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+ brasil 501 d.C.
As duas vias da mundialização
Sergio Paulo Rouanet
Se nós, alemães, não olharmos
além do círculo estreito do nosso
próprio horizonte" disse Goethe,
numa de suas conversas com Eckermann, "cairemos facilmente num
obscurantismo pedante. Por isso gosto
de olhar para o que se faz nos países estrangeiros e aconselho a todos que façam
o mesmo. A literatura nacional não quer
dizer grande coisa hoje em dia. Chegou a
hora da literatura mundial, e cada um de
nós deve contribuir para acelerar o advento dessa época." Poucos anos depois,
Marx afirmava no "Manifesto Comunista" que "os produtos intelectuais das diferentes nações se transformam em patrimônio comum. A unilateralidade e a
estreiteza nacionais se tornam crescentemente impossíveis, e uma literatura
mundial se constitui a partir das várias literaturas nacionais e locais".
O pensamento é o mesmo. E até a forma é semelhante. Tanto Goethe quanto
Marx usam a expressão "Weltliteratur",
literatura mundial, e nos dois casos a literatura funciona como alusão metonímica à cultura como um todo. O que os dois
autores estão dizendo é que hoje em dia
as culturas puramente locais estão condenadas ao "obscurantismo", à "unilateralidade" e à "estreiteza", e que elas deveriam ultrapassar seu paroquialismo,
convergindo para a formação de uma
cultura mundial. Após um século e meio,
isso já aconteceu em grande parte. A cultura mundial, detectada "in statu nascendi" pelos dois pensadores, está-se
ampliando de modo avassalador. Cada
vez mais os valores, símbolos e produtos
culturais extravasam as fronteiras nacionais, e cada vez menos eles podem ser reduzidos à mera soma das culturas locais,
ou à extroversão imperialista de uma
cultura nacional hegemônica.
Mickey e grande arte
Mas a cultura mundial é ambígua. De um lado, ela é
composta de bens culturais de massa,
desprendidos do seu país de origem, oferecendo uma gama estonteante de mercadorias expatriadas, cosmopolitas, que
vão desde Mickey Mouse até Madonna.
De outro lado, é a grande música, a grande pintura, a grande literatura, também
desterritorializadas, também transformadas em coisas de todos, em partes do
acervo comum da humanidade.
Quais as razões dessa dualidade?
Voltemos a Goethe e a Marx. Eles não
estavam falando de um simples fenômeno de internacionalização cultural, como
os que a humanidade conhecera no período alexandrino ou romano, mas de
uma variedade "moderna" de internacionalização. A cultura mundial, para
eles, era antes de tudo um fato da modernidade. Não seria essa uma pista para
compreendermos a dinâmica e a organização dualista da cultura mundial? Habitualmente, a modernidade é entendida
na significação que lhe deu Max Weber,
como o desfecho de processos cumulativos de racionalização ocorridos no Ocidente a partir da reforma protestante. Segundo essa acepção, numa sociedade
moderna as instituições funcionam melhor que numa sociedade pré-moderna.
Por isso, podemos falar em uma concepção funcional de modernidade.
Projeto da Ilustração
Mas existe
um segundo vetor da modernidade, que
não tem a ver com a eficácia e sim com a
autonomia. Sua matriz é o projeto civilizatório da Ilustração, que não busca a
funcionalidade das estruturas e sim a
emancipação dos indivíduos. É a concepção emancipatória de modernidade.
A modernidade é a coexistência contraditória desses dois vetores. Ela é uma
prisão, uma "stahlhartes Gehäuse" (jaula
de ferro), na expressão de Weber, mas
também uma promessa de autonomia, é
o reino da racionalidade instrumental,
que submete o homem a imperativos sistêmicos, mas também o prenúncio de
uma humanidade mais livre. Pois bem, a
modernidade tende à internacionalização, nesses dois vetores. Ela se mundializa, para usarmos, modificando-lhe o
sentido, uma palavra habitualmente utilizada pelos teóricos franceses.
Em seu vetor funcional, a modernidade percebe as barreiras locais e nacionais
como obstáculos para o pleno desdobramento da lógica da eficácia e do rendimento. Consequentemente, a modernidade vai derrubando essas barreiras. Ela
passa primeiro dos particularismos locais, que impunham limites à ação do
capital, para o espaço mais amplo criado
pelo Estado nacional, que punha à sua
disposição um mercado integrado. Em
seguida, os próprios Estados nacionais
se tornam demasiado estreitos, e ela ultrapassa esses limites, mundializando-se. É a globalização.
