São Paulo, domingo, 30 de julho de 2000


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+ brasil 501 d.C.

As duas vias da mundialização

Sergio Paulo Rouanet

Se nós, alemães, não olharmos além do círculo estreito do nosso próprio horizonte" disse Goethe, numa de suas conversas com Eckermann, "cairemos facilmente num obscurantismo pedante. Por isso gosto de olhar para o que se faz nos países estrangeiros e aconselho a todos que façam o mesmo. A literatura nacional não quer dizer grande coisa hoje em dia. Chegou a hora da literatura mundial, e cada um de nós deve contribuir para acelerar o advento dessa época." Poucos anos depois, Marx afirmava no "Manifesto Comunista" que "os produtos intelectuais das diferentes nações se transformam em patrimônio comum. A unilateralidade e a estreiteza nacionais se tornam crescentemente impossíveis, e uma literatura mundial se constitui a partir das várias literaturas nacionais e locais". O pensamento é o mesmo. E até a forma é semelhante. Tanto Goethe quanto Marx usam a expressão "Weltliteratur", literatura mundial, e nos dois casos a literatura funciona como alusão metonímica à cultura como um todo. O que os dois autores estão dizendo é que hoje em dia as culturas puramente locais estão condenadas ao "obscurantismo", à "unilateralidade" e à "estreiteza", e que elas deveriam ultrapassar seu paroquialismo, convergindo para a formação de uma cultura mundial. Após um século e meio, isso já aconteceu em grande parte. A cultura mundial, detectada "in statu nascendi" pelos dois pensadores, está-se ampliando de modo avassalador. Cada vez mais os valores, símbolos e produtos culturais extravasam as fronteiras nacionais, e cada vez menos eles podem ser reduzidos à mera soma das culturas locais, ou à extroversão imperialista de uma cultura nacional hegemônica.

Mickey e grande arte
Mas a cultura mundial é ambígua. De um lado, ela é composta de bens culturais de massa, desprendidos do seu país de origem, oferecendo uma gama estonteante de mercadorias expatriadas, cosmopolitas, que vão desde Mickey Mouse até Madonna. De outro lado, é a grande música, a grande pintura, a grande literatura, também desterritorializadas, também transformadas em coisas de todos, em partes do acervo comum da humanidade. Quais as razões dessa dualidade? Voltemos a Goethe e a Marx. Eles não estavam falando de um simples fenômeno de internacionalização cultural, como os que a humanidade conhecera no período alexandrino ou romano, mas de uma variedade "moderna" de internacionalização. A cultura mundial, para eles, era antes de tudo um fato da modernidade. Não seria essa uma pista para compreendermos a dinâmica e a organização dualista da cultura mundial? Habitualmente, a modernidade é entendida na significação que lhe deu Max Weber, como o desfecho de processos cumulativos de racionalização ocorridos no Ocidente a partir da reforma protestante. Segundo essa acepção, numa sociedade moderna as instituições funcionam melhor que numa sociedade pré-moderna. Por isso, podemos falar em uma concepção funcional de modernidade.

