São Paulo, Domingo, 30 de Janeiro de 2000 |
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+ brasil 500 d.C. Erro e alienação
Bento Prado Jr.
Não é, portanto, na finitude do entendimento (ou na natureza de nossas faculdades) que o erro encontra sua origem. Há uma etiologia do erro, é claro, mas puramente "psicológica", que não compromete de modo nenhum nosso saber, que não remete a nenhuma sombra intrínseca no cristalino coração da "luz natural". Eis que, mais uma vez, é fornecida a resposta que Teeteto não foi capaz de dar a Sócrates, desmanchando a alternativa socrática, mostrando que pode haver opiniões falsas e que não podemos nos enganar a respeito do que sabemos (6). Mas será que o pensamento clássico é realmente capaz de dar conta da realidade do erro? Parece que só é capaz de fazê-lo a um preço muito alto, ou seja, o de reduzi-lo à sua forma mais trivial. Kant parece, é verdade, retomar em seu próprio nome essa concepção cartesiana do erro: "Em certo sentido, bem se pode fazer do entendimento o autor dos erros, ou seja (...) por falta de atenção devida a essa influência da sensibilidade (...)" (7). Positividade do erro Mas, voltando à reflexão 3.707, de que partimos, Lebrun mostra que o problema de Kant é justamente o de remover a base sobre a qual repousa o "otimismo epistemológico" do pensamento clássico, que só dá direito de cidadania ao erro sob a condição de reduzi-lo a uma mera "inépcia", como quando confundimos Teodoro com Teeteto ou quando julgamos que 2+3 = 6. E essa base é o sólido chão de certeza que permanece intacto de Platão a Descartes e Espinosa: que nada posso conhecer sem conhecer "aliquid", "algo" e "algo que é". Ou, ainda, que a idéia de erro é pensada sobre o fundo da ancoragem ontológica do pensamento no ser ou na verdade em-si. No limite, Espinosa e o Sócrates do "Teeteto" são os mais consequentes: essa ontologia é incompatível com o "fato do erro". Para fazer justiça ao erro é preciso subverter essa ontologia e essa concepção do Saber. É a hipótese recusada como absurda por Platão ("Isso mesmo de que temos o saber, ignorá-lo, não por ignorância, mas pelo próprio saber que se tem dele") que aqui recebe direito de cidadania e dá lugar a uma teoria positiva do erro como ilusão necessária, ou como auto-engano. Lebrun descreve essa reviravolta: "Mas tudo mudaria se esse Saber-testemunha constituísse justamente a ignorância em pleno coração do saber (...) que Platão julgava inimaginável, se a Ciência de que os clássicos fariam a medida de nossas distrações fosse esse Não-Saber que se dá a aparência do mais elevado saber" (8). Com Kant apaga-se a clara fronteira que separava o Saber do Não-Saber e o erro deixa de ser um acidente externo à estrutura da Razão. Não é apenas o sono que produz fantasmas: a própria Razão, quando não retificada pela revolução crítica, deixa-se levar pelas Aparências que ela mesma secreta e podem, estas sim, fornecer a verdadeira e positiva etiologia do erro. Dura crítica Mas que não nos enganemos: ao percorrer aqui, como alhures, a formação da crítica da ilusão metafísica, Lebrun não o faz inspirado por qualquer forma de "positivismo"; a "epistemologia" não é necessariamente o "télos" último da Crítica. Pelo contrário, consagrou, ao livro de Piaget sobre "Sabedoria e Ilusões da Filosofia", uma dura crítica que visava justamente a ingenuidade de seu positivismo. A mesma inspiração será encontrada no livro consagrado a Hegel (9), em que a Dialética será compreendida menos à luz do Saber Absoluto (apressadamente interpretado como retorno ao dogmatismo, como doutrina ou "Theoria" infinita, como a "visão em Deus" dos clássicos) do que como a dissolução sistemática dos pressupostos e das ilusões da representação e do entendimento finito. Como se a antifilosofia de Nietzsche (explorada em "O Avesso da Dialética", Companhia das Letras) já estivesse embutida na própria dialética hegeliana. Libertação do olhar Liberta do império da Representação ou da verdade-em-si dos clássicos, a dialética hegeliana é uma nova prática nada dogmática do discurso, "... sem decidir inscrevê-la a priori nas oscilações da práxis humana ou na linha de alguma história do Ser (10), e deixando essas peripécias da linguagem como que suspensas entre céu e terra. Mas essa libertação do olhar, que pode muito bem não conduzir a nada e de que alguns textos de Wittgenstein dão uma idéia muito justa, é insuportável, é claro, para os espíritos religiosos" (11). Genealogia A obra de Lebrun, como historiador da filosofia, é toda ela animada por uma mesma interrogação, propriamente filosófica, sobre a ilusão como destino do pensamento. Como sugere Pascal, na frase em epígrafe, a antifilosofia não é externa à própria filosofia: mesmo porque só se pode verdadeiramente rir da filosofia, quando é através dela mesma que se ri. Pois a interrogação filosófica não é necessariamente a busca do Sentido Último das coisas, que poderia garantir nossa "segurança moral". É outra a interrogação que atravessa a obra de autores tão diferentes, como Pascal, Hume, Kant, Hegel e Nietzsche -todos presentes no álbum de família de Lebrun-, que visa não o repouso final na posse de um Saber ou da descoberta de um Fundamento, mas, como diz Foucault, a tomada de consciência da "desorientação daquele que conhece" (12). É na empresa genealógica de Foucault ou na iniciativa "anarcôntica" (13) de Hume que Lebrun encontra os modelos mais próximos de sua atividade histórico-filosófica (14). Se apresentamos assim grosseiramente o belo ensaio de Gérard Lebrun -e seu horizonte mais largo-, foi na esperança de levar o leitor a abrir o pequeno livro (15) "Sobre Kant", onde ele está contido. Aí poder-se-á encontrar, entre outras coisas, uma excelente introdução à totalidade da obra desse autor que tanto marcou a filosofia no Brasil. Se ao menos um leitor aceitar esse convite, a publicação deste artigo terá sido plenamente justificada. Bento Prado Jr. é filósofo, professor da Universidade Federal de São Carlos e professor emérito da USP. Publicou, entre outros, "Presença e Campo Transcendental" (Edusp) e "Filosofia da Psicanálise" (Brasiliense). Escreve mensalmente na seção "Brasil 500 d.C.". Texto Anterior: Nadine Gordimer: A face humana da globalização Próximo Texto: Notas Índice |
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