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ENTREVISTA
O descompasso dos trópicos
Para o geógrafo Pierre Gourou
tese de que clima mundial
depende da Amazônia é falsa
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BETTY MILAN
especial para a Folha, em Bruxelas
Pierre Gourou nasceu com o século e é um dos maiores geógrafos
vivos. Especializou-se no estudo
dos países tropicais e sobre estes
publicou vários livros, além de
centenas de artigos. Conhece o
Brasil e sobretudo a Amazônia, tema de páginas extraordinárias do
livro "Terras de Boa Esperança -
O Mundo Tropical" (em inglês,
"The Tropical World", editado
pela Longman).
Tornou-se conhecido em 1936
por uma tese sobre os camponeses
do delta do Tonkim (Vietnã), na
qual mostra que a fatalidade tropical não existe, tudo é função da
tecnologia, do enquadramento
-títulos de propriedade sérios,
presença de agrônomos competentes, por exemplo- e ruptura
dos isolamentos pelas redes de comunicação.
Foi eleito professor do Collège
de France em 1947 e depois ensinou na Universidade Livre de Bruxelas (Bélgica).
Para Gourou, 97, a idéia de um
determinismo geográfico ou climático não faz sentido. Ele defende também que o clima do mundo
não depende do que acontece na
Amazônia, e sim da repartição das
terras e dos mares. "Foram os
americanos que lançaram essa
idéia. Queriam ganhar dinheiro
fazendo propaganda pela proteção
da Amazônia", afirma o geógrafo
na entrevista a seguir, feita em sua
casa, em Bruxelas.
Folha - O senhor, contrariamente
a Lévi-Strauss, escreveu que os
trópicos não são tristes. O sociólogo Gilberto Freyre também pensava isso.
Pierre Gourou - Não sei em que
os trópicos seriam tristes. Dizem
que são insalubres, mas isso não se
deve à natureza e sim a um atraso
de civilização. Nunca fiquei doente
nos países tropicais e eu estive
muito tempo na Indochina e na
África.
Folha - No Brasil também, não é?
Gourou - Sim, na Amazônia,
que, aliás, me interessou muito.
Uma natureza tão diferente das
que eu conhecia, e as tradições
portuguesas que se adaptavam tão
mal ao meio ambiente... Formei-me no trópico, em países de
alta civilização, o Vietnã, por
exemplo, onde havia 400 habitantes por km 2.
Folha - O senhor nasceu com o
século, quando os países tropicais
eram colônias ou tinham uma existência política marginal. Hoje em
dia, com exceção da África, eles estão saindo do anonimato. A idéia
de que o trópico é uma região geograficamente maldita não faz mais
sentido, não é?
Gourou - O problema do trópico é que ele é mal explorado pelos
seus habitantes. Os brasileiros se
adaptaram ao trópico, salvo à
Amazônia, claro. Aí, as pessoas
não têm familiaridade com o meio.
Não encontrei lá um único índio,
só portugueses amazonenses, ou
seja, os mestiços, cujas técnicas
eram simples demais. A culpa não
era deles, claro. Em 1947, em Gurupa, uma cidadezinha de mil habitantes, não havia água nem luz.
Havia um único relógio, que pertencia à professora. A pobreza era
extrema. Todas as casas estavam
em ruínas. O padre só ia à igreja
para os batizados e os casamentos.
O cemitério era de judeus marroquinos, que foram para a Amazônia na época da exploração da borracha.
Folha - A que se devia tamanho
atraso?
Gourou - À organização social.
A cidade era controlada pelos poderosos de Belém, os donos do comércio, capazes inclusive de assassinatos. Tudo é questão de civilização e esta pode perfeitamente
prosperar em países tropicais. O
problema é que certos países não
participam ainda da modernidade, como os africanos, por exemplo. Isso pode mudar. Trata-se
apenas de um atraso histórico. A
civilização é tudo. Considere o caso do Brasil durante o governo militar. Gastaram um dinheiro louco
na Transamazônica. Não sobrou
quase nada do investimento porque a estrada não estava adaptada
ao meio. Levaram para lá uma
gente sem instrução alguma, o caboclo. Não houve e não podia haver progresso.
Aliás, é possível que o Brasil não
tenha interesse em transformar a
Amazônia. Há tanto por fazer em
outros lugares, em toda a região
leste e sul, onde há operários absurdamente miseráveis. Os plantadores de cana-de-açúcar no Nordeste ganham pouco mais de US$ 1
por dia. Para viver é preciso ganhar US$ 10. A miséria é um hábito
ruim, que vem da escravatura. Tudo depende da organização social.
