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CRIME
Em dez anos, 350 foram mortas na região de Ciudad Juarez, em caso que envolve ainda condenação de inocentes e corrupção
Massacre de mulheres é pesadelo no México
GINGER THOMPSON
DO "NEW YORK TIMES", EM CIUDAD JUÁREZ
Víctor Javier García ainda tem
uma dúzia de marcas no seu abdômen e em seus genitais, deixadas pelos cigarros em brasa usados pela polícia para torturá-lo
para que fizesse uma confissão
falsa, afirmando ser serial killer.
Não fez diferença para o juiz
que os exames de DNA com os
corpos identificados como sendo
de suas vítimas tivessem sido inconclusivos. Ou que um especialista forense, em depoimento, tivesse declarado ter sido instruído
por seus superiores a plantar provas. Ou mesmo que algumas testemunhas tivessem desmentido
seus depoimentos, dizendo que a
polícia as obrigara a prestar falso
testemunho. Apesar de tudo isso,
Garcia foi condenado a 50 anos.
Em junho, a Suprema Corte do
Estado de Chihuahua, no México,
invalidou o julgamento e libertou
Garcia, mas ele já passara três
anos e meio na prisão, tempo durante o qual perdeu sua empresa,
suas economias e sua mulher, que
o deixou para viver com outro.
"Imagine isso", disse ele, esforçando-se para conter as lágrimas.
"Em todo lugar aonde ela ia, era
olhada como se fosse casada com
um criminoso hediondo, sendo
que os verdadeiros criminosos estavam soltos. Ainda estão."
Garcia não é o único. Observadores internacionais, militantes
dos direitos humanos e autoridades federais dizem
que o exemplo dele ilustra um padrão preocupante
de má conduta da
parte das autoridades responsáveis por investigar
o caso de assassinatos mais misterioso do México: a
morte de mais de
350 mulheres nos
últimos dez anos
na região de Ciudad Juárez, que
faz fronteira com os EUA, incluindo ao menos 90 vítimas estupradas e mortas de forma similar.
Seja por incompetência, corrupção ou alguma conexão com
as mortes, os erros absurdos e
acobertamentos nas apurações
são tantos, dizem investigadores
federais, que a polícia e outras autoridades passaram a ser suspeitas de vínculo com os crimes.
"A pergunta que eu e muitas outras pessoas nos fazemos", disse
Guadalupe Morfín, a enviada especial do presidente Vicente Fox a
Ciudad Juárez, "é por que razão as
autoridades se deram a tanto trabalho para inventar argumentos
contra algumas pessoas? Talvez
tenha sido por incompetência.
Ou, quem sabe, porque não queriam ser expostas, elas próprias."
Numa mudança de rumo feita
sem alarde, um novo grupo de autoridades estaduais começa a tomar medidas para corrigir erros,
reabrindo mais de cem processos.
Eles convocaram especialistas forenses argentinos para exumar
corpos não identificados e recuperar outros em necrotérios, submetendo-os depois a exames de
DNA. A invalidação do julgamento de García também se deve a essa nova determinação de examinar provas com mais cuidado.
Quase todos, porém, concordam que os problemas em torno
das investigações são profundos e
estão longe de ser conhecidos.
Funcionários nomeados pelo
presidente mexicano há dois anos
para rever os casos alegam que as
autoridades estaduais não trataram as mortes com a seriedade
necessária, deixaram de instituir
buscas por mulheres desaparecidas em tempo de salvá-las, falsificaram evidências e usaram a tortura para obter confissões.
Seus atos, disseram esses funcionários, visaram não apenas
evitar um pesadelo de relações
públicas criado em função do aumento das pressões internacionais por uma solução, mas também proteger muitos dos suspeitos de envolvimento nas mortes,
incluindo autoridades policiais
corruptas, poderosos traficantes
de drogas e outras quadrilhas.
Críticos do governo estadual dizem que os acobertamentos criaram um segundo ciclo de injustiça
e atrasaram as investigações em
anos. O governo criou um fundo
de US$ 30 milhões para as famílias dos mortos. Parte da opinião
pública quer que os falsamente
acusados também recebam. Por
ora, porém, esse grupo tem pouca
chance de pedir
indenização, mesmo aos tribunais.
Enquanto isso,
há indícios crescentes de que os
assassinatos em
série já chegam a
cidades como
Chihuahua, Toluca, um subúrbio
da Cidade do México, Veracruz, na
costa do Golfo, e
Tuxtla Gutiérrez,
em Chiapas. O
procurador-geral, Daniel Cabeza
de Vaca, diz que pode criar uma
promotoria especial para o caso.
Com cerca de 1,3 milhão de habitantes, Ciudad Juárez é considerada a mais violenta do país. Segundo o governo federal, é dominada pelo crime organizado, sobretudo quadrilhas de tráfico de
drogas e de prostituição acobertadas por autoridades corruptas.
Os desaparecimentos e mortes
violentas de meninas e mulheres
continuam a ocorrer com freqüência duas vezes superior ao
resto do país. Ao menos 36 mulheres e meninas foram mortas
em Ciudad Juárez e em Chihuahua desde o início de 2004, segundo dados compilados nos EUA.
Pessoas provavelmente inocentes
continuam presas por muitos dos
crimes, com base em pouco mais
do que confissões que dizem ter
sido obtidas sob tortura. Enquanto isso, as autoridades responsáveis por levá-las à prisão continuam soltas, como ainda estão os
responsáveis pelos assassinatos.
Guadalupe Morfín disse que a
revisão de casos como o de Víctor
García começa a trazer à tona corrupção e abusos em altos escalões,
implicando o ex-procurador do
Estado Jesús José Solís Silva e o
ex-delegado geral da polícia estadual Vicente González García.
Os dois renunciaram a seus cargos em 2004, após a descoberta
dos corpos de 12 homens, que se
acredita tenham sido mortos em
confrontos ligados ao tráfico, em
casa na periferia de Ciudad Juárez. Autoridades federais prenderam ao menos 12 policiais estaduais em conexão com as mortes.
Patricia González, a procuradora-geral de Chihuahua, rejeitou as
acusações de que as autoridades
estaduais falsificaram as investigações, dizendo que a maioria dos
problemas que constatou eram
por treinamento insuficiente e
uso de equipamentos antiquados.
De acordo com ela, as mortes de
mulheres na região da fronteira
foram por violência doméstica, e
não obra de serial killers. González disse que, com uma ajuda de
US$ 5 milhões dos EUA, a polícia
e os promotores já começam a
passar por novos treinamentos.
Mesmo assim, ela reconheceu
que dezenas de processos estavam tão repletos de erros que seu
escritório os está recomeçando a
analisar do zero e concordou em
pedir a ajuda da equipe argentina.
Segundo González, os exames
anteriores foram tão repletos de
falhas que muitas famílias nem
sequer têm certeza se os restos
mortais que enterraram eram de
seus entes queridos. Ela disse que
essas famílias se sentem tão desprezadas e abusadas pelas autoridades que deixaram de cooperar.
Tradução de Clara Allain
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