São Paulo, Domingo, 29 de Agosto de 1999
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LIVROS

Periferia esfacelada

GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha

Saudemos o escritor e diplomata Samuel Pinheiro Guimarães que, pertencendo aos quadros funcionários do Itamaraty, é um autor que não se resigna de modo colonizado e conformista ao status quo da política internacional, que teóricos apologetas insistem em apresentar como uma realidade inexorável, imprevisível e a-histórica, com o objetivo de justificar mal e perversamente a dominação fetichista e monetária do hemisfério Norte sobre o Sul.
"Quinhentos Anos de Periferia", seu belíssimo opúsculo, de resto muito bem escrito, enxuto e didático, além de corajoso e repleto de informações essenciais sobre a contemporaneidade, focaliza o vicário sincretismo entre as nações centrais e as periféricas. Eufemisticamente o autor se vale da substituição do imperialismo por "estruturas hegemônicas", denunciando o bestialógico que tomou conta do espírito coletivo na periferia envelhecida.
Eis os principais tópicos da vulgata neoliberal: a dominação ianque anti-hegeliana do Estado para os otários na periferia fazerem uso mediante a prática das privatizações exógenas; a crítica ao Estado, mas não ao governo; a depreciação da cultura que não seja pop; a desqualificação da atividade política como corrupta, corruptora e inútil; a desmoralização das Forças Armadas, convertendo-as em polícia interna; a estupidez de achar que o desemprego é estrutural em decorrência da evolução tecnológica; a mania de culpabilizar exclusivamente os brasileiros pelo subdesenvolvimento. Segundo a sociologia mazomba: "O Brasil não é mais um país subdesenvolvido, é um país injusto", frase imortal que coexiste com a LBA assistencialista cuidando da fome; a globalização já era com o regime da globalização; os problemas são de natureza internacional, mas as soluções não são nacionais; dar trela à bazófia acerca do fim da história.
São 500 anos de periferia o objeto deste estudo, mas a ênfase incide mais na permanência anglo-saxônica, sobretudo depois do fim da Segunda Guerra em 1945 e da Guerra Fria na década de 80. Trata-se de uma reflexão holística acerca dos "grandes Estados periféricos". O dado territorial se impõe em primeiro plano, tendo em mira a hipótese de que o poder mundial cêntrico aposta simultaneamente na fragmentação do conhecimento e do território, de que resulta a esquizofrenização mental e física da periferia. Assim, quanto maior a desagregação do tecido social, maior o risco do esfacelamento da nação-feitoria, dentro da qual rolam insanas rivalidades regionais e disparidades internas.
A essencialidade sociocultural da periferia não vem à tona sem levar em consideração a estratégia norte-americana, militar, política, econômica e ideológica. Isso por um simples motivo: os EUA têm uma estratégia para a América Latina e para o Brasil de hoje, que é o "combate à ação do Estado como promotor do desenvolvimento", no dizer de Samuel Guimarães.
O tema da ruptura intencional aparece como desdobramento de um plano econômico assentado na "poupança externa". Tudo para fora. Essa neurose provinciana de credibilidade junto ao sistema internacional ficou patente com a "crise cambial" brasileira de janeiro de 1999, o que fez o autor escrever um posfácio genial, em que analisa os ataques aéreos ilegais da Otan à Iugoslávia e a necessidade norte-americana de criar inimigos externos permanentes.
Ainda que o leitor não seja um paranóico varrido, é inevitável a pergunta constrangedora: o que farão os EUA no próximo milênio com o Brasil? E nós, brasileiros?
Dir-se-ia, pensando no século 21, que Kosovo não é tão longe daqui. Evidentemente o diplomata, entendido em política internacional, não se arvora em profeta alado; todavia ele não deixa de lado a possibilidade de os "Estados da periferia" serem atingidos pela política da força e do arbítrio. Afinal, a disponibilidade dos recursos naturais estratégicos encontra-se na periferia, e não no centro do capitalismo. Isso não quer dizer brasilianização ufanista e delirante do mundo, porque essa condição ecológica e geográfica é também um tremendo risco, como se a Amazônia pudesse vir a ser o Oriente Médio do amanhã, com a inevitável extinção dos combustíveis fósseis.
A crise da era do petróleo coloca as terras tropicais do Brasil no epicentro energético da cobiça internacional. Desde meados dos anos 70 configura-se um novo tipo de colonialismo: a apropriação do sol e da água do nosso território, ainda que prescindindo a curto prazo das gentes brasileiras. Enfim, estamos em plena política de genocídio para a periferia, ou senão em processo de reescravização do povo brasileiro.



A OBRA
Quinhentos Anos de Periferia - Uma Contribuição ao Estudo da Política Internacional - Samuel Pinheiro Guimarães. Ed. Contraponto / Ed. da UFRGS. (av. João Pessoa, 415, CEP 90040-000, RS, tel. 0/xx/51/ 224-8821). 167 págs. R$ 20,00.



Gilberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda" (Ed. Espaço e Tempo), entre outros.



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