São Paulo, sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

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Habitante

Ao longo da cicatriz

A arquitetura que o Minhocão e a degradação escondem

por JAYME SERVA

Na São Paulo que se descobre a pé, há um caminho que provoca sentimentos contraditórios. Trata-se do Minhocão, oficialmente elevado Presidente Costa e Silva, a imensa via elevada que brota dos subterrâneos da praça Roosevelt e desce no largo Padre Péricles, já na Barra Funda. Nos fins de semana, o trânsito de automóveis é proibido, e o elevado fica aberto para ciclistas, corredores, curiosos.

O que se vê, ao caminhar por ele, é uma São Paulo exuberante por baixo de um manto de degradação e abandono. No trecho que vai da rua da Consolação até o largo do Arouche, convivem edifícios como o General Jardim, na esquina da rua de mesmo nome, de linhas retas e influência moderna, com pequenos prédios de três a cinco pavimentos, entre os quais se destaca, todo pintado de cor-de-rosa, explicitando seu nome, o Hotel de La Rose.

O viadutão corta um naco do Arouche, já começando a curva à esquerda que vai levá-lo até a avenida São João. Nessa intersecção, do lado esquerdo está, em estado de completa ruína e destelhado, o que foi um dia o Teatro das Nações. Em uma coluna, pintado toscamente à mão, o aviso: "Vende-se este imóvel". Do lado direito, poucos metros à frente, dois sobrados geminados de alvenaria aparente, cujo desenho lembra casas operárias inglesas. Sobre os telhados, duas chaminés parecem esperar a volta de Mary Poppins.

Na esquina da rua Apa com a avenida São João fica o edifício Porchat, projeto de 1942 do arquiteto Rino Levi. É, na verdade, um conjunto de quatro edifícios independentes, em que a implantação original, colocando cada um oblíquo em relação à rua, dá a noção de independência de cada unidade, mantendo inequívoca a composição do conjunto. Hoje, provavelmente, cada um é um condomínio autônomo, pintado e tratado de forma diversa, o que acabou por degradar a fachada.

Na esquina oposta, uma casa imita um pequeno castelo. Está totalmente destelhada, já sem reboco e até algumas seteiras estão faltando, o que deixa a fachada banguela. Um dia desses, cai.

Mas logo adiante vem mais uma estrela do trajeto: o edifício Pirineus, um "art-déco" que ainda mantém seu revestimento típico de massa e mica. O porte ainda se impõe, mesmo com a presença incômoda de meia dúzia de esquadrias de alumínio no lugar das antigas, de madeira.

Quando parece que já se viu tudo, uma fachada nos faz parar: é o Edifício Washing-ton, um prédio que, se não estivesse sob a manta do Minhocão, seria um dos metros quadrados mais cobiçados da cidade, com sua fachada curva e assimétrica, em contraste com um bris atrevido no meio, em linhas retas diagonais em concreto.

Os últimos metros da caminhada levam ao largo

Padre Péricles. O Minhocão quase invade a igreja de São Geraldo. É hora de voltar. No caminho, é inevitável perguntar quanto custaria a São Paulo desfazer aquilo. É uma controvérsia antiga, e sua solução não é simples. Mas o passeio ao menos faz imaginar o que a cidade seria sem mais essa cicatriz. JAYME SERVA é arquiteto.


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