São Paulo, domingo, 31 de maio de 1998

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ENTREVISTA
O descompasso dos trópicos


Para o geógrafo Pierre Gourou tese de que clima mundial depende da Amazônia é falsa


BETTY MILAN
especial para a Folha, em Bruxelas

Pierre Gourou nasceu com o século e é um dos maiores geógrafos vivos. Especializou-se no estudo dos países tropicais e sobre estes publicou vários livros, além de centenas de artigos. Conhece o Brasil e sobretudo a Amazônia, tema de páginas extraordinárias do livro "Terras de Boa Esperança - O Mundo Tropical" (em inglês, "The Tropical World", editado pela Longman).
Tornou-se conhecido em 1936 por uma tese sobre os camponeses do delta do Tonkim (Vietnã), na qual mostra que a fatalidade tropical não existe, tudo é função da tecnologia, do enquadramento -títulos de propriedade sérios, presença de agrônomos competentes, por exemplo- e ruptura dos isolamentos pelas redes de comunicação.
Foi eleito professor do Collège de France em 1947 e depois ensinou na Universidade Livre de Bruxelas (Bélgica).
Para Gourou, 97, a idéia de um determinismo geográfico ou climático não faz sentido. Ele defende também que o clima do mundo não depende do que acontece na Amazônia, e sim da repartição das terras e dos mares. "Foram os americanos que lançaram essa idéia. Queriam ganhar dinheiro fazendo propaganda pela proteção da Amazônia", afirma o geógrafo na entrevista a seguir, feita em sua casa, em Bruxelas.