Projeto da Ilustração
Mas existe um segundo vetor da modernidade, que não tem a ver com a eficácia e sim com a autonomia. Sua matriz é o projeto civilizatório da Ilustração, que não busca a funcionalidade das estruturas e sim a emancipação dos indivíduos. É a concepção emancipatória de modernidade.
A modernidade é a coexistência contraditória desses dois vetores. Ela é uma prisão, uma "stahlhartes Gehäuse" (jaula de ferro), na expressão de Weber, mas também uma promessa de autonomia, é o reino da racionalidade instrumental, que submete o homem a imperativos sistêmicos, mas também o prenúncio de uma humanidade mais livre. Pois bem, a modernidade tende à internacionalização, nesses dois vetores. Ela se mundializa, para usarmos, modificando-lhe o sentido, uma palavra habitualmente utilizada pelos teóricos franceses.
Em seu vetor funcional, a modernidade percebe as barreiras locais e nacionais como obstáculos para o pleno desdobramento da lógica da eficácia e do rendimento. Consequentemente, a modernidade vai derrubando essas barreiras. Ela passa primeiro dos particularismos locais, que impunham limites à ação do capital, para o espaço mais amplo criado pelo Estado nacional, que punha à sua disposição um mercado integrado. Em seguida, os próprios Estados nacionais se tornam demasiado estreitos, e ela ultrapassa esses limites, mundializando-se. É a globalização.
Mas a modernidade se mundializa, também, em seu vetor emancipatório, porque sob esse aspecto ela deriva de um projeto planetário, o da Ilustração, que visa a autonomia de todos os seres humanos, independentemente de sexo, etnia, cultura ou nação. Podemos chamar de universalização a esse movimento.
Os agentes da globalização são os executivos das corporações multinacionais, as elites tecnoburocráticas, os especialistas da comunicação por satélites, e em geral os "intelectuais orgânicos" do novo Príncipe, para usar uma linguagem gramsciana a "burguesia global". Os agentes da universalização são as organizações não-governamentais, os partidos políticos, os sindicatos, os parlamentos, os governos democráticos e os intelectuais críticos comprometidos com ideais universalistas.
A globalização tende a nivelar todas as particularidades, porque sua força motriz é a otimização do ganho, através de uma racionalidade de mercado que supõe a criação de espaços homogêneos.
A universalização é pluralista, porque seus fins só podem ser atingidos por uma racionalidade comunicativa que supõe o desejo e o poder dos sujeitos de defenderem a especificidade das suas formas de vida. A globalização é a união dos conglomerados.
A universalização é a união dos povos. Somos objetos da globalização. Somos sujeitos da universalização. A aceleração dos processos de mundialização, em seus dois vetores, está nos conduzindo, em nossos dias, a uma sociedade mundial. Por enquanto, ela é relativamente amorfa, porque não dispõe ainda de estruturas políticas. Mas já dispõe de uma cultura. É a cultura mundial. Essa cultura é a unidade tensa de duas culturas: a global e a universal. É por isso que ela é ambígua. A cultura global é impulsionada por processos de globalização, que levam à crescente transnacionalização todas as indústrias culturais, como a do cinema e a do disco. A cultura universal é impulsionada por processos de universalização, que levam à aproximação internacional de escritores, músicos, artistas plásticos, filósofos e cientistas. Apesar disso, não há guerra de morte entre globalização cultural e universalização cultural. Elas são distintas, mas dialeticamente complementares. A mesma revolução técnica que viabilizou a globalização da cultura pode ser usada pelos que pretendem universalizá-la. As duas culturas são partes da modernidade, indissociáveis uma das outra. Sem a cultura global, a cultura universal não teria os meios técnicos para implantar-se, e, sem a cultura universal, a cultura global careceria de conteúdo ético. Mas há uma relação hierárquica entre as duas. É da cultura universal que devem partir os impulsos destinados a retificar os desvios da cultura global. Não podemos, se quisermos enfrentar as patologias dessa cultura, refugiar-nos em particularismos a contracorrente, como os fundados na nação, na religião ou na etnia, porque eles não nos permitiriam lidar com fenômenos que atravessam todas as particularidades e se evadem a todas as jurisdições nacionais, e sim agir no próprio terreno em que se dá a cultura global: o da mundialização. O corretivo da mundialização pelo globalismo é a mundialização pelo universalismo.

Novos sincretismos
O universalismo cultural implica uma política de abertura, que, longe de gerar o nivelamento, poderá estimular novos sincretismos, formas inéditas de hibridação. Era a isso que Marx aludia quando falava nas sínteses produzidas pela interação entre as diversas culturas. E implica, num horizonte mais distante, uma democracia mundial, como expressão política da sociedade mundial. Essa democracia seria decisiva para "civilizar" a cultura global, regulamentando suas condições de produção e de disseminação. As duas metades "inimigas" da cultura mundial -a global e a universal- se reconciliariam, contribuindo para a concretização do sonho mais alto da modernidade emancipatória, a autonomia cultural.
É para ela que caminhamos, e ali chegaremos um dia, se a humanidade não for destruída antes pela homogeneização total do mundo, como querem os xiitas da globalização, ou por sua retribalização, como querem os cruzados da purificação étnica.


Sergio Paulo Rouanet é diplomata e ensaísta, autor de "As Razões do Iluminismo" e "Mal-Estar na Modernidade" (Companhia das Letras). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 501 d.C.".

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