São Paulo, quinta-feira, 02 de janeiro de 2003

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DIREITOS HUMANOS

Premiado pelo Parlamento Europeu, Payá critica manipulação ideológica e se diz contra o embargo à ilha

Dissidente ataca utilização do drama cubano

GABRIELA CANAS
DO "EL PAÍS"

O dissidente cubano Oswaldo Payá, se declara contra o uso ideológico que se faz do drama cubano e manifesta sua oposição ao embargo dos EUA à ilha. "Se o mundo se interessa pelo povo de Cuba, e não em tomá-lo como com instrumento para suas querelas ideológicas, diria que não nos interessa o embargo porque ele não é um fator de mudança".
Líder do Projeto Varela pela democratização do país, Payá afirma que sua iniciativa é "uma campanha realizada em meio ao totalitarismo, em uma cultura do medo", cujo objetivo não é "tomar o poder", mas deflagrar "um processo de transformação de dentro para fora, de libertação do e do ódio, um convite ao diálogo".
O regime de Fidel Castro autorizou Payá, 50, a viajar a Estrasburgo (França), no mês passado, onde recebeu o Prêmio Sakharov de Direitos Humanos do Parlamento Europeu, mas tal gesto não atenua as críticas do dissidente: "Não tenho nada a agradecer por me concederem uma vez o que me foi retirado como direito".

Pergunta - Fidel Castro lhe deu autorização para vir a Estrasburgo receber o Prêmio Sakharov. Com esse gesto, as pessoas menos informadas talvez pensem que a repressão em Cuba não seja tão brutal.
Oswaldo Payá -
O gesto seria eliminar as restrições a que os cubanos entrem e saiam de seu país. Não tenho nada a agradecer por me concederem uma vez o que me foi retirado como direito. Não sou carta de câmbio de ninguém.

Pergunta - O sr. acredita que o projeto Varela dê resultados e que venha a acontecer um referendo?
Payá -
O que acredito é que o povo vá se beneficiar. O projeto é um meio, não um fim. Trata-se de uma campanha nacional realizada em meio ao totalitarismo, em uma cultura do medo. Não é um método que estejamos utilizando para tomar o poder. É um processo de transformação de dentro para fora, de libertação do medo e do ódio, um convite ao diálogo.

Pergunta - O senhor acredita que se trate, efetivamente, do projeto político mais importante da oposição a Fidel Castro?
Payá -
Não tem mérito superior ao de outros projetos, mas tem o valor que lhe emprestam milhares de cubanos, por via pacífica. Mas não é um evento isolado. É fruto de um processo de luta durante o qual muita gente sofreu pressão.

Pergunta - O sr. falou da cultura do medo.
Payá -
Sim. O medo incorporado deforma porque nos faz fingir, adoece as almas, converte-se às vezes na motivação mais importante. Desfigura o ser humano. É muito humilhante e indigno.

Pergunta - Os cubanos têm medo do pós-castrismo?
Payá -
Não, há medo do regime, das represálias. A pessoas estão sempre medindo que efeitos terão suas ações, suas palavras e até mesmo suas inibições. Trata-se de um regime que não reprime só a oposição, mas também a quem não lhe demonstre apoio incondicional, como o menino que tem de gritar a cada dia na escola "pioneiro do comunismo, seremos como Che". A universidade é um meio altamente repressivo. Acabam de expulsar três jovens universitários, num gesto fascista, porque eles filmaram o Projeto Varela. Foram chamados de vermes, de contra-revolucionários. Foi uma cena própria do stalinismo e do fascismo cubanos.

Pergunta - O sr. confia na intercessão de Jimmy Carter?
Payá -
De fora, e digo com respeito, há uma mentalidade que desvaloriza o papel do povo cubano. É uma mentalidade um pouco reacionária, se bem que inconsciente, que se espalhou pelo mundo. Nós podemos ser a pedra removida pelos arquitetos, mas, como diz o Evangelho, a pedra fundamental é o povo cubano. Agradeço a Carter por ter sido a voz dos que não têm voz, mas as mudanças em Cuba não virão por intercessões e pressões, mas pela ação cívica do povo e pela solidariedade para com o povo cubano.

Pergunta - O sr. pediria o fim imediato do embargo a Cuba?
Payá -
Eu pediria coerência. Se o mundo se interessa pelo povo de Cuba, e não em tomá-lo como com instrumento para suas querelas ideológicas, diria que não nos interessa o embargo porque ele não é um fator de mudança.

Pergunta - A oposição está bem organizada.
Payá -
Sim. Mas o melhor é que não pensemos em tomar as rédeas do poder, mas sim prepararmos o terreno para que os cidadãos o façam. Restam momentos difíceis a superar. Um dia antes de eu embarcar, arrombaram minha porta e a lacraram por fora. Um mês antes jogaram tinta vermelha e amarela contra minha casa, para simular uma poça de sangue, e picharam minhas paredes. Tenho três filhos, de 14, 13 e dez anos, e eles vivem nesse ambiente.

Pergunta - O sr. denuncia que os estrangeiros estão comprando o país. O tempo joga contra Cuba?
Payá -
Engana-se quem pensa que o povo cubano vá aceitar como legítima toda propriedade, riqueza ou autoridade que não nasça de um processo legal limpo, e não da usurpação, da manobra ou da corrupção institucionalizada. Em Cuba há muita gente que não tem nada, e há outros que estão enriquecendo, se tornando capitalistas enquanto nos repetem "socialismo ou morte" e passam de dirigentes a gerentes, de comissários a empresários.



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