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São Paulo, domingo, 02 de março de 2003

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DEMOCRACIA ÁRABE

Tese dos EUA de que queda de Saddam estimularia democracia no Oriente Médio não convence

Intelectuais árabes não crêem em reformas

JAVIER VALENZUELA
DO "EL PAÍS", NO CAIRO

Naguib Mahfouz foi hospitalizado duas vezes nas últimas semanas. Aos 92 anos de idade e sem ter se recuperado completamente das punhaladas recebidas de alguns fundamentalistas islâmicos, o único árabe laureado com o Prêmio Nobel de Literatura não consegue superar uma gripe forte. Mesmo assim, Mahfouz fez chegar uma mensagem ao jornal "Al Ahram", do Cairo, sobre a guerra que os EUA preparam contra o Iraque.
"Sou contra esta guerra. Sou contra Saddam", diz. "A guerra vai gerar uma quantidade enorme de destruição, não apenas no Iraque, mas em todo o mundo árabe. Ao mesmo tempo, o regime de Saddam é a quintessência de tudo o que existe de negativo nas políticas árabes: opressor, autocrático e irracional."
A mensagem expressa o que pensa hoje a maioria dos intelectuais, artistas, profissionais liberais, universitários e estudantes que, do Marrocos ao Qatar, sonha com um mundo árabe laico, democrático e que respeite os direitos humanos.
Não tendo conseguido convencer esses setores do suposto perigo representado por Saddam, Washington agora tenta seduzi-los com a idéia de que a guerra será o ponto de partida para uma "remodelação profunda" que levará a liberdade ao Oriente Médio. "Isso é algo de que precisamos muito", diz o cineasta egípcio Youssef Chahine, "mas não me parece que atacar o Iraque seja o instrumento adequado para consegui-lo."
"A onda de democratização que transformou o modo de governar na maioria dos países da América Latina e Ásia oriental nos anos 1980 e os da Europa central e boa parte da Ásia central nos anos 1990 apenas tocou os países árabes de raspão", constata o relatório 2002 da ONU sobre a região. Dificilmente qualquer um dos 22 países da Liga Árabe poderia ser descrito como plenamente democrático.
Apesar disso, o discurso reformista de Washington não desperta entusiasmo entre seus possíveis beneficiários, embora provoque inquietude entre os governantes árabes. É significativo que esses democratas árabes se queixem de que os regimes autoritários aliados de Washington não lhes permitem manifestar-se contra a guerra.
"O problema dos EUA", diz Diaa Rachwan, pesquisador do Centro de Estudos Políticos e Sociais de Al Ahram, "é sua falta de credibilidade. As razões são evidentes: seu apoio a Israel, sua indiferença diante do sofrimento palestino, sua cumplicidade com tantos regimes árabes autoritários e, agora, com Bush, sua sede de vingança, de petróleo e de exercer um papel imperial."
O escritor palestino residente nos EUA Edward Said é um dos 30 intelectuais árabes que assinaram um manifesto que descreve Saddam como "um pesadelo para o Iraque e o mundo árabe". Em artigo, Said recorda que os EUA declararam que vão fazer chover até 500 mísseis por dia sobre o Iraque e pergunta: "Que espécie de Deus diria que isso vai levar democracia e liberdade não apenas para a população do Iraque, mas para o resto do Oriente Médio?".
Saaedin Ibrahim é uma exceção no ceticismo generalizado. Professor da Universidade Americana do Cairo, Ibrahim, que tem nacionalidade dupla -egípcia e americana- , se encontra em liberdade enquanto aguarda julgamento, depois de passar meses na prisão.
Seu crime foi ter denunciado a fraude nas eleições egípcias, a discriminação sofrida pela minoria cristã copta e a possibilidade de que Mubarak esteja preparando seu filho Gamal para ser seu sucessor. "Estou convencido de que os EUA vão tentar seriamente instalar a democracia no Oriente Médio, e isso a partir do exemplo do Iraque", disse ao jornal "El País". "Mas ninguém pode prever se a tentativa dará certo ou não."
Democratizar o universo árabe e muçulmano tem outro inconveniente, pelo menos no curto prazo, segundo Diaa Rachwan. "Cada vez que há eleições mais ou menos livres em um de nossos países", diz, "os islâmicos obtêm resultados muito bons."
O islamismo se nutre da falta de democracia, das terríveis desigualdades sociais, da corrupção dos regimes e do ressentimento diante da indiferença americana com relação ao sofrimento dos palestinos. No entanto, se há democracia, são os islâmicos que saem ganhando.
"Estarão os EUA e o Ocidente dispostos a suportar essas vitórias islâmicas, aceitá-las como doença infantil da democracia no mundo árabe e muçulmano?", indaga Rachwan.


Tradução de Clara Allain


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