Um problema grave que existe no
Brasil é a prolificidade dos pobres.
Corrigir isso leva tempo. Trata-se
de um círculo vicioso. Para que os
pobres parem de ter tantas crianças é preciso que eles sejam menos
pobres, mais bem instruídos.
Na minha opinião, a igreja não
desempenha o papel que deveria,
está muito longe do povo. Lembro
de uma cidade no Estado de São
Paulo com 70 mil habitantes onde
havia um único padre, que passava
o tempo fazendo casamentos e não
se ocupava da caridade, que é indispensável.
Folha - O senhor se manifestou
contra a idéia de que a Amazônia
seja um dos pulmões da Terra e
que a desaparição da floresta teria
efeitos cataclísmicos sobre o clima.
Poderia explicitar mais isso?
Gourou - Foram os americanos
que lançaram a idéia. Queriam ganhar dinheiro fazendo propaganda pela proteção da Amazônia. O
clima do mundo não depende do
que acontece na Amazônia, e sim
da repartição das terras e dos mares. Convidaram reis e presidentes
da República para a conferência
do Rio de Janeiro inutilmente.
Folha - O senhor está escrevendo
um livro cujo título é "Geografia e
Civilizações". De que se trata?
Gourou - A geografia, contrariamente ao que se ensina na escola, não é, por um lado, a geografia
física e, por outro, a geografia humana. Trata-se de uma coisa só.
Toda paisagem é, antes de mais
nada, uma paisagem de civilização. A idéia de que a natureza vem
antes e a civilização depois é uma
ilusão. O prioritário, do ponto de
vista do geógrafo, não é o físico,
mas a civilização, ou seja, o conjunto de técnicas de produção e de
enquadramento.
Folha - E o que caracteriza o século 20, no que diz respeito à civilização?
Gourou - Este século reforçou a
civilização por ter reforçado a capacidade de produção das pessoas.
Folha - O senhor afirma isso apesar de Chernobyl?
Gourou - Na URSS houve um
esforço fantástico para substituir a
natureza pela civilização. Não deu
certo. O sistema produtivo requer
uma certa moderação. Os russos
valorizaram demais o átomo e depois construíram indústrias atômicas que simplesmente não funcionam, são perigosas. O futuro,
aliás, talvez nos mostre que o átomo é um perigo para a civilização.
A China, ao contrário da URSS,
parece estar evoluindo bem. Talvez venha a ser, no próximo século, a segunda potência mundial. A
população cresce menos do que
antigamente e eles desenvolvem
uma indústria fantástica. A China
não tem muitos recursos, mas tem
uma organização forte. Os chineses acabam de comprar dos suíços
uma grande quantidade de máquinas de tecelagem, para depois venderem a produção no mundo inteiro.
Folha - E a Europa?
Gourou - Os campos estão se
esvaziando e as metrópoles não
param de crescer. A gente não sabe
mais dirigi-las. As nossas sociedades evoluídas vão ter problemas
graves por não terem como controlar as cidades.
Folha - Por que a África não se
desenvolve?
Gourou - Por falta de organização. Não há mais países coloniais,
e os países independentes não são
capazes de se administrar bem. Estão divididos entre as tradições
africanas e uma evolução mais
moderna. Por enquanto, continuam a ser mais africanos do que
modernos.
Folha - Ao Brasil o que falta?
Gourou - O enquadramento
não é suficiente. Li no jornal que
alguns industriais de São Paulo
querem transferir as suas indústrias para o Paraná, onde os sindicatos são fracos e os operários não
podem exigir salários elevados. Seria a ruína de São Paulo. Trata-se
de um exemplo de enquadramento insuficiente. As autoridades não
têm força para enquadrar os industriais.
Folha - Em que consiste o progresso da geografia neste século?
Gourou - Na descoberta de que
as condições naturais não são determinantes. O subdesenvolvimento da África não é decorrente
da natureza africana, porém de
uma insuficiência da civilização
africana. O defeito da geografia do
passado foi considerar que primeiro se devia estudar a geografia física e depois a humana. Isso não
corresponde a uma verdade. É preciso primeiro estudar a civilização,
as técnicas de produção e as de enquadramento. A geografia física a
gente examina depois.
Folha - E, do ponto de vista da
civilização, o que mudou no século
20?
