São Paulo, domingo, 29 de novembro de 1998

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FIDES ET RATIO
A encíclica "Fé e Razão", promulgada pelo papa João Paulo 2º em setembro, critica o relativismo, o niilismo e o ceticismo contemporâneos e propõe um diálogo entre filosofia e catolicismo
Visões da razão

CARLOS JOSAPHAT


especial para a Folha

Em sua última encíclica, datada de 14 de setembro de 1998, João Paulo 2º quer apontar um porvir de esperança para a humanidade, propondo uma visão harmoniosa da fé e da razão, definidas como as "duas asas pelas quais o espírito humano se eleva à contemplação da verdade".
Apelando para o amor à verdade, semelhante mensagem não se coaduna com encômios e aplausos, mas reclama antes uma acolhida serena, um estudo cuidadoso e uma análise crítica. Essa carta circular ("encíclica") vem endereçada especialmente "aos bispos da Igreja Católica", o que insinua não se tratar de problemas ocasionais, mas de questões doutrinais básicas, que os bispos, com suas comunidades, ajudados por "teólogos e filósofos", têm "o encargo de testemunhar" (nº 6).

Segurança e ambiguidade

A encíclica oferece a exposição panorâmica, se não exaustiva, de um tema central, continuamente abordado no decorrer do cristianismo: as "relações da fé e da razão". Além desse aspecto enciclopédico, ela reveste um proceder argumentativo que se associa ao tom autoritário de quem tem consciência de sua missão divina de ensinar a verdade.
Esse paradigma pontifical não é de fácil compreensão. Pode ser ilustrado pelo confronto com o estilo dos Tribunais Supremos nacionais ou internacionais, quando são chamados a decidir sobre princípios ou direitos fundamentais, como o direito à vida do embrião humano.
A resposta, aliás contraditória, a essa questão de base vem quase sempre precedida por um tratado de teoria e história, senão de filosofia do direito. É o que se viu com grande relevo em 1973, quando a Corte Suprema dos Estados Unidos liberalizou a legislação sobre o aborto naquele país. Sem dúvida, o papa mostra mais confiança na sua autoridade doutrinal, sua argumentação se tornando, às vezes, um tanto formal, menos estrita e rigorosa.
Tocamos aqui um primeiro ponto delicado para quem aborda a leitura desse tipo de encíclicas "doutrinais", nas quais uma autoridade religiosa enfrenta problemas humanos de base, que interessam portanto a todas as pessoas e a toda a sociedade. A encíclica "Fé e Razão" pretende completar uma outra, "Esplendor da Verdade" (de 6 de agosto de 1993). Ambas retomam e aprofundam o par de conexões: fé e razão, natureza e graça, lei natural e lei divina, o qual já estava na base da encíclica de Paulo 6º, "Humanae Vitae" (de 25 de julho 1968), sobre o "modo autêntico de regular a natalidade".
Ora, essa última encíclica suscitou a maior oposição à moral católica, se é que a não colocou em um verdadeiro impasse. Pois empenhou toda a autoridade do "Vigário de Cristo" para declarar que a lei natural condenava de maneira absoluta todo método de contracepção artificial ("pílula", "camisinha"), concedendo ao mesmo tempo que sua argumentação podia não ser de todo convincente nem mesmo para os padres e teólogos (cf. encíclica citada nºs. 6 e 28). Assim, em matéria de lei natural, da esfera da razão humana, interessando todo homem e toda mulher, a doutrina proposta pelo papa não seria plena e racionalmente verificável, mas simplesmente "credível", imposta por autoridade e aceita pela fé.
Semelhante situação de ambiguidade metodológica e mesmo epistemológica torna problemática a comunicação do magistério católico nesses domínios, não apenas com o grande público, mas ainda com as diferentes correntes da cultura contemporânea. Na raiz do grave equívoco, permanece uma questão essencialmente teológica, tocando precisamente a relação da razão e da fé. Vem sendo estudada sob seus diferentes aspectos, aguardando-se o momento de um diálogo leal e aberto com as instâncias competentes.

