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São Paulo, domingo, 31 de agosto de 2003

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Ponto de fuga

Os cantos na elipse

Jorge Coli
especial para a Folha

É bem provável que tenha sido Wagner quem inventou, em 1876, os festivais de ópera. Ao fazê-lo, pensava em suas próprias obras, mas o princípio se alargou: óperas apresentadas durante o verão, em lugares privilegiados pela beleza, pelo encanto e pela acústica, com produções e elencos fora do comum. Esses festivais se multiplicaram durante o século 20, atraindo um público elegante, com pretensões intelectuais, como nos de Glyndebourne ou Salzburgo. Em Aix-en-Provence, Mozart opõe às espessas paixões românticas de Wagner a leveza transparente, mas profunda, do século 18.
O caso do Festival de Verona é um pouco diferente. Criado em 1913 pelo grande tenor Zenatello, era uma resposta italiana ao germanismo de Wagner. Magnífico o lugar escolhido, a Arena de Verona, anfiteatro romano erigido nos tempos do imperador Augusto. Permite reunir milhares de pessoas em ótimas condições de visibilidade e acústica para representações grandiosas. Os espetáculos são populares, feitos para multidões. Os frequentadores chiques de casas de ópera e de festivais requintados torcem um pouco o nariz para a Arena de Verona. É que a ópera perdeu, ao longo do século 20, a força que movia um público numeroso e diversificado de um ponto de vista social, capaz de sentir vibrações musicais atingindo diretamente o coração.
Verona soube manter ainda esses frêmitos que o esnobismo põe à distância. No espaço elíptico da Arena há uma atmosfera única, com tantas pessoas na mesma expectativa, aguardando a voz comovedora e a beleza da melodia.

Campeonato - Mais a ópera se tornou "highbrow", mais os espetáculos "esfriaram" e velhos hábitos se perderam. Isto aconteceu com os bis. Antes, interrompia-se a ação com aplausos e pedidos para que um trecho bem cantado fosse repetido, o que contribuía para a eletricidade intensa das representações. Mas, aos poucos, o bis foi sendo considerado desrespeitoso à integridade da obra, e o público terminou aprendendo a se comportar. Na Arena de Verona, porém, os bis ainda são, de vez em quando, consentidos, o que acentua a natureza atlética da ópera: sem sonorização, chegar, com nuanças, ao agudo final de uma ária, cantada ao ar livre para 15 mil pessoas e, ainda mais, repeti-la é uma proeza. José Cura foi bisado nas duas primeiras récitas de "Turandot". "Va Pensiero", coro de "Nabucco", é bisado regularmente: o maestro Daniel Oren, numa apresentação, irritou-se contra os aplausos que cobriram o longo pianíssimo final. Apostrofou o público, mas retomou o trecho, ouvido pela segunda vez num silêncio religioso até que a última ressonância desaparecesse.

Pompas - O palco, na Arena de Verona, é uma vastidão. É propício a óperas de grande espetáculo e vocalmente generosas. Nada de ousado no repertório, para o qual os diretores de cena desdobram efeitos suntuosos, em tom razoavelmente kitsch. Franco Zefirelli é mestre nessas encenações sobrecarregadas: se ele obteve unidade densa em sua atual "Aida", diluiu uma "Carmen" em concepção mal articulada.
No oposto, emergiu "La Traviata", em única apresentação, concebida na forma "semicênica", expressão que os italianos andam empregando agora para designar espetáculos com produção econômica e reduzida. Ópera intimista, "La Traviata", com Angela Gheorghiu e José Cura, mostrou-se, em cenários despojados, concentrada e forte, talvez o ponto mais alto de toda a temporada.

Prazeres - É erro supor que o caráter popular e pomposo das óperas montadas na Arena de Verona signifique sacrifício de suas qualidades musicais.
As possíveis críticas aos diferentes intérpretes debatem sempre em nível muito alto, e nenhuma apresentação deixa indiferente. A maioria do público é de amadores verdadeiros, que sabem o que estão ouvindo, coisa cada vez mais rara nos grandes teatros internacionais. Eles dosam, com boa compreensão, os aplausos para cada cantor; sabem vaiar, se lhes parecer necessário. Samuel Ramey, José Cura, Hei-Kyung Hong, Gheorghiou foram algumas das vozes esplêndidas que ressoaram neste ano na velha arena.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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