São Paulo, sábado, 01 de novembro de 2008

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EUA>>Por Contardo Calligaris: O voto mundial

O voto mundial


O mundo escolheu Obama porque a Terra é cada vez mais parecida com uma cidade só, e é preciso inventar uma razão de todos conviverem

ANTES DE deixar o aeroporto John F. Kennedy, fui até o novo terminal da American Airlines, onde, na área de venda de passagens, está instalado, desde 2007, o mural "Skyline do mundo", do arquiteto Matteo Pericoli.
O desenho (120 metros de comprimento) reúne as silhuetas de edifícios de Nova York e outras 70 cidades, de forma que eles pareçam fazer parte do "skyline" de uma única metrópole, que conteria a Ópera de Sidney, a torre Eiffel de Paris, as torres de Kuala Lumpur e por aí vai.
Na intenção da companhia aérea, o mural representa a variedade de destinações que estão ao alcance de seus clientes. Mas o mural me toca por ser um símbolo da essência da cidade moderna (da qual Nova York é um protótipo). Explico.
Desde o século 13, as cidades cresceram, reunindo miseráveis, nobres, burgueses, autóctones e estrangeiros (que, aliás, logo deixavam de ser estrangeiros). Elas realizavam assim o ideal moderno da cidadania de todos, por diferentes que fossem o status e a cultura de cada grupo e de cada um.
O truque para permitir a integração é simples: apesar do que nos separa, temos em comum a vontade de melhorar de vida, acumular riqueza etc.
Funcionou só por um tempo: quatro décadas atrás, cada grupo (se não cada indivíduo) começou a descobrir que, nessa transformação em "sujeito econômico", ele estava sacrificando sua identidade. Nasceu, não só nos EUA, a "política das identidades", pela qual, os grupos étnicos, por exemplo, deviam defender seus interesses específicos antes de considerar a existência possível de um interesse da comunidade.
Nos anos 1990, a política das identidades saiu de moda: era fácil aceitar que fôssemos todos, antes de qualquer coisa, "sujeitos econômicos", visto que todos (era essa a ilusão) ficaríamos ricos.
Hoje, os EUA (e o mundo) estão diante de um duplo impasse. Nossa transformação em "sujeitos econômicos" não garante riqueza nenhuma (podemos ser apenas consumidores pobres e frustrados) e, além disso, leva-nos a esquecer nossa identidade histórica e cultural. Por outro lado, a política das identidades nos priva da cidade comum na qual gostaríamos de morar, a do mural de Pericoli: habitaremos guetos, pobres ou de luxo, sem sermos nunca todos cidadãos.
Nesse contexto, a candidatura de Barak Obama é uma novidade radical. Obama é o candidato negro que não é o candidato dos negros, ou seja, é o membro de uma minoria que recusa a políticas das identidades. Claro, ele tem que propor valores comuns que dêem sentido à convivência de nossas diferenças; a promessa de bem-estar e riqueza não basta mais, e Obama faz apelo à solidariedade e ao sentimento comunitário. Algo assim: o que importa não é que, por diferentes que sejamos, todos possamos ficar ricos um dia, o que importa é que, por diferentes que sejamos, estamos no mesmo barco, numa comunidade de destino.
Circula na internet a notícia de que, se o mundo inteiro votasse, Obama seria presidente. Há um mapa indicando que, nesse caso, o único país que votaria McCain é o Iraque. A campanha de McCain tenta assim despertar a desconfiança dos eleitores: "Quem tem que escolher é a gente, não o pessoal lá fora".
De fato, o mundo escolheu Obama porque, como sugere o mural de Pericoli, a Terra é cada vez mais parecida com uma cidade só, e por isso é preciso inventar uma razão de todos conviverem que seja um pouco mais eficiente do que o sonho de enriquecer.
Em outras palavras, se muitos, pelo mundo afora, interessam-se pela eleição presidencial dos EUA, talvez não seja só porque querem "interferir" na eleição. É também porque 1) o problema decisivo dos EUA de hoje é igual ao que era colocado no lema das 13 colônias originárias, "E pluribus unum", como fazer uma coisa só a partir de muitos diferentes; 2) esse problema é hoje o problema do mundo.


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