Na Bíblia e na história

Em sua última encíclica, o papa se sente à vontade dentro desse paradigma pontifício que lhe dá plena segurança para ensinar com autoridade, sem deixar de recorrer a uma argumentação, em grande parte apenas ilustrativa, de caracteres bíblico, histórico e filosófico. A sua tese da verdadeira e profunda harmonia entre a fé e a razão busca alicerçar-se na consideração do próprio ser humano, à luz da mensagem da Bíblia e da história da filosofia, da teologia, sem esquecer um certo apelo comparativo às grandes religiões.
A noção abrangente e generalizada de sabedoria permite encontrar a desejada convivência da fé e da razão entre os povos, desde os mais antigos, cuja filosofia religiosa os aproxima assim da meditação dos sábios da Bíblia. Uma tal visão panorâmica e conciliadora se abre à reflexão sobre a questão tão pertinente e tão impertinente do "sentido da vida, da morte, do sofrimento, do mal". Mas a perspectiva apologética da encíclica leva à economia das questões e objeções espinhosas que não deixam de surgir da aproximação e da leitura dessa imensa antologia de textos e de tradições, por vezes distantes no tempo e no espaço, expressas na diversidade das culturas e mentalidades.
Não seria oportuno notar que a autonomia da razão, afirmando-se desde os primórdios da filosofia e fortalecendo-se com seus progressos, levanta o grave problema da concorrência da razão e da fé ou da busca de uma "religião dentro dos limites da razão" (Kant)? Pode-se ignorar ou desconhecer que a filosofia autônoma, não-religiosa, coloca com seriedade e profundidade a questão do sentido da vida?
Para enfrentar o moderno desafio provindo da ausência desse sentido ou do desconhecimento de verdades fundamentais, o diálogo com o pensamento leigo, secular, com aqueles e aquelas que têm o amor à verdade, sem ter chegado a uma fé religiosa explícita, não seria tão importante, quanto a aproximação ou confrontação com as sabedorias religiosas do passado?

Voltar à Idade Média?
No centro, ou melhor, no ápice de sua construção, o papa coloca a Idade Média, que teria realizado a integração perfeita da fé e da razão, inaugurada pelos Padres da Igreja, entre os quais se destaca Santo Agostinho. A elaboração escolástica dessa integração é iniciada por Santo Anselmo e levada a cabo por Santo Tomás de Aquino. "Todavia, a partir da Idade Média, afirma a encíclica, essa distinção legítima entre os dois conhecimentos transformou-se progressivamente em nefasta separação" (n.º 45).
O papa exalta o exemplo de Santo Tomás, citando o seu axioma extremamente compreensivo: "Toda verdade proferida por quem for vem do Espírito Santo" (nº 44). "A sua filosofia é verdadeiramente uma filosofia do ser e não do simples aparecer."
No negativo e no positivo, está aí esboçado todo o propósito da encíclica: "a metafísica do ser", que integra e supera o conhecimento dos "fenômenos". Essa metafísica seria não apenas a grande, mas até a necessária aliada da fé, realizando com ela a harmonia de uma mútua ajuda intelectual.
Esse programa é simples e tradicional nas insistências pontifícias quando se trata da filosofia a serviço da teologia e integrada no ensino do clero católico; é o que se depreende dos nºs 85 e 92-99. A sabedoria está em seguir as pegadas dos Santos Padres, de Santo Tomás, discernir e anexar o que há de válido, embora parcial, no pensamento moderno.
Mas, para além desse quadro restrito de formação clerical, a encíclica tem a louvável intenção de apontar caminhos para a humanidade. Aqui, no entanto, o projeto dá lugar a um feixe imenso de interrogações: a abertura à realidade, a recusa do "relativismo", do "niilismo", do "ceticismo" passam necessariamente por uma "recuperação da filosofia do ser"? Certa insistência repetitiva sobre o termo "recuperar" (nºs 6, 48, 101, 105 ), propondo um ideal a realizar, poderia insinuar uma operação de volta ao passado.
Mais ainda. A "nefasta separação" da fé e da razão, estigmatizada na encíclica, se há de imputar unilateralmente ao pensamento moderno? Nesse desencontro, analisado com objetividade, não cabe uma séria responsabilidade ao ensino eclesiástico que se aferrou, durante séculos, a uma escolástica superada e colocou no índex dos livros proibidos os grandes filósofos do Ocidente, de Descartes a Henri Bergson?
Exortações gerais ao diálogo não ganhariam mais consistência, senão utilizando, de maneira crítica e judiciosa as atuais filosofias da "comunicação" (Juergen Habermas) e da "discussão" (Karl Apel), pelo menos apontando para o empenho do pensamento contemporâneo em enfrentar com rigor o pluralismo e outros problemas da modernidade ou da pós-modernidade?

