São Paulo, domingo, 01 de fevereiro de 2004

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Inexpressivo, "JFK" tenta se vender como bom rapaz

DA REPORTAGEM LOCAL

A grande surpresa em torno de John Forbes Kerry está no fato de um político um tanto inexpressivo ter saído na dianteira da investidura democrata para disputar a sucessão presidencial americana.
Kerry, 60, não é um grande orador. Não desperta paixões ideológicas. Seus 18 anos como senador de Massachusetts são marcados por ziguezagues que seus adversários de partido mencionam como provas um tanto patéticas de hesitação e incoerência.
Mas ele é alguém de extremo glamour para os padrões dos Estados Unidos. Se o país respeita os ricos e bem-nascidos, Kerry é propriamente retratado como filho de um diplomata e descendente por parte de mãe da família Forbes.
Ou então como marido de Teresa, nascida cidadã portuguesa em Moçambique e viúva do senador republicano John Heinz, de quem herdou uma fortuna de US$ 500 milhões e ainda um sobrenome mundialmente associado à empresa familiar que produz temperos e ketchup.
Se os Estados Unidos lidam de forma ambígua com a memória do Vietnã, Kerry satisfaz partidários e adversários daquela guerra.
Aos primeiros exibe o currículo de oficial da Marinha condecorado e ferido três vezes em operações no delta do Mekong.
Aos segundos, sua militância contra o conflito que o levou a depor aos 28 anos numa comissão do Congresso ou a organizar, em 1971, uma manifestação em Washington de veteranos pacifistas.
Kerry ainda enquadra sua biografia em duas outras vertentes de sucesso amplamente reconhecidas. É culto -fala correntemente alemão e francês, foi interno na Suíça e se formou em ciências políticas e direito por Yale- e teve a oportunidade, como procurador de Massachusetts, de combater o crime organizado.

As iniciais JFK
Por fim, para quem gosta de coincidências mundanas, Kerry se sobressai por ter as mesmas iniciais que John Fitzgerald Kennedy, ser como ele católico e como ele usar o Senado de trampolim para a Casa Branca, o que é raro na história eleitoral de seu país. Em tempo: o clã Kennedy apóia sua candidatura.
O senador democrata que venceu o caucus de Iowa e as primárias de New Hampshire, as duas primeiras etapas do processo de escolha do candidato que disputará as eleições de novembro com o republicano George W. Bush, é um grandalhão cabeludo de queixo proeminente, que gosta de guitarra elétrica, de windsurf e de andar de motocicleta.
Entrou na campanha sem apoio financeiro importante. Hipotecou sua casa, em Boston, para levantar um empréstimo bancário. Com certeza não precisava disso. Mas foi o suficiente para revelar que sua casa vale, por baixo, US$ 6,4 milhões. Pouquíssimos milionários americanos moram tão bem.
Vejamos sua biografia política, documentada por seus quatro mandatos de senador.
De forma sutil, o jornal "The New York Times" traz um balanço que o atrela aos votos de seu companheiro de bancada, o também democrata de Massachusetts Edward Kennedy. O que nem sempre ocorreu.
John Kerry votou contra a Guerra do Golfo, em 1991, que era quase consensual. Votou no entanto a favor da Guerra do Iraque, que foi no ano passado bem mais controvertida.
Criou com isso um calcanhar-de-aquiles sobre o qual seus adversários democratas procuram capitalizar e que os republicanos registram para usar futuramente como munição.
No início dos anos 90, Kerry defendeu, com o fim da Guerra Fria, o desmantelamento parcial da CIA, mas, após o 11 de Setembro, criticou a administração Bush por sua baixa confiabilidade nos setores de espionagem e inteligência.
Defendeu, contra os sindicatos pró-democratas, a redução das verbas federais para os salários dos professores do ensino público e o favorecimento de entidades filantrópicas religiosas na pré-escola.
Criticou ainda a ação afirmativa. Nos três pontos se comportou como um conservador.
Fez o mesmo ao achar razoável derrubar aviões "suspeitos" de transportar drogas para os EUA ou ao passar a apoiar pena de morte para terroristas.
Aliás, o Patriot Act, considerado pelos liberais norte-americanos como uma clara ameaça aos direitos civis e humanos, foi aprovado com o voto de Kerry.
Entre suas coerências, há sua defesa constante da minoria gay e do direito ao aborto. Seus votos em questões ambientais o fizeram merecedor de uma nota 96 de um dos lobbies da área. Com relação aos projetos trabalhistas, ele ganhou nota 90 da confederação sindical AFL-CIO.
O principal lobby da direita no Congresso, a União Conservadora Americana, deu a ele apenas nota 6, numa escala de 0 a 100.
Kerry tem sido também bem-sucedido ao criticar a atual administração por ter instituído "duas Américas": a primeira, que se enriquece mais ainda ao se beneficiar com a redução de impostos; e a segunda, que se empobrece com a redução dos programas sociais e os efeitos do déficit fiscal.
Os jornais europeus destacam as críticas mais recentes de Kerry à política externa do presidente George W. Bush. "Precisamos de nossos aliados para enfrentar um tipo de ameaça que nunca esteve tão forte", disse em fins do ano passado. Semanas depois qualificaria a política da atual administração americana de "a mais arrogante e ideologicamente inepta da história moderna".
Um de seus documentos de campanha reforça a idéia de que os Estados Unidos devem exercer a liderança mundial, por meio de "um internacionalismo progressivo que amplie a liberdade e a prosperidade" internacionais.

Propostas vagas
O site da campanha de Kerry traz propostas que dificilmente um norte-americano de bom senso poderia recusar. Mas elas são vagas, vaporosas.
Promete criar 3 milhões de empregos em seus primeiros 500 dias de governo. Quer, no Iraque, reverter um quadro dentro do qual os Estados Unidos "ganharam a guerra e perderam a paz".
Quer que a assistência à saúde beneficie as famílias e não os laboratórios farmacêuticos. Ou, por fim, melhorar o ensino público, por meio da redução das classes e da melhor qualificação dos docentes.
O fato é que o eleitorado norte-americano é mais sensível às imagens que aos conteúdos das plataformas políticas.
Kerry está rodeado de uma equipe competente para trabalhar sua própria imagem de "bom rapaz", que beija a mulher e as duas filhas diante dos fotógrafos, que abraça com carinho os três enteados e diz se considerar o verdadeiro avô do único neto de Teresa, sua mulher.
Detalhe curioso: ambos se conheciam antes do acidente aéreo que matou o primeiro marido de Teresa. Mas se encontraram de verdade no Brasil, durante a Eco-92. Começaram a namorar no ano seguinte.
Teresa é uma peça fundamental nos ingredientes que formam a imagem de Kerry. Ela é responsável pela gestão do cerca de US$ 1 bilhão que abastece duas fundações criadas pela família Heinz, reputadas como competentes entre centenas de milhares de ONGs norte-americanas em seus programas de estímulo à educação e financiamento de programas de defesa do ambiente.
(JOÃO BATISTA NATALI)


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