Mas a modernidade se mundializa,
também, em seu vetor emancipatório,
porque sob esse aspecto ela deriva de um
projeto planetário, o da Ilustração, que
visa a autonomia de todos os seres humanos, independentemente de sexo, etnia, cultura ou nação. Podemos chamar
de universalização a esse movimento.
Os agentes da globalização são os executivos das corporações multinacionais,
as elites tecnoburocráticas, os especialistas da comunicação por satélites, e em
geral os "intelectuais orgânicos" do novo
Príncipe, para usar uma linguagem
gramsciana a "burguesia global". Os
agentes da universalização são as organizações não-governamentais, os partidos
políticos, os sindicatos, os parlamentos,
os governos democráticos e os intelectuais críticos comprometidos com ideais
universalistas.
A globalização tende a nivelar todas as
particularidades, porque sua força motriz é a otimização do ganho, através de
uma racionalidade de mercado que supõe a criação de espaços homogêneos.
A universalização é pluralista, porque
seus fins só podem ser atingidos por uma
racionalidade comunicativa que supõe o
desejo e o poder dos sujeitos de defenderem a especificidade das suas formas de
vida. A globalização é a união dos conglomerados.
A universalização é a união dos povos.
Somos objetos da globalização. Somos
sujeitos da universalização. A aceleração
dos processos de mundialização, em
seus dois vetores, está nos conduzindo,
em nossos dias, a uma sociedade mundial. Por enquanto, ela é relativamente
amorfa, porque não dispõe ainda de estruturas políticas. Mas já dispõe de uma
cultura. É a cultura mundial. Essa cultura
é a unidade tensa de duas culturas: a global e a universal. É por isso que ela é ambígua.
A cultura global é impulsionada por
processos de globalização, que levam à
crescente transnacionalização todas as
indústrias culturais, como a do cinema e
a do disco. A cultura universal é impulsionada por processos de universalização, que levam à aproximação internacional de escritores, músicos, artistas
plásticos, filósofos e cientistas.
Apesar disso, não há guerra de morte
entre globalização cultural e universalização cultural. Elas são distintas, mas
dialeticamente complementares. A mesma revolução técnica que viabilizou a
globalização da cultura pode ser usada
pelos que pretendem universalizá-la. As
duas culturas são partes da modernidade, indissociáveis uma das outra. Sem a
cultura global, a cultura universal não teria os meios técnicos para implantar-se,
e, sem a cultura universal, a cultura global careceria de conteúdo ético.
Mas há uma relação hierárquica entre
as duas. É da cultura universal que devem partir os impulsos destinados a retificar os desvios da cultura global. Não
podemos, se quisermos enfrentar as patologias dessa cultura, refugiar-nos em
particularismos a contracorrente, como
os fundados na nação, na religião ou na
etnia, porque eles não nos permitiriam
lidar com fenômenos que atravessam todas as particularidades e se evadem a todas as jurisdições nacionais, e sim agir no
próprio terreno em que se dá a cultura
global: o da mundialização. O corretivo
da mundialização pelo globalismo é a
mundialização pelo universalismo.
Novos sincretismos
O universalismo cultural implica uma política de
abertura, que, longe de gerar o nivelamento, poderá estimular novos sincretismos, formas inéditas de hibridação.
Era a isso que Marx aludia quando falava
nas sínteses produzidas pela interação
entre as diversas culturas. E implica,
num horizonte mais distante, uma democracia mundial, como expressão política da sociedade mundial. Essa democracia seria decisiva para "civilizar" a
cultura global, regulamentando suas
condições de produção e de disseminação. As duas metades "inimigas" da cultura mundial -a global e a universal-
se reconciliariam, contribuindo para a
concretização do sonho mais alto da modernidade emancipatória, a autonomia
cultural.
É para ela que caminhamos, e ali chegaremos um dia, se a humanidade não
for destruída antes pela homogeneização
total do mundo, como querem os xiitas
da globalização, ou por sua retribalização, como querem os cruzados da purificação étnica.
Sergio Paulo Rouanet é diplomata e ensaísta,
autor de "As Razões do Iluminismo" e "Mal-Estar
na Modernidade" (Companhia das Letras). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 501 d.C.".
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