UOL


São Paulo, domingo, 31 de agosto de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ cultura

O biógrafo de Hans Mag nus Enzensberger fala do início da relação do poeta alemão com o autor de " Minima Moralia" e de sua posterior ruptura intelectual

O esclarecimento do discípulo

José Galisi Filho
especial para a Folha, de Berlim

Hans Magnus Enzensberger é provavelmente o mais significativo "discípulo" de Adorno. Na entrevista a seguir, o escritor Jörg Lau discute a relação entre o autor de "Minima Moralia" e o intelectual e poeta alemão, de quem escreveu uma importante biografia ("Hans Magnus Enzensberger", Suhrkamp, 400 págs., 11,50 euros), e explica as razões pelas quais eles se desentenderam.

Como foi a relação de Adorno com, nas palavras do mestre, "seu melhor aluno", Hans Magnus Enzensberger? Como se formaliza a ruptura entre ambos?
Em relação aos primeiros anos, em que Enzensberger se tornou famoso por seus ensaios de crítica cultural, pode-se dizer que no fundo ele tinha o pensamento que Adorno formulara já na "Dialética do Esclarecimento", na crítica à indústria cultural, a qual Enzensberger aplicou e de certo modo tornou popular. Os dois se conheciam desde muito tempo; sua correspondência remonta à época de Enzensberger na rádio Süddeutscher. Ele mostrou que é possível trabalhar realmente com essa postura crítica de Horkheimer e Adorno, que com suas teorias é possível trabalhar de fato o material concreto que se oferece a um intelectual que quer observar e expor a sociedade. Por exemplo, Enzensberger fez isso com o turismo. Adorno não poderia ter feito de outro modo ou melhor. No fundo, é Adorno aplicado. Isso foi muito inspirador para os intelectuais, que estavam fascinados com esses emigrantes que haviam retornado e introduzido, ou melhor, que haviam reintroduzido essa espécie de crítica que na Alemanha já havia sido esquecida. No fundo, era um espírito que vinha dos anos 20 e 30 e aparecia na esfera pública alemã. E, nesse sentido, se pode dizer que Enzensberger era naquela época uma espécie de discípulo, sem que ele se entendesse como discípulo ou sem que ele se designasse assim. Ele aplicou essas teorias, de uma maneira muito própria e criativa. Depois ocorreu naturalmente uma ruptura. Eram os meados dos anos 60. Era o momento também daquela "Kursbuch" [revista literária alemã] dedicada à "morte da literatura". Na verdade há motivos de Adorno nisso. O que Adorno havia dito sobre Beckett, sobre "Fim de Partida". Claro, há também aquela dúvida muito forte em relação à literatura, a dúvida quanto a uma arte que quer expor a realidade de uma maneira direta, que quer ter uma conclusão reconciliadora ou instrutiva. As pessoas jovens como Enzensberger aprenderam isso em Adorno naquela época, a dúvida quanto à literatura. Nesse sentido, pode-se dizer que elas já iam na direção que Adorno havia definido, mas Adorno jamais estaria disposto a criticar daquele modo tão enérgico a literatura ou a arte em geral e declará-la encerrada. Para Adorno, a arte, a arte burguesa talvez, mas talvez, digamos a arte moderna, a música segundo Schoenberg ou também a literatura segundo Beckett: para Adorno, essa arte era a última esperança. Portanto, de certo modo, uma esperança poderia sobreviver justamente no momento do desespero e da recusa do sentido. É um motivo permanente em Adorno. Beckett descreve a impossibilidade do sentido, da felicidade e da identidade. Mas justamente ao descrever isso, como ele o faz em "Fim de Partida" ou em "Esperando Godot", ele se atém a essa dialética. E isso Enzensberger negou completamente naquele momento. No fundo ele estava dizendo: "Não, a arte é coisa do passado, e agora nós temos de nos engajar politicamente de um modo direto". Ele rompeu com Adorno, assim como todo o movimento estudantil, que estava insatisfeito com a teoria crítica, já que ela não lhe oferecia boas razões para sua ação política, pois a teoria crítica estava paralisada demais nessa dialética e criticava a ação direta. Então os caminhos se separaram. Adorno chegou a ficar muito deprimido com o fato de os estudantes acreditarem que eles podiam, justamente naquele momento, fazer a revolução e que podiam criar o mundo bom. Uma conferência de Adorno foi tomada de assalto, e ocorreu então aquela cena, assustadora para Adorno, de as moças mostrarem seus peitos para provocá-lo. E ele, Adorno, passou de repente a ser considerado um intelectual burguês, que não fazia o bastante para a revolução e sabe o diabo o que mais. E ele chegou a chamar a polícia, a fim de... Eu creio que foi pelo seguinte. O instituto foi ocupado em Frankfurt, e ele chamou a polícia para que o esvaziasse. E os estudantes nunca o perdoaram por isso, e ele nunca perdoou os estudantes por ser tratado como um inimigo, como um dos intelectuais burgueses odiados, por terem zombado dele. Enzensberger certamente não ficou do lado desses estudantes. Ele era também de uma geração mais velha que os estudantes que cometeram esses atos. Mas é preciso dizer o que ele fez na "Kursbuch" e o que ele fez em seu próprio engajamento político, isto é, aquela história em Cuba não era mais compatível com a idéia de Adorno a respeito da função de um intelectual. Então aconteceu também a ruptura entre Habermas e Enzensberger e os estudantes. Como se sabe, Habermas não considerou positivos aqueles atos, que foram em parte violentos, e chegou a falar de fascismo de esquerda, o que só mais tarde ele retirou. Mas é exatamente nisso que consiste a ruptura da teoria crítica, que vê o intelectual como crítico, com aqueles jovens, que criticavam o intelectual, o intelectual burguês, e queriam se tornar ativistas e desejavam a revolução aqui e agora. E é preciso dizer que Enzensberger esteve por um algum tempo do lado dos estudantes, pelo menos ele simpatizava com eles e se afastou fortemente de Adorno e da teoria crítica. Pode-se dizer que em sua vida posterior, por exemplo em 1998, quando ele publica alguma coisa no "Los Angeles Times" -tratava-se dos 150 anos do "Manifesto Comunista", tratava-se de perguntar: o que permanece de Marx 150 anos depois do "Manifesto Comunista"?-, ele escreve sobre Marx de um modo que na verdade está muito próximo dos primeiros anos e está inteiramente na linha de Adorno.


