São Paulo, sábado, 01 de outubro de 2005

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CRIME

Em dez anos, 350 foram mortas na região de Ciudad Juarez, em caso que envolve ainda condenação de inocentes e corrupção

Massacre de mulheres é pesadelo no México

GINGER THOMPSON
DO "NEW YORK TIMES", EM CIUDAD JUÁREZ

Víctor Javier García ainda tem uma dúzia de marcas no seu abdômen e em seus genitais, deixadas pelos cigarros em brasa usados pela polícia para torturá-lo para que fizesse uma confissão falsa, afirmando ser serial killer.
Não fez diferença para o juiz que os exames de DNA com os corpos identificados como sendo de suas vítimas tivessem sido inconclusivos. Ou que um especialista forense, em depoimento, tivesse declarado ter sido instruído por seus superiores a plantar provas. Ou mesmo que algumas testemunhas tivessem desmentido seus depoimentos, dizendo que a polícia as obrigara a prestar falso testemunho. Apesar de tudo isso, Garcia foi condenado a 50 anos.
Em junho, a Suprema Corte do Estado de Chihuahua, no México, invalidou o julgamento e libertou Garcia, mas ele já passara três anos e meio na prisão, tempo durante o qual perdeu sua empresa, suas economias e sua mulher, que o deixou para viver com outro.
"Imagine isso", disse ele, esforçando-se para conter as lágrimas. "Em todo lugar aonde ela ia, era olhada como se fosse casada com um criminoso hediondo, sendo que os verdadeiros criminosos estavam soltos. Ainda estão."
Garcia não é o único. Observadores internacionais, militantes dos direitos humanos e autoridades federais dizem que o exemplo dele ilustra um padrão preocupante de má conduta da parte das autoridades responsáveis por investigar o caso de assassinatos mais misterioso do México: a morte de mais de 350 mulheres nos últimos dez anos na região de Ciudad Juárez, que faz fronteira com os EUA, incluindo ao menos 90 vítimas estupradas e mortas de forma similar.
Seja por incompetência, corrupção ou alguma conexão com as mortes, os erros absurdos e acobertamentos nas apurações são tantos, dizem investigadores federais, que a polícia e outras autoridades passaram a ser suspeitas de vínculo com os crimes.
"A pergunta que eu e muitas outras pessoas nos fazemos", disse Guadalupe Morfín, a enviada especial do presidente Vicente Fox a Ciudad Juárez, "é por que razão as autoridades se deram a tanto trabalho para inventar argumentos contra algumas pessoas? Talvez tenha sido por incompetência. Ou, quem sabe, porque não queriam ser expostas, elas próprias."
Numa mudança de rumo feita sem alarde, um novo grupo de autoridades estaduais começa a tomar medidas para corrigir erros, reabrindo mais de cem processos. Eles convocaram especialistas forenses argentinos para exumar corpos não identificados e recuperar outros em necrotérios, submetendo-os depois a exames de DNA. A invalidação do julgamento de García também se deve a essa nova determinação de examinar provas com mais cuidado.
Quase todos, porém, concordam que os problemas em torno das investigações são profundos e estão longe de ser conhecidos.
Funcionários nomeados pelo presidente mexicano há dois anos para rever os casos alegam que as autoridades estaduais não trataram as mortes com a seriedade necessária, deixaram de instituir buscas por mulheres desaparecidas em tempo de salvá-las, falsificaram evidências e usaram a tortura para obter confissões.
Seus atos, disseram esses funcionários, visaram não apenas evitar um pesadelo de relações públicas criado em função do aumento das pressões internacionais por uma solução, mas também proteger muitos dos suspeitos de envolvimento nas mortes, incluindo autoridades policiais corruptas, poderosos traficantes de drogas e outras quadrilhas.
Críticos do governo estadual dizem que os acobertamentos criaram um segundo ciclo de injustiça e atrasaram as investigações em anos. O governo criou um fundo de US$ 30 milhões para as famílias dos mortos. Parte da opinião pública quer que os falsamente acusados também recebam. Por ora, porém, esse grupo tem pouca chance de pedir indenização, mesmo aos tribunais.
Enquanto isso, há indícios crescentes de que os assassinatos em série já chegam a cidades como Chihuahua, Toluca, um subúrbio da Cidade do México, Veracruz, na costa do Golfo, e Tuxtla Gutiérrez, em Chiapas. O procurador-geral, Daniel Cabeza de Vaca, diz que pode criar uma promotoria especial para o caso.
Com cerca de 1,3 milhão de habitantes, Ciudad Juárez é considerada a mais violenta do país. Segundo o governo federal, é dominada pelo crime organizado, sobretudo quadrilhas de tráfico de drogas e de prostituição acobertadas por autoridades corruptas.
Os desaparecimentos e mortes violentas de meninas e mulheres continuam a ocorrer com freqüência duas vezes superior ao resto do país. Ao menos 36 mulheres e meninas foram mortas em Ciudad Juárez e em Chihuahua desde o início de 2004, segundo dados compilados nos EUA. Pessoas provavelmente inocentes continuam presas por muitos dos crimes, com base em pouco mais do que confissões que dizem ter sido obtidas sob tortura. Enquanto isso, as autoridades responsáveis por levá-las à prisão continuam soltas, como ainda estão os responsáveis pelos assassinatos.
Guadalupe Morfín disse que a revisão de casos como o de Víctor García começa a trazer à tona corrupção e abusos em altos escalões, implicando o ex-procurador do Estado Jesús José Solís Silva e o ex-delegado geral da polícia estadual Vicente González García.
Os dois renunciaram a seus cargos em 2004, após a descoberta dos corpos de 12 homens, que se acredita tenham sido mortos em confrontos ligados ao tráfico, em casa na periferia de Ciudad Juárez. Autoridades federais prenderam ao menos 12 policiais estaduais em conexão com as mortes.
Patricia González, a procuradora-geral de Chihuahua, rejeitou as acusações de que as autoridades estaduais falsificaram as investigações, dizendo que a maioria dos problemas que constatou eram por treinamento insuficiente e uso de equipamentos antiquados. De acordo com ela, as mortes de mulheres na região da fronteira foram por violência doméstica, e não obra de serial killers. González disse que, com uma ajuda de US$ 5 milhões dos EUA, a polícia e os promotores já começam a passar por novos treinamentos.
Mesmo assim, ela reconheceu que dezenas de processos estavam tão repletos de erros que seu escritório os está recomeçando a analisar do zero e concordou em pedir a ajuda da equipe argentina.
Segundo González, os exames anteriores foram tão repletos de falhas que muitas famílias nem sequer têm certeza se os restos mortais que enterraram eram de seus entes queridos. Ela disse que essas famílias se sentem tão desprezadas e abusadas pelas autoridades que deixaram de cooperar.


Tradução de Clara Allain

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