São Paulo, sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Morar mundo

Brincando de casona

Pesquisadores tentam preservar as casas Sears, que os operários do pós-Primeira Guerra compravam por catálogo, recebiam por trem e montavam como um quebra-cabeças

por SÉRGIO DÁVILA, de Washington

Em 1925, depois de ter juntando dinheiro suficiente fazendo o que fazia melhor -arrumar vazamentos nas casas dos bacanas em Washington-, o encanador Jesse Robert Baltimore achou que era a sua vez. Finalmente mandou por correio o dinheiro de entrada para uma casa da Sears, que estava namorando havia alguns meses no catálogo da então maior loja de departamentos dos Estados Unidos, que vendia de agulha a... Bem, a casas. Pré-fabricadas e desmontadas, vinham em vários modelos.

A que Baltimore escolheu chegou em 10 mil partes e um manual de instruções de 77 páginas. Teve de ser buscada na estação de trem, onde ocupava um vagão inteiro, incluindo 122 litros de tinta e verniz e 340 quilos de pregos. Era o modelo Fullerton, batizado a partir do tipo de arquitetura comum na cidade californiana homônima, conhecida por ser sede das guitarras Fender e berço da cena punk hardcore de Orange County, de onde saíram bandas como Agent Orange.

Assobradada, tinha cozinha, sala de estar, sala de jantar e varanda no primeiro andar e três quartos e um banheiro no segundo, num total de 180 m2. A planta fornecida pela empresa para o modelo "3205X", como era chamado internamente, sugeria locais para a colocação do gramofone, do piano e uma moderna "parede para o telefone", caso o comprador tivesse dinheiro suficiente. Acabamento de gesso, janelas antitempestade e telas antimosquito eram opcionais e cobrados à parte.

Em três meses e com a ajuda de amigos e familiares, o habilidoso encanador colocou a casa em pé. O produto final ocupava um lote que ele havia comprado no número 5.136 da Sherier Place, em Palisa-des, uma seção afastada da parte noroeste da capital federal. Pronta, valia cada centavo dos US$ 2.294 (R$ 49.300 em dinheiro de hoje) que custou a Jesse Baltimore.

Décadas depois, a casa ainda em ordem, os descendentes do encanador venderam o lugar para a Prefeitura de Washington -com a reorganização urbana, a região em torno virou um parque municipal. Hoje, abandonada e em péssimo estado, a Jesse Baltimore House, como ficou conhecida, virou o centro de uma briga que revelou uma tribo até então distante dos holofotes.

Vizinhos do local e freqüentadores do parque querem a casa demolida e a visão feia, apagada da memória. Preser-vacionistas querem que ela seja restaurada e mantida. É um símbolo, dizem, tanto do começo da ascensão da classe operária do pós-Primeira Guerra que viria a dar na classe média do pós-Segunda Guerra, hoje a espinha dorsal do país, quanto da engenhosidade norte-americana.

São os "caçadores das Casas Sears", colecionadores, arquitetos e urbanistas que correm o país atrás desses modelos pré-fabricados que ainda resistem em pé. Mais de 100 mil exemplares foram vendidos entre 1908 e 1940 pela empresa de Chicago, Illinois. Custavam entre US$ 650 e

US$ 2,2 mil (entre R$ 27 mil e R$ 104 mil atuais). Os 22 modelos originais cresceram para 447 combinações diferentes, no auge das vendas, nos anos 20 e 30 do século passado.

Havia a Fullerton, como a de Jesse Baltimore, mas também a sofisticada Ivanhoe, com portas francesas e janelas de vidro trabalhado, ou a Goldenrod, um chalé de três cômodos, sem banheiro, muito popular para famílias com terreno na praia. Há hoje 300 casas Sears na região de Washington e cerca de 70 mil espalhadas pelos Estados Unidos, acredita Rosemary Thornton, autora de dois livros sobre o tema, "The Houses That Sears Built" (As Casas que a Sears Construiu, Gentle Beam, 2002) e "Finding the Hou-ses That Sears Built" (A-chando as Casas que a Sears Construiu, Gen-tle Beam, 2004).

"Menos de 2% dessas foram descobertas até agora", contabiliza Thornton. Segun-do a estudiosa, a imensa maioria de moradores do que chama de tesouros arquitetônicos não sabe que mora numa casa que foi comprada desmontada por catálogo várias décadas atrás. São herdeiros ou segundos, terceiros e quartos compradores de casas que muitas vezes passaram por tantas reformas que perderam os traços originais. Mas a situação começa a mudar.

Alertados por reportagens e livros sobre o assunto, muitos estão pesquisando os documentos originais e procurando o site da empresa, que tem uma seção dedicada ao assunto e já lançou três livros sobre o tema, encomendados a estudiosos de arquitetura. Morar numa "casa Sears" virou símbolo de status, que atrai jovens casais endinheirados, dispostos a pagar bom dinheiro por elas.

Quanto à casa do encanador, que foi avaliada pelo Fisco americano em US$ 814 mil (R$ 1,47 milhão), a Prefeitura de Washington havia dado um prazo para que aparecessem candidatos a desmontar, fazer a mudança e restaurar a casa em outro terreno, fora do parque -uma operação estimada em US$ 150 mil (R$ 270 mil) por Mary Rows, da ONG Historic Washington Architecture, a mais ativa na briga pela conservação.

Na tarde do dia 20 de novembro, como nenhum voluntário apareceu, o Historic Preservation Review Board, uma espécie de Conde-phaat local, deliberou: a casa será demolida. Nada será colocado em seu lugar, nem uma placa. "Como não era nada histórico, estamos seguindo adiante", afirmou um funcionário.


Texto Anterior: Ao leitor
Próximo Texto: Capa: Lugares de cobiça
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.