Folha - O senhor, contrariamente a Lévi-Strauss, escreveu que os trópicos não são tristes. O sociólogo Gilberto Freyre também pensava isso.
Pierre Gourou -
Não sei em que os trópicos seriam tristes. Dizem que são insalubres, mas isso não se deve à natureza e sim a um atraso de civilização. Nunca fiquei doente nos países tropicais e eu estive muito tempo na Indochina e na África.
Folha - No Brasil também, não é?
Gourou -
Sim, na Amazônia, que, aliás, me interessou muito. Uma natureza tão diferente das que eu conhecia, e as tradições portuguesas que se adaptavam tão mal ao meio ambiente... Formei-me no trópico, em países de alta civilização, o Vietnã, por exemplo, onde havia 400 habitantes por km 2.
Folha - O senhor nasceu com o século, quando os países tropicais eram colônias ou tinham uma existência política marginal. Hoje em dia, com exceção da África, eles estão saindo do anonimato. A idéia de que o trópico é uma região geograficamente maldita não faz mais sentido, não é?
Gourou -
O problema do trópico é que ele é mal explorado pelos seus habitantes. Os brasileiros se adaptaram ao trópico, salvo à Amazônia, claro. Aí, as pessoas não têm familiaridade com o meio. Não encontrei lá um único índio, só portugueses amazonenses, ou seja, os mestiços, cujas técnicas eram simples demais. A culpa não era deles, claro. Em 1947, em Gurupa, uma cidadezinha de mil habitantes, não havia água nem luz. Havia um único relógio, que pertencia à professora. A pobreza era extrema. Todas as casas estavam em ruínas. O padre só ia à igreja para os batizados e os casamentos. O cemitério era de judeus marroquinos, que foram para a Amazônia na época da exploração da borracha.
Folha - A que se devia tamanho atraso?
Gourou -
À organização social. A cidade era controlada pelos poderosos de Belém, os donos do comércio, capazes inclusive de assassinatos. Tudo é questão de civilização e esta pode perfeitamente prosperar em países tropicais. O problema é que certos países não participam ainda da modernidade, como os africanos, por exemplo. Isso pode mudar. Trata-se apenas de um atraso histórico. A civilização é tudo. Considere o caso do Brasil durante o governo militar. Gastaram um dinheiro louco na Transamazônica. Não sobrou quase nada do investimento porque a estrada não estava adaptada ao meio. Levaram para lá uma gente sem instrução alguma, o caboclo. Não houve e não podia haver progresso.
Aliás, é possível que o Brasil não tenha interesse em transformar a Amazônia. Há tanto por fazer em outros lugares, em toda a região leste e sul, onde há operários absurdamente miseráveis. Os plantadores de cana-de-açúcar no Nordeste ganham pouco mais de US$ 1 por dia. Para viver é preciso ganhar US$ 10. A miséria é um hábito ruim, que vem da escravatura. Tudo depende da organização social. Um problema grave que existe no Brasil é a prolificidade dos pobres. Corrigir isso leva tempo. Trata-se de um círculo vicioso. Para que os pobres parem de ter tantas crianças é preciso que eles sejam menos pobres, mais bem instruídos.
Na minha opinião, a igreja não desempenha o papel que deveria, está muito longe do povo. Lembro de uma cidade no Estado de São Paulo com 70 mil habitantes onde havia um único padre, que passava o tempo fazendo casamentos e não se ocupava da caridade, que é indispensável.
Folha - O senhor se manifestou contra a idéia de que a Amazônia seja um dos pulmões da Terra e que a desaparição da floresta teria efeitos cataclísmicos sobre o clima. Poderia explicitar mais isso?
Gourou -
Foram os americanos que lançaram a idéia. Queriam ganhar dinheiro fazendo propaganda pela proteção da Amazônia. O clima do mundo não depende do que acontece na Amazônia, e sim da repartição das terras e dos mares. Convidaram reis e presidentes da República para a conferência do Rio de Janeiro inutilmente.
Folha - O senhor está escrevendo um livro cujo título é "Geografia e Civilizações". De que se trata?
Gourou -
A geografia, contrariamente ao que se ensina na escola, não é, por um lado, a geografia física e, por outro, a geografia humana. Trata-se de uma coisa só. Toda paisagem é, antes de mais nada, uma paisagem de civilização. A idéia de que a natureza vem antes e a civilização depois é uma ilusão. O prioritário, do ponto de vista do geógrafo, não é o físico, mas a civilização, ou seja, o conjunto de técnicas de produção e de enquadramento.
Folha - E o que caracteriza o século 20, no que diz respeito à civilização?
Gourou -
Este século reforçou a civilização por ter reforçado a capacidade de produção das pessoas.
Folha - O senhor afirma isso apesar de Chernobyl?
Gourou -
Na URSS houve um esforço fantástico para substituir a natureza pela civilização. Não deu certo. O sistema produtivo requer uma certa moderação. Os russos valorizaram demais o átomo e depois construíram indústrias atômicas que simplesmente não funcionam, são perigosas. O futuro, aliás, talvez nos mostre que o átomo é um perigo para a civilização. A China, ao contrário da URSS, parece estar evoluindo bem. Talvez venha a ser, no próximo século, a segunda potência mundial. A população cresce menos do que antigamente e eles desenvolvem uma indústria fantástica. A China não tem muitos recursos, mas tem uma organização forte. Os chineses acabam de comprar dos suíços uma grande quantidade de máquinas de tecelagem, para depois venderem a produção no mundo inteiro.
Folha - E a Europa?
Gourou -
Os campos estão se esvaziando e as metrópoles não param de crescer. A gente não sabe mais dirigi-las. As nossas sociedades evoluídas vão ter problemas graves por não terem como controlar as cidades.
Folha - Por que a África não se desenvolve?
Gourou -
