São Paulo, sábado, 01 de dezembro de 2007

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ARTIGO

A África refletida no espelho da França

PHILIPPE BERNARD
DO "MONDE"

O escândalo da ONG Arca de Zoé [que no mês passado tentou levar para a adoção na França 103 crianças chadianas apresentadas como "órfãos de Darfur"] ilustrou plenamente, a ponto de torná-la caricata, a visão da África que impregna a sociedade francesa.
Como um espelho que deforma os objetos que reflete, a empreitada de Eric Breteau [diretor da ONG] e a disposição imediata de Nicolas Sarkozy em querer arrancar os acusados das mãos da Justiça chadiana refletem a hipocrisia de nossas relações com o continente negro. Em segundo plano, o caso traduz a batalha ideológica travada em torno de Darfur.
Como nos tempos das colônias, a África refletida pela Zoé é um continente cuja opinião não interessa em tempos normais -é demasiado desesperador e complicado-, mas que regularmente provoca manifestações de emoção. Vem daí a tentação de preparar um "golpe": buscar crianças apresentadas como sendo vítimas de guerra, visando denunciar a suposta indiferença da comunidade internacional em relação ao conflito de Darfur.

Terra de ninguém
Isso supõe que se veja a África como uma espécie de terra de ninguém onde os ocidentais podem agir como bem entendem, inclusive desrespeitando as regras que eles mesmos alegam promover. Torna-se possível então tomar crianças chadianas por crianças sudanesas de Darfur, filhos de famílias numerosas por órfãos, um país independente por uma zona sem leis. Como no imaginário colonial, os negros seriam crianças grandes, um pouco irresponsáveis, pelos quais se poderia fazer o bem mesmo que eles não o queiram, quando necessário lhes dando uma lição.
Em relação às crianças e suas migrações, o caso põe em evidência nossas próprias contradições. A sociedade francesa pode exigir exames de DNA para comprovar a filiação de crianças negras imigradas, ao mesmo tempo em que alguns de seus membros buscam junto a chefes de povoados outras crianças negras, sem preocupar-se com a existência ou não de seus pais.
Como se surpreender com o fato de tal cenário, para os africanos, evocar -mesmo que de maneira abusiva- o tráfico de negros, e de que seja explorado em detrimento da França? A "África de Zoé" simboliza também nossa dificuldade em compreender realmente o que se passa ao sul do Saara. Em admitir concretamente que o leste do Chade vive parcialmente em outro século. Que, como nos livros de Hugo ou Dickens, alguns pais são tão pobres que talvez sonhem em entregar seu filho, em troca de uma remuneração, a estranhos que lhe prometam um futuro melhor.

Hipocrisia
A incompreensão é reforçada pela hipocrisia de nosso diálogo com os africanos: o sentimento de culpa pós-colonial do qual esses últimos sabem abusar, os interesses econômicos e estratégicos, tudo isso impede a franqueza na relação bilateral. Nisso, a odisséia fracassada da Arca de Zoé aparece como revelador cruel.
A França ajudou Idriss Déby a chegar ao poder em 1990. Ela mantém em Ndjamena uma base militar com 1.100 homens que defende contra rebeliões o regime de Déby, em que a democracia tem pouco lugar. Na teoria, a França apóia um Estado soberano, porém frágil.
Mas a pouca confiança que a França sente na Justiça chadiana se manifesta quando franceses correm o risco de receber penas pesadas dessa Justiça. "Vou buscar os que ficaram lá, não importa o que eles tenham feito", prometeu Sarkozy na época, provocando escândalo entre os chadianos.
A última luz lançada pelo caso todo diz respeito à análise do conflito em Darfur. Eric Breteau se inspirou no discurso do coletivo Urgence Darfur, que apelou para que se "passe à ação". Antes de sua entrada no governo, Bernard Kouchner era uma das personalidades que transmitiram essa mensagem, ao lado de Bernard-Henri Lévy. Esse apelo defende a imposição de uma intervenção internacional no Sudão.
Diante dele, as organizações humanitárias como a Médicos Sem Fronteiras, do qual Ronny Brauman é ex-presidente, ou a Médicos do Mundo, cujas equipes trabalham em campo, rejeitam o que vêem como uma estratégia militar perigosa "à moda do Iraque". Em resposta, os defensores do Urgence Darfur afirmam que esses ativistas humanitários têm dificuldade em reconhecer a gravidade de um conflito em que o papel dos "bandidos" não seja representado pelos EUA. "Pró-americanos" contra "antiimperialistas", defensores da ação exclusivamente humanitária contra partidários de uma intervenção política ou mesmo militar, auxiliada pelos humanitários. Assim, a Arca de Zoé também veio reativar essa querela antiga entre "French doctors".


Tradução de CLARA ALLAIN


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