Gourou - As técnicas de enquadramento se tornaram mais dominadoras. Num país como a França,
por exemplo, os campos eram populosos e os camponeses produziam a sua alimentação e a do resto
do país com técnicas muito simples. Hoje em dia, as técnicas de
enquadramento se aperfeiçoaram
e limitaram a importância das técnicas de produção. Os cavalos foram suprimidos porque há motores e as poucas pessoas que trabalham na terra estão enquadradas
pelas escolas, pelos bancos, pelo
Estado. O enquadramento é mais
importante do que a produção. Isso muda inteiramente a paisagem.
Considere os Alpes europeus.
Antigamente, eram destinados à
produção em vista do consumo
dos moradores. As vacas produziam o leite e o queijo, que eram
consumidos e só eventualmente
vendidos. Hoje, tudo mudou. Os
habitantes dos Alpes já não se ocupam dos seus animais. Descobriram um enquadramento novo,
que é o esportivo. Os Alpes estão
destinados ao esqui, ao repouso na
montanha etc. A produção praticamente inexiste. O turismo e os
esportes de inverno é que são importantes -e o enquadramento é
fundamental, as estradas, os meios
de transporte etc.
Folha - O exemplo é muito claro.
Gourou - Tudo agora é assim.
Quanto mais desenvolvidos os
países, mais isso se verifica. A região da Provence (França) está se
esvaziando, salvo à beira-mar, onde há uma massa enorme de gente
que vai aproveitar o sol graças ao
automóvel, ao avião etc. Já não se
plantam oliveiras. As olivas são
compradas na Tunísia, um país
pobre o suficiente para produzir
olivas.
Folha - Qual o papel que o geógrafo deve e pode desempenhar?
Gourou - O geógrafo deve explicar os fatos relativos à civilização, ele não dá conselhos. Mesmo
porque nenhum governo é mestre
da civilização, que é sempre mais
forte. De que adianta dar conselhos a um governo que se confronta com problemas materiais graves? E que sentido faz, aliás, perguntar de que serve a geografia ou
a história? O conhecimento histórico acaso impediu os homens de
fazerem besteiras? Nunca fizemos
tantas quanto no século 20, que teve as duas maiores guerras de todos os tempos, os dois maiores
massacres. Verdade que, diante da
automatização crescente, há um
excesso de homens. Foi a bomba
atômica que parou a guerra. Sem
ela, ainda estariam se matando.
Com ela, abrimos um capítulo imprevisível.
Folha - O senhor está dizendo
que o desenvolvimento técnico
pode ser um fator contrário à civilização...
Gourou - Não, ele faz parte da
civilização, mas pode ser contrário
à felicidade geral. Pense nas possibilidades de comunicação hoje
existentes, a Internet etc. Como ter
controle sobre isso tudo?
Folha - O senhor escreveu durante a vida inteira. Qual é, na sua opinião, o futuro da escrita?
Gourou - É possível que a escrita venha a ser substituída pela gravação, a palavra gravada. No meu
tempo, era lógico escrever. Em
breve, a gente não terá mais necessidade alguma de escrever porque
falaremos e seremos transmitidos
na Terra inteira. Estamos em via
de perder a escrita. Também perdemos o cálculo. Vamos em direção a sociedades em que haverá alguns indivíduos extremamente
competentes, astuciosos...
Folha - Qual é o perfil desse indivíduo?
Gourou - Um sujeito que vai
continuar se instruindo apesar de
os outros não serem mais nem sequer capazes de calcular, fazer
uma pequena divisão etc. Tal indivíduo pertencerá no futuro à classe
dos patrões. Poderá então haver
uma tirania decorrente do monopólio da ciência.
Folha - O monopólio do raciocínio e da escrita...
Gourou - É possível, aliás, que
nós estejamos entrando numa outra civilização.
Folha - A civilização da palavra?
Gourou - Da palavra gravada.
Folha - Os que souberem escrever poderão se expressar melhor...
Gourou - Os que souberem escrever se tornarão deuses, chefes...
Mas isso tudo supera a minha geografia. O fato é que o mundo desliza sob os nossos pés e pode ser
que, em breve, não tenhamos mais
comida por causa de ninguém se
interessar mais pelo cultivo do trigo. Pode haver uma crise e, daí, os
países tropicais vão se beneficiar
dela. Agora produzem pouco, só
que são capazes de produzir mais,
se o mundo precisar.
Betty Milan é psicanalista e escritora, autora de
"O Papagaio e o Doutor" (Siciliano), "O Que É
Amor" (Brasiliense) e "A Paixão de Lia" (Globo).
Esta entrevista faz parte de uma série de depoimentos colhidos pela autora, publicados com
exclusividade pela
Folha, e que serão futuramente editados no livro "O Século".
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