Por falta de organização. Não há mais países coloniais, e os países independentes não são capazes de se administrar bem. Estão divididos entre as tradições africanas e uma evolução mais moderna. Por enquanto, continuam a ser mais africanos do que modernos.
Folha - Ao Brasil o que falta?
Gourou -
O enquadramento não é suficiente. Li no jornal que alguns industriais de São Paulo querem transferir as suas indústrias para o Paraná, onde os sindicatos são fracos e os operários não podem exigir salários elevados. Seria a ruína de São Paulo. Trata-se de um exemplo de enquadramento insuficiente. As autoridades não têm força para enquadrar os industriais.
Folha - Em que consiste o progresso da geografia neste século?
Gourou -
Na descoberta de que as condições naturais não são determinantes. O subdesenvolvimento da África não é decorrente da natureza africana, porém de uma insuficiência da civilização africana. O defeito da geografia do passado foi considerar que primeiro se devia estudar a geografia física e depois a humana. Isso não corresponde a uma verdade. É preciso primeiro estudar a civilização, as técnicas de produção e as de enquadramento. A geografia física a gente examina depois.
Folha - E, do ponto de vista da civilização, o que mudou no século 20?
Gourou -
As técnicas de enquadramento se tornaram mais dominadoras. Num país como a França, por exemplo, os campos eram populosos e os camponeses produziam a sua alimentação e a do resto do país com técnicas muito simples. Hoje em dia, as técnicas de enquadramento se aperfeiçoaram e limitaram a importância das técnicas de produção. Os cavalos foram suprimidos porque há motores e as poucas pessoas que trabalham na terra estão enquadradas pelas escolas, pelos bancos, pelo Estado. O enquadramento é mais importante do que a produção. Isso muda inteiramente a paisagem.
Considere os Alpes europeus. Antigamente, eram destinados à produção em vista do consumo dos moradores. As vacas produziam o leite e o queijo, que eram consumidos e só eventualmente vendidos. Hoje, tudo mudou. Os habitantes dos Alpes já não se ocupam dos seus animais. Descobriram um enquadramento novo, que é o esportivo. Os Alpes estão destinados ao esqui, ao repouso na montanha etc. A produção praticamente inexiste. O turismo e os esportes de inverno é que são importantes -e o enquadramento é fundamental, as estradas, os meios de transporte etc.
Folha - O exemplo é muito claro.
Gourou -
Tudo agora é assim. Quanto mais desenvolvidos os países, mais isso se verifica. A região da Provence (França) está se esvaziando, salvo à beira-mar, onde há uma massa enorme de gente que vai aproveitar o sol graças ao automóvel, ao avião etc. Já não se plantam oliveiras. As olivas são compradas na Tunísia, um país pobre o suficiente para produzir olivas.
Folha - Qual o papel que o geógrafo deve e pode desempenhar?
Gourou -
O geógrafo deve explicar os fatos relativos à civilização, ele não dá conselhos. Mesmo porque nenhum governo é mestre da civilização, que é sempre mais forte. De que adianta dar conselhos a um governo que se confronta com problemas materiais graves? E que sentido faz, aliás, perguntar de que serve a geografia ou a história? O conhecimento histórico acaso impediu os homens de fazerem besteiras? Nunca fizemos tantas quanto no século 20, que teve as duas maiores guerras de todos os tempos, os dois maiores massacres. Verdade que, diante da automatização crescente, há um excesso de homens. Foi a bomba atômica que parou a guerra. Sem ela, ainda estariam se matando. Com ela, abrimos um capítulo imprevisível.
Folha - O senhor está dizendo que o desenvolvimento técnico pode ser um fator contrário à civilização...
Gourou -
Não, ele faz parte da civilização, mas pode ser contrário à felicidade geral. Pense nas possibilidades de comunicação hoje existentes, a Internet etc. Como ter controle sobre isso tudo?
Folha - O senhor escreveu durante a vida inteira. Qual é, na sua opinião, o futuro da escrita?
Gourou -
É possível que a escrita venha a ser substituída pela gravação, a palavra gravada. No meu tempo, era lógico escrever. Em breve, a gente não terá mais necessidade alguma de escrever porque falaremos e seremos transmitidos na Terra inteira. Estamos em via de perder a escrita. Também perdemos o cálculo. Vamos em direção a sociedades em que haverá alguns indivíduos extremamente competentes, astuciosos...
Folha - Qual é o perfil desse indivíduo?
Gourou -
Um sujeito que vai continuar se instruindo apesar de os outros não serem mais nem sequer capazes de calcular, fazer uma pequena divisão etc. Tal indivíduo pertencerá no futuro à classe dos patrões. Poderá então haver uma tirania decorrente do monopólio da ciência.
Folha - O monopólio do raciocínio e da escrita...
Gourou -
É possível, aliás, que nós estejamos entrando numa outra civilização.
Folha - A civilização da palavra?
Gourou -
Da palavra gravada.
Folha - Os que souberem escrever poderão se expressar melhor...
Gourou -
Os que souberem escrever se tornarão deuses, chefes... Mas isso tudo supera a minha geografia. O fato é que o mundo desliza sob os nossos pés e pode ser que, em breve, não tenhamos mais comida por causa de ninguém se interessar mais pelo cultivo do trigo. Pode haver uma crise e, daí, os países tropicais vão se beneficiar dela. Agora produzem pouco, só que são capazes de produzir mais, se o mundo precisar.


Betty Milan é psicanalista e escritora, autora de "O Papagaio e o Doutor" (Siciliano), "O Que É Amor" (Brasiliense) e "A Paixão de Lia" (Globo). Esta entrevista faz parte de uma série de depoimentos colhidos pela autora, publicados com exclusividade pela Folha, e que serão futuramente editados no livro "O Século".



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