando a posteriori -o que é sempre mais confortável-, poderia pensar que percebi corretamente as aspirações ou preocupações do público. Isso não corresponderia à verdade. De fato, num filme, o fundamental é o desejo premente de contar uma história e a integridade de propósitos com que se pensa contá-la. Se isto mais tarde encontra um canal de comunicação com o público, tanto melhor. Quando o filme foi pensado há alguns anos, como resultado da experiência com "Socorro Nobre", havia apenas a intuição de que a história poderia ter um significado importante. Mas era impossível prever se o filme ia ou não encontrar eco junto ao público.
Folha - Mas, independente da reação do público, o personagem de Dora é um exemplo da moralidade que você critica.
Salles -
Claro! Como disse, Dora representa a cultura da indiferença que vem de mãos dadas com a impunidade. Sua perda de visão moral, no entanto, tem um preço que é a solidão, a incapacidade de se relacionar com o outro. O cinismo de suas condutas faz com que viva uma vida mesquinha, apequenada. A descoberta do menino e a culpabilidade que pouco a pouco começa a experimentar quebram sua couraça emocional e a levam a olhar o mundo de maneira diferente. "Central", como mencionei, é um filme sobre o olhar, o que, aliás, fica evidente em seu final. É um filme sobre a necessidade de vermos o outro e descobrirmos o afeto capaz de mudar nossa relação com a vida.
Folha - É isto que você dizia não estar em sincronia com a tendência majoritária do cinema?
Salles -
É isto. Esses valores pareciam totalmente ausentes dos personagens do cinema independente, sobretudo americano, dos anos 90. Veja "Pulp Fiction", do Tarantino. Há um momento no filme em que a arma do personagem feito pelo Travolta dispara acidentalmente, matando um garoto inocente. A reação dos outros personagens em cena é, primeiro, de rirem com o que acabara de acontecer e, em seguida, de se preocuparem com a questão cosmética da limpeza do sangue que se espalhara pelo automóvel.
"Central" ia na direção contrária dessa série de "filhotes tarantinescos" dos anos 90, e era realmente possível que a receptividade ao filme fosse nula. Entretanto, ao chegar ao Sundance Festival e depois em Berlim, notamos que de vários lugares do mundo chegavam filmes com a mesma preocupação, ou seja, a questão da fraternidade, da descoberta do afeto, da redenção trazida pela presença significativa do outro. Isto talvez aponte para o ressurgimento de um cinema neo-humanista, como reação ao cinema cínico de Tarantino, de Roberto Rodriguez e de todos os que, nos anos 90, fizeram uma utilização acrítica da violência.
Folha - Sem querer legendar academicamente seu trabalho, "Central do Brasil" parece fazer um contraponto às idéias de Ulrich Beck e Jacques Derrida sobre novas formas de sociabilidade baseadas na amizade, na hospitalidade, na cortesia; ou de Maria Rita Kehl, sobre o papel da "fratria" na reinvenção de formas de vida menos violentas; ou de Renato Janine Ribeiro sobre a exclusão dos afetos na prática da democracia; ou, enfim, de Robert Kurz, quando mostra que o nível extremo da abstração econômica dos seres humanos é a perda da consciência do valor das emoções. Você parece dizer isto quando mostra Dora como um clichê humano exclusivamente voltado para o cálculo utilitário de "fechar a conta no fim do mês", para usar sua expressão.
Salles -
Na verdade, penso que o conceito de "nadificação" do outro é o que melhor explica esse estado de coisa. Valores como fraternidade, compaixão, partilha não são vendáveis nem controláveis pelas noções de eficiência ou de resultados imediatos.
Contudo, não têm cotação na Bolsa e são vistos muitas vezes como desnecessários. No entanto, sem a possibilidade de troca e reciprocidade, sem a percepção do valor das diferenças e da idéia de justiça, não construiremos uma sociedade plenamente democrática. Penso que o que acontece no Brasil de hoje, e talvez também fora do Brasil, é o surgimento de um desejo de mudança, um conflito entre as aspirações da sociedade civil e a incapacidade do Estado em responder a estas aspirações.
Folha - Gostaria de fazer outra observação e ouvir sua opinião. Fernanda Montenegro, numa dada entrevista, disse que você contou uma história sem os ingredientes da sexualidade amorosa abastardada, seja na vertente sensual, seja na vertente lacrimejante. Isto me chamou a atenção. Você fala de emoções sem comercialização garantida. É como se houvesse uma vontade de alargar nossa gramática emotiva, presa a dois ou três verbetes já gastos.


continua




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