São Paulo, sábado, 18 de dezembro de 2010

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ROBERTO RODRIGUES

Eclipse no Ano-Novo


O fantasma, que já havia alguns anos o assombrava, voltou à lembrança: teria sua vida valido a pena?


IA SER uma festa, no fim de dezembro, para comemorar 20 anos de formados no curso de ciências contábeis. Para essas coisas sempre há um "herói" que consegue os endereços de todo mundo e organiza a reunião, aluga o local, contrata o bufê, essas amolações.
Juca não estava com vontade de ir. Perdera contato com os colegas e nem respondeu às duas primeiras circulares.
Mas aquilo serviu para lhe trazer à lembrança, de novo, o fantasma que o assombrava já havia alguns anos. Teria sua vida valido a pena?
Na escola, nunca estivera entre os dez melhores nem entre os dez últimos. Jogava futebol, mas só quando faltavam craques, e quebrava o galho na ponta esquerda. E sempre saía do jogo com a sensação de que não seria mais convocado.
Não tivera cargo de destaque no Diretório Acadêmico: de vez em quando era convidado para imprimir apostilas durante as madrugadas, enquanto os colegas iam para os botecos celebrar qualquer besteira. Também, não gostava mesmo de ir ao bar: não aguentava mais do que dois copos de cerveja , ficava encharcado. Nem ia a programas culturais, que achava fracos.
Formado, arranjara um emprego em uma repartição pública municipal e ali passara a vida carimbando papéis "à consideração superior".
E, sem estímulo, nem chegara a chefe de seção. Casara-se sem amor, mais para atender a um apelo da velha mãe.
Não tiveram filhos e o casamento acabara alguns anos depois, melancólico como começara, sem carinho, sem desejo, sem motivação.
Mas a terceira circular trouxe a lista dos colegas confirmados. E o nome dela estava lá. Teve um estremecimento, sentiu o coração pular, o rosto corar, o corpo se eriçar.
Ela estaria na festa, aquela que tinha sido a única pessoa capaz de despertar nele sentidos exacerbados, paixão desesperada, dor e alegria simultâneas. Ela era música e cores, perfume e sabores, ar de respirar. Linda! Para si mesmo, a chamava de "eclipse": onde entrava, tudo à sua volta escurecia, só ela havia; sua beleza irradiava uma energia que, nas noites insones, sorvia na solidão de seu quartinho, e com ela dormia num abraço imaginário.
Jamais tivera coragem de lhe dirigir a palavra. Sentia-se pequeno perto dela, maravilhosa, esfuziante, culta. Amou-a com todas as forças e guardou só para si aquele sentimento que, com os anos, foi esmaecendo em seu coração triste.
Agora, lá estaria ela, resolveu ir. E foi o primeiro a chegar. Ela foi a última, quase duas horas depois, horas de inquietação e sofrimento, dor no estômago, boca ruim, esperando.
E quando entrou, ah, quando entrou, ele quase desmaiou. Estava ainda mais bela, mais madura, o mesmo sorriso alucinante escurecendo tudo, eclipse total!
Beijou um por um e, quando chegou a ele, parou mais do que com os outros, olhou-o longamente e disse: "Juca, Juca, quanta saudade! Hoje, passado todo esse tempo, tenho coragem de dizer algo que nunca contei a ninguém: eu era loucamente apaixonada por você! Admirava seu jeito simples, seu silêncio recatado, sua distância prudente, sua superioridade em relação aos mundanismos da nossa juventude."
"Achava lindos seus olhos sem cor definida, seus cabelos castanhos ondulados, seu modo discreto de se vestir... Ah, sofri com seu desprezo todo o curso. E só me casei depois que soube que você tinha se casado porque perdi de vez todas as esperanças. Enfim, a vida é assim mesmo, né?"
"Agora tudo passou, e estou feliz de encontrar a turma toda. Bom, achei que você devia saber disso. Aliás, depois que enviuvei há três anos, organizei toda a papelada lá em casa, e montei um álbum com nossas fotos, tem muitas suas. Você não quer ir ver? Não vou amolar você. Vai, quando puder, se quiser..." E saiu, beijando os outros, para cada um uma palavra doce, gentil, uma princesa.
Ele ficou ali, perplexo, aturdido, interditado. Loucura, pura loucura. E resolveu ir depois do Ano-Novo, corrigir esse erro terrível. Ia recuperar a vida desperdiçada até ali.

ROBERTO RODRIGUES, 67, coordenador do Centro de Agronegócio da FGV, presidente do Conselho Superior do Agronegócio da Fiesp e professor do Depto. de Economia Rural da Unesp - Jaboticabal, foi ministro da Agricultura (governo Lula). Escreve aos sábados, a cada 15 dias, nesta coluna.

rr.ceres@uol.com.br

AMANHÃ EM MERCADO:
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