|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LIVROS
Periferia esfacelada
GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha
Saudemos o escritor e diplomata Samuel Pinheiro Guimarães
que, pertencendo aos quadros
funcionários do Itamaraty, é um
autor que não se resigna de modo
colonizado e conformista ao status quo da política internacional,
que teóricos apologetas insistem
em apresentar como uma realidade inexorável, imprevisível e a-histórica, com o objetivo de justificar mal e perversamente a dominação fetichista e monetária do
hemisfério Norte sobre o Sul.
"Quinhentos Anos de Periferia", seu belíssimo opúsculo, de
resto muito bem escrito, enxuto e
didático, além de corajoso e repleto de informações essenciais sobre a contemporaneidade, focaliza o vicário sincretismo entre as
nações centrais e as periféricas.
Eufemisticamente o autor se vale
da substituição do imperialismo
por "estruturas hegemônicas",
denunciando o bestialógico que
tomou conta do espírito coletivo
na periferia envelhecida.
Eis os principais tópicos da vulgata neoliberal: a dominação ianque anti-hegeliana do Estado para
os otários na periferia fazerem
uso mediante a prática das privatizações exógenas; a crítica ao Estado, mas não ao governo; a depreciação da cultura que não seja
pop; a desqualificação da atividade política como corrupta, corruptora e inútil; a desmoralização
das Forças Armadas, convertendo-as em polícia interna; a estupidez de achar que o desemprego é
estrutural em decorrência da evolução tecnológica; a mania de culpabilizar exclusivamente os brasileiros pelo subdesenvolvimento.
Segundo a sociologia mazomba:
"O Brasil não é mais um país subdesenvolvido, é um país injusto",
frase imortal que coexiste com a
LBA assistencialista cuidando da
fome; a globalização já era com o
regime da globalização; os problemas são de natureza internacional, mas as soluções não são nacionais; dar trela à bazófia acerca
do fim da história.
São 500 anos
de periferia o
objeto deste estudo, mas a ênfase incide
mais na permanência anglo-saxônica,
sobretudo depois do fim da
Segunda Guerra em 1945 e da
Guerra Fria na
década de 80. Trata-se de uma reflexão holística acerca dos "grandes Estados periféricos". O dado
territorial se impõe em primeiro
plano, tendo em mira a hipótese
de que o poder mundial cêntrico
aposta simultaneamente na fragmentação do conhecimento e do
território, de que resulta a esquizofrenização mental e física da
periferia. Assim, quanto maior a
desagregação do tecido social,
maior o risco do esfacelamento da
nação-feitoria, dentro da qual rolam insanas rivalidades regionais
e disparidades internas.
A essencialidade sociocultural
da periferia não vem à tona sem
levar em consideração a estratégia
norte-americana, militar, política,
econômica e ideológica. Isso por
um simples motivo: os EUA têm
uma estratégia para a América
Latina e para o Brasil de hoje, que
é o "combate à ação do Estado como promotor do desenvolvimento", no dizer de Samuel Guimarães.
O tema da
ruptura intencional aparece
como desdobramento de
um plano econômico assentado na "poupança externa". Tudo para
fora. Essa neurose provinciana de credibilidade junto ao
sistema internacional ficou patente com a "crise cambial" brasileira de janeiro de 1999, o que fez o
autor escrever um posfácio genial, em que analisa os ataques aéreos ilegais da Otan à Iugoslávia e
a necessidade norte-americana de
criar inimigos externos permanentes.
Ainda que o leitor não seja um
paranóico varrido, é inevitável a
pergunta constrangedora: o que
farão os EUA no próximo milênio
com o Brasil? E nós, brasileiros?
Dir-se-ia, pensando no século
21, que Kosovo não é tão longe
daqui. Evidentemente o diplomata, entendido em política internacional, não se arvora em profeta
alado; todavia ele não deixa de lado a possibilidade de os "Estados
da periferia" serem atingidos pela
política da força e do arbítrio. Afinal, a disponibilidade dos recursos naturais estratégicos encontra-se na periferia, e não no centro
do capitalismo. Isso não quer dizer brasilianização ufanista e delirante do mundo, porque essa
condição ecológica e geográfica é
também um tremendo risco, como se a Amazônia pudesse vir a
ser o Oriente Médio do amanhã,
com a inevitável extinção dos
combustíveis fósseis.
A crise da era do petróleo coloca
as terras tropicais do Brasil no
epicentro energético da cobiça internacional. Desde meados dos
anos 70 configura-se um novo tipo de colonialismo: a apropriação
do sol e da água do nosso território, ainda que prescindindo a curto prazo das gentes brasileiras.
Enfim, estamos em plena política
de genocídio para a periferia, ou
senão em processo de reescravização do povo brasileiro.
A OBRA
Quinhentos Anos de Periferia - Uma Contribuição
ao Estudo da Política Internacional - Samuel Pinheiro
Guimarães. Ed. Contraponto / Ed. da UFRGS. (av. João Pessoa, 415,
CEP 90040-000, RS, tel. 0/xx/51/ 224-8821). 167 págs. R$ 20,00.
Gilberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda" (Ed. Espaço e Tempo), entre outros.
Texto Anterior: Autores - Jacques Rancière: Arte em campo minado Próximo Texto: Diálogos impertinentes - Mario Sergio Cortella: A resistência do planeta Índice
|