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Minha História Dorothy Counts, 70

Orgulho e preconceito

Nos EUA dos anos 1950, ela desafiou a segregação racial, indo estudar numa escola para brancos; enfrentou insultos, obteve um diploma e se tornou um símbolo das conquistas em direitos civis

LUCIANA COELHO
ENVIADA ESPECIAL A CHARLOTTE (CAROLINA DO NORTE)

RESUMO

Dorothy Counts tinha 15 anos quando se tornou a primeira menina negra no colégio Harding, em Charlotte, sul dos EUA. Era 4 de setembro de 1957, e a cidade tentava a integração racial. Por quatro dias, resistiu a pedras, cuspes e insultos. A provação a levaria a dedicar a vida à educação e viraria uma das imagens mais poderosas na luta pelos direitos civis que culminaria na eleição de Barack Obama.

Meus pais me inscreveram no colégio Harding com dois dos meus três irmãos, mas só eu fui chamada. A única menina negra naquela escola.

Meu pai era professor na Universidade Johnson C. Smith [majoritariamente negra] e pastor. Minha mãe se formou, mas era dona de casa.

Falávamos muito em família sobre educação e igualdade. Quando ofereceram [a integração escolar], meus pais hesitaram, mas sabíamos que alguém tinha de fazer aquilo.

Naquela manhã, meu pai me levou. A rua estava interditada, ele foi procurar vaga e pediu a um amigo para me acompanhar. Quando vi tanta gente, nem pensei nada.

Souberam pelo jornal que quatro negros haviam sido selecionados para escolas brancas, e uma mulher de um tal de Conselho Branco pediu que impedissem a integração.

Ela incitou os alunos a me barrarem e a cuspirem em mim. Eles obedeceram. Adultos e crianças foram ao local só para isso. Mas eu sabia que estava lá por uma razão.

Mantive a cabeça erguida e entrei.

Sentei sozinha no auditório, e muito do que me fizeram foi pelas costas. Não houve preparação para me receber. Meu armário era junto à sala do diretor, e muita coisa aconteceu ali. Ele nunca interveio, nem os professores.

Minha carteira era no fundo da sala. Eu era ignorada.

Fui à escola quatro dias. Após cada um, meus pais perguntavam se eu voltaria. Eu dizia que amanhã seria melhor, e [todos] veriam que eu era como eles, só de outra cor.

No terceiro dia, uma menina que se aproximara na véspera me ignorou, ameaçada.

No quarto, garotos cuspiram na minha comida. Depois, ao mexer no armário, senti um apagador atingir minhas costas e algo afiado pegar a nuca. Empurrões e xingamento eu aguentaria; mas aquilo era violência física.

Ao sair, vi no carro o meu irmão. O vidro fora estilhaçado. Tive medo pela primeira vez -minha família era alvo.

Meu pai ligou para a polícia e para o superintendente escolar, que lhe disse desconhecer o problema. Isso o levou a me tirar de Harding- eu ia lá para receber educação, e não estava recebendo.

Em Charlotte, havia segregação, mas era a norma, não pensávamos a respeito. Crescemos sabendo que não podíamos ir a alguns cinemas e restaurantes. O que houve na escola, porém, era inédito.

Só uma pessoa me pediu desculpas de verdade. Um ano antes do 50º aniversário do episódio, conheci um menino da foto, Woody Cooper. Mais duas pessoas me procuraram. Só ele virou amigo.

Woody me mandou um e-mail após ler uma reportagem sobre mim no jornal local. Ele disse que se sentia mal e queria ter intervindo naquele dia.

Levei dias para responder. Continuamos a nos corresponder por seis meses, até que ele me convidou para jantar com a mulher.

Ficamos muito amigos; ele morreu no ano passado. Eu dizia que crescemos em culturas distintas, e que era a hora certa de fazermos [os negros] aquilo, mas eles [brancos] não estavam preparados.

Fazia só três anos que a Justiça declarara a segregação nas escolas inconstitucional.

Depois daquilo, a integração foi interrompida aqui. Foi um vexame, a foto rodou o mundo e despertou um debate para melhorar as coisas.

Minha experiência em Harding moldou minha vida.

Eu me formei em psicologia, queria fazer algo que ajudasse famílias. Após [o incidente], passei um ano na Filadélfia com meus tios para frequentar a escola integrada -meus pais achavam importante eu não pensar que o mundo era como em Harding.

Depois fui para um colégio interno feminino em Asheville, no oeste da Carolina do Norte, onde as alunas eram negras, e os professores, mistos. Resolvi estudar na Johnson C. Smith, aqui. Em 1964, formada, fui para Nova York.

Trabalhei em um albergue para crianças abusadas e dei aulas em uma escola infantil até decidir voltar a Charlotte, onde continuei em educação.Queria que nenhuma criança sofresse o que eu sofri.

Você não tem ideia do que senti quando [Barack] Obama foi eleito. Naquela noite, decidi esperar os resultados em casa. Queria estar só.

Há 55 anos, não achava que veria isso. Não que eu pensasse que não podíamos, mas é que ele [Obama] é fenomenal, se preocupa com as pessoas como eu me preocupo. Herdou uma bagunça, queria que ninguém achasse que ele ia consertar em só quatro anos.

Se esperam mais dele por ser negro? Com certeza, isso explica parte [da frustração].

A identidade negra está mais proeminente hoje. Após a integração, alguns negros acharam que para avançar teriam de deixá-la. Mas há 20 anos ela voltou a ter força.

Meu irmão pesquisou nossas origens. Minha família é muito misturada. Mas sei quem eu sou. Sou uma mulher negra e orgulhosa.

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