Jörg Lau


Como se formalizou a ruptura entre ambos?
Talvez Enzensberger tenha voltado para trás com a velhice e relativizado também, por meio da dúvida de si mesmo, seu próprio engajamento do final dos anos 60. Nesse sentido, pode-se dizer que essa ruptura foi talvez um pouco minimizada. Mas ela houve, a qual ele formalizou, em uma homenagem a Adorno, que tem o título de "Trabalho Difícil". Adorno, após o fim da crença no progresso e da utopia, é o legítimo herdeiro do pensamento marxista. E Enzensberger observa Marx por meio das lentes de Adorno. O que resta, se o marxismo termina numa rigidez de máscara devido à traição de seus adeptos? Nada, a não ser aquele "trabalho difícil" que se pode aprender em Adorno, como diz Enzensberger: "Com paciência/ reter a dor da negação/ lembrando os afogados nos trens suburbanos às 5h da manhã/ com paciência/ desdobrar o sudário da teoria/... / com paciência/ em nome dos desesperados/ duvidar do desespero/ com impaciente paciência/ em nome dos incorrigíveis/ ensinar...". O poema de Enzensberger é para mim um retrato extremamente respeitoso. Mas, com toda a reverência, ele põe um ponto final: o discípulo, que se atreve a retratar o seu mestre, cessa de ser um discípulo. Adorno já não é mais um modelo para Enzensberger, e logo retrocederá também sua influência sobre os quadros intelectuais da nova geração, empenhados ainda hoje em imitar seu estilo. Estão irrompendo tempos agitados, em que ninguém mais quer se contentar em reter com paciência a dor da negação.

José Galisi Filho é doutor em germanística pela Universidade de Hanover, na Alemanha.
Tradução de Luiz Repa.


Texto Anterior: ET + cetera
Próximo Texto: Ponto de fuga: Os cantos na elipse
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.