Embate de dois paradigmas

Como as demais encíclicas doutrinais de João Paulo 2º, esta última não deixa de atender ao legado do Concílio Vaticano 2º, mostrando no entanto uma dupla orientação. A primeira procura manter certa tradição doutrinal, identificada com as posições polêmicas de Vaticano 1º e do magistério eclesiástico dos dois últimos séculos, dando ênfase especial às intervenções da Congregação para a Doutrina da Fé. O outro cuidado é avançar, mas sem pressa e sem riscos, nas trilhas da renovação indicadas por João 23.
Sem dúvida, as prioridades e insistências da encíclica apontam para o Concílio Vaticano 1º. Ela relê a tradição à luz desse concílio que acentuou o aspecto conciliador de Tomás de Aquino diante dos extremos do racionalismo e do tradicionalismo. Sobretudo ela releva e reforça os pontos ultimamente destacados pelo magistério eclesiástico sobre a estrita fidelidade à ortodoxia, realçando até o valor absoluto, intangível das linguagens dogmática e teológica. Atenda-se por exemplo aos nºs 84, 94-96 e às fontes indicadas. Aliás, pela sua frequência e pelo relevo que lhes é dado, as fontes citadas na encíclica revelam a predominância significativa da tendência conservadora.
Não seria o bom momento de retomar pela base a nova "antropologia" de Vaticano 2º (evocada apenas pelo próprio papa, n.º 60), assumindo todo ser humano, qual projeto virtual de verdade, de liberdade, de justiça e solidariedade, anseio e busca de Deus na história, sem mais se atardar nas velhas controvérsias anti-racionalistas? E, finalmente, a questão crucial: o paradigma de um magistério concentracionário, tendo como protagonista o papa e a Congregação para a Doutrina da Fé, estaria prolongando o paradigma evangélico de Vaticano 2º, que se abre à colegialidade dos pastores e à comunhão participativa dos fiéis, em documentos fundadores como as Constituições sobre a Igreja e sobre a Revelação?
Todavia, mais do que as precedentes, a encíclica denota serenidade, acena para os valores positivos, sem esquecer certa abertura ao diálogo, o que revela maior segurança na unidade interna da Igreja Católica em torno do episcopado. Se um duplo paradigma teológico parece perdurar nas posições do magistério eclesiástico, um de feitio mais tradicional e outro mais inovador, João Paulo 2º, ao entardecer do pontificado, sem relegar o primeiro, se inclina discretamente para o segundo. O melhor de sua mensagem resplandece nesta sentença lapidar: "Ao desassombro da fé deve corresponder a audácia da razão" (n.º 48). Ela merece ser tomada ao pé da letra.


Carlos Josaphat é frei e teólogo dominicano, professor emérito da Universidade de Friburgo (Suíça) e ensina na Escola Dominicana de Teologia, em São Paulo. É autor, entre outros, de "Tomás de Aquino e a Nova Era do Espírito".



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