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ARTIGO
A África refletida no espelho da França
PHILIPPE BERNARD
DO "MONDE"
O escândalo da ONG Arca de
Zoé [que no mês passado tentou levar para a adoção na
França 103 crianças chadianas
apresentadas como "órfãos de
Darfur"] ilustrou plenamente,
a ponto de torná-la caricata, a
visão da África que impregna a
sociedade francesa.
Como um espelho que deforma os objetos que reflete, a empreitada de Eric Breteau [diretor da ONG] e a disposição imediata de Nicolas Sarkozy em
querer arrancar os acusados
das mãos da Justiça chadiana
refletem a hipocrisia de nossas
relações com o continente negro. Em segundo plano, o caso
traduz a batalha ideológica travada em torno de Darfur.
Como nos tempos das colônias, a África refletida pela Zoé
é um continente cuja opinião
não interessa em tempos normais -é demasiado desesperador e complicado-, mas que regularmente provoca manifestações de emoção. Vem daí a
tentação de preparar um "golpe": buscar crianças apresentadas como sendo vítimas de
guerra, visando denunciar a suposta indiferença da comunidade internacional em relação
ao conflito de Darfur.
Terra de ninguém
Isso supõe que se veja a África como uma espécie de terra
de ninguém onde os ocidentais
podem agir como bem entendem, inclusive desrespeitando
as regras que eles mesmos alegam promover.
Torna-se possível então tomar crianças chadianas por
crianças sudanesas de Darfur,
filhos de famílias numerosas
por órfãos, um país independente por uma zona sem leis.
Como no imaginário colonial, os negros seriam crianças
grandes, um pouco irresponsáveis, pelos quais se poderia fazer o bem mesmo que eles não
o queiram, quando necessário
lhes dando uma lição.
Em relação às crianças e suas
migrações, o caso põe em evidência nossas próprias contradições. A sociedade francesa
pode exigir exames de DNA para comprovar a filiação de
crianças negras imigradas, ao
mesmo tempo em que alguns
de seus membros buscam junto
a chefes de povoados outras
crianças negras, sem preocupar-se com a existência ou não
de seus pais.
Como se surpreender com o
fato de tal cenário, para os africanos, evocar -mesmo que de
maneira abusiva- o tráfico de
negros, e de que seja explorado
em detrimento da França?
A "África de Zoé" simboliza
também nossa dificuldade em
compreender realmente o que
se passa ao sul do Saara. Em admitir concretamente que o leste do Chade vive parcialmente
em outro século. Que, como
nos livros de Hugo ou Dickens,
alguns pais são tão pobres que
talvez sonhem em entregar seu
filho, em troca de uma remuneração, a estranhos que lhe prometam um futuro melhor.
Hipocrisia
A incompreensão é reforçada
pela hipocrisia de nosso diálogo
com os africanos: o sentimento
de culpa pós-colonial do qual
esses últimos sabem abusar, os
interesses econômicos e estratégicos, tudo isso impede a
franqueza na relação bilateral.
Nisso, a odisséia fracassada da
Arca de Zoé aparece como revelador cruel.
A França ajudou Idriss Déby
a chegar ao poder em 1990. Ela
mantém em Ndjamena uma
base militar com 1.100 homens
que defende contra rebeliões o
regime de Déby, em que a democracia tem pouco lugar.
Na teoria, a França apóia um
Estado soberano, porém frágil.
Mas a pouca confiança que a
França sente na Justiça chadiana se manifesta quando franceses correm o risco de receber
penas pesadas dessa Justiça.
"Vou buscar os que ficaram lá,
não importa o que eles tenham
feito", prometeu Sarkozy na
época, provocando escândalo
entre os chadianos.
A última luz lançada pelo caso todo diz respeito à análise do
conflito em Darfur. Eric Breteau se inspirou no discurso do
coletivo Urgence Darfur, que
apelou para que se "passe à
ação". Antes de sua entrada no
governo, Bernard Kouchner
era uma das personalidades
que transmitiram essa mensagem, ao lado de Bernard-Henri
Lévy. Esse apelo defende a imposição de uma intervenção internacional no Sudão.
Diante dele, as organizações
humanitárias como a Médicos
Sem Fronteiras, do qual Ronny
Brauman é ex-presidente, ou a
Médicos do Mundo, cujas equipes trabalham em campo, rejeitam o que vêem como uma estratégia militar perigosa "à moda do Iraque". Em resposta, os
defensores do Urgence Darfur
afirmam que esses ativistas humanitários têm dificuldade em
reconhecer a gravidade de um
conflito em que o papel dos
"bandidos" não seja representado pelos EUA. "Pró-americanos" contra "antiimperialistas", defensores da ação exclusivamente humanitária contra
partidários de uma intervenção
política ou mesmo militar, auxiliada pelos humanitários. Assim, a Arca de Zoé também veio
reativar essa querela antiga entre "French doctors".
Tradução de CLARA ALLAIN
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