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Inexpressivo, "JFK" tenta se vender como bom rapaz
DA REPORTAGEM LOCAL
A grande surpresa em torno de
John Forbes Kerry está no fato de
um político um tanto inexpressivo ter saído na dianteira da investidura democrata para disputar a
sucessão presidencial americana.
Kerry, 60, não é um grande orador. Não desperta paixões ideológicas. Seus 18 anos como senador
de Massachusetts são marcados
por ziguezagues que seus adversários de partido mencionam como provas um tanto patéticas de
hesitação e incoerência.
Mas ele é alguém de extremo
glamour para os padrões dos Estados Unidos. Se o país respeita os
ricos e bem-nascidos, Kerry é
propriamente retratado como filho de um diplomata e descendente por parte de mãe da família
Forbes.
Ou então como marido de Teresa, nascida cidadã portuguesa em
Moçambique e viúva do senador
republicano John Heinz, de quem
herdou uma fortuna de US$ 500
milhões e ainda um sobrenome
mundialmente associado à empresa familiar que produz temperos e ketchup.
Se os Estados Unidos lidam de
forma ambígua com a memória
do Vietnã, Kerry satisfaz partidários e adversários daquela guerra.
Aos primeiros exibe o currículo
de oficial da Marinha condecorado e ferido três vezes em operações no delta do Mekong.
Aos segundos, sua militância
contra o conflito que o levou a depor aos 28 anos numa comissão
do Congresso ou a organizar, em
1971, uma manifestação em Washington de veteranos pacifistas.
Kerry ainda enquadra sua biografia em duas outras vertentes de
sucesso amplamente reconhecidas. É culto -fala correntemente
alemão e francês, foi interno na
Suíça e se formou em ciências políticas e direito por Yale- e teve a
oportunidade, como procurador
de Massachusetts, de combater o
crime organizado.
As iniciais JFK
Por fim, para quem gosta de
coincidências mundanas, Kerry
se sobressai por ter as mesmas
iniciais que John Fitzgerald Kennedy, ser como ele católico e como ele usar o Senado de trampolim para a Casa Branca, o que é raro na história eleitoral de seu país.
Em tempo: o clã Kennedy apóia
sua candidatura.
O senador democrata que venceu o caucus de Iowa e as primárias de New Hampshire, as duas
primeiras etapas do processo de
escolha do candidato que disputará as eleições de novembro com
o republicano George W. Bush, é
um grandalhão cabeludo de queixo proeminente, que gosta de guitarra elétrica, de windsurf e de andar de motocicleta.
Entrou na campanha sem apoio
financeiro importante. Hipotecou
sua casa, em Boston, para levantar
um empréstimo bancário. Com
certeza não precisava disso. Mas
foi o suficiente para revelar que
sua casa vale,
por baixo, US$
6,4 milhões.
Pouquíssimos
milionários
americanos
moram tão
bem.
Vejamos sua
biografia política, documentada por seus
quatro mandatos de senador.
De forma sutil, o jornal
"The New
York Times"
traz um balanço que o atrela
aos votos de seu companheiro de
bancada, o também democrata de
Massachusetts Edward Kennedy.
O que nem sempre ocorreu.
John Kerry votou contra a
Guerra do Golfo, em 1991, que era
quase consensual. Votou no entanto a favor da Guerra do Iraque,
que foi no ano passado bem mais
controvertida.
Criou com isso um calcanhar-de-aquiles sobre o qual seus adversários democratas procuram
capitalizar e que os republicanos
registram para usar futuramente
como munição.
No início dos anos 90, Kerry defendeu, com o fim da Guerra Fria,
o desmantelamento parcial da
CIA, mas, após o 11 de Setembro,
criticou a administração Bush por
sua baixa confiabilidade nos setores de espionagem e inteligência.
Defendeu,
contra os sindicatos pró-democratas, a redução das verbas federais
para os salários
dos professores do ensino
público e o favorecimento
de entidades filantrópicas religiosas na pré-escola.
Criticou ainda a ação afirmativa. Nos
três pontos se
comportou como um conservador.
Fez o mesmo ao achar razoável
derrubar aviões "suspeitos" de
transportar drogas para os EUA
ou ao passar a apoiar pena de
morte para terroristas.
Aliás, o Patriot Act, considerado
pelos liberais norte-americanos
como uma clara ameaça aos direitos civis e humanos, foi aprovado
com o voto de Kerry.
Entre suas coerências, há sua
defesa constante da minoria gay e
do direito ao aborto. Seus votos
em questões ambientais o fizeram
merecedor de uma nota 96 de um
dos lobbies da área. Com relação
aos projetos trabalhistas, ele ganhou nota 90 da confederação
sindical AFL-CIO.
O principal lobby da direita no
Congresso, a União Conservadora Americana, deu a ele apenas
nota 6, numa escala de 0 a 100.
Kerry tem sido também bem-sucedido ao criticar a atual administração por ter instituído "duas
Américas": a primeira, que se
enriquece mais ainda ao se beneficiar com a redução de impostos;
e a segunda, que se empobrece
com a redução dos programas sociais e os efeitos do déficit fiscal.
Os jornais europeus destacam
as críticas mais recentes de Kerry
à política externa do presidente
George W. Bush. "Precisamos de
nossos aliados para enfrentar um
tipo de ameaça que nunca esteve
tão forte", disse em fins do ano
passado. Semanas depois qualificaria a política da atual administração americana de "a mais arrogante e ideologicamente inepta da
história moderna".
Um de seus documentos de
campanha reforça a idéia de que
os Estados Unidos devem exercer
a liderança mundial, por meio de
"um internacionalismo progressivo que amplie a liberdade e a
prosperidade" internacionais.
Propostas vagas
O site da campanha de Kerry
traz propostas que dificilmente
um norte-americano de bom senso poderia recusar. Mas elas são
vagas, vaporosas.
Promete criar 3 milhões de empregos em seus primeiros 500 dias
de governo. Quer, no Iraque, reverter um quadro dentro do qual
os Estados Unidos "ganharam a
guerra e perderam a paz".
Quer que a assistência à saúde
beneficie as famílias e não os laboratórios farmacêuticos. Ou, por
fim, melhorar o ensino público,
por meio da redução das classes e
da melhor qualificação dos docentes.
O fato é que o eleitorado norte-americano é mais sensível às imagens que aos conteúdos das plataformas políticas.
Kerry está rodeado de uma
equipe competente para trabalhar
sua própria imagem de "bom rapaz", que beija a mulher e as duas
filhas diante dos fotógrafos, que
abraça com carinho os três enteados e diz se considerar o verdadeiro avô do único neto de Teresa,
sua mulher.
Detalhe curioso: ambos se conheciam antes do acidente aéreo
que matou o primeiro marido de
Teresa. Mas se encontraram de
verdade no Brasil, durante a Eco-92. Começaram a namorar no
ano seguinte.
Teresa é uma peça fundamental
nos ingredientes que formam a
imagem de Kerry. Ela é responsável pela gestão do cerca de US$ 1
bilhão que abastece duas fundações criadas pela família Heinz,
reputadas como competentes entre centenas de milhares de ONGs
norte-americanas em seus programas de estímulo à educação e
financiamento de programas de
defesa do ambiente.
(JOÃO BATISTA NATALI)
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