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ARTIGO
Lições de Shakespeare para Bush
NICHOLAS D. KRISTOF
DO "NEW YORK TIMES"
A comparação mais comumente traçada entre o presidente Bush
e uma figura literária é com o
príncipe Hal, de Shakespeare, o
jovem que bebia muito e levava
uma vida devassa, mas que se torna sóbrio, se reforma e acaba
emergindo com o grande rei
guerreiro inglês Henrique 5º.
Assim, no momento em que os
republicanos novamente coroam
Bush como seu candidato presidencial, decidi buscar lições de
um especialista no rei Henrique e,
também, um dos mais sagazes
analistas da política americana e
dos assuntos internacionais. É isso mesmo: Shakespeare. Fui a Ashland em minha peregrinação
anual ao Festival Shakespeare de
Oregon e então comecei a pensar
no que Shakespeare poderia dizer
se discursasse na convenção republicana desta semana.
A lição mais importante a tirar
das peças de Shakespeare é que o
mundo é repleto de nuanças e incertezas e que os líderes se destroem sozinhos quando são excessivamente rígidos, quando
têm certeza demasiada de suas
próprias idéias, ou -ouça com
atenção, por favor, presidente-
quando se deixam embriagar em
demasia pela clareza moral.
Percebemos a paixão de Shakespeare pelas nuanças na maneira como ele retrata o próprio Henrique 5º. Shakespeare admira
Henrique, que, como Bush, é forte, resoluto e alguém que proporciona diversão àqueles que o cercam, além de ser vitorioso em batalhas travadas no ultramar, o que
ajuda a acalmar as dúvidas quanto a sua legitimidade no trono.
Assim, durante centenas de
anos a peça "Henrique 5º" foi vista como loa aos ataques de Henrique contra a França, e, por isso,
era repudiada por Bernard Shaw e
outros críticos liberais.
A partir do início do século 20,
porém, os críticos começaram a
enxergar na peça um outro texto
subliminar: um escrutínio implacável da brutalidade e dos inevitáveis excessos da guerra, tanto assim que ela chega a descrever o escândalo de Abu Ghraib do século
15: a ordem de Henrique para que
fossem assassinados os prisioneiros franceses em Agincourt. A peça pode ser vista como crítica ao
chauvinismo insensato que inflige tanto sofrimento a outros, enquanto o governante, simbolicamente, se envolve na bandeira nacional. Como escreve Shakespeare em "Henrique 5º", a respeito de
guerras travadas por opção:
"Mas se a causa não for boa, o
próprio rei tem uma conta pesada
a pagar, quando todas as pernas,
os braços e as cabeças decepados
na batalha se juntarem, num dia
posterior, e clamarem: "Morremos em tal e tal lugar", alguns
blasfemando, outros chamando
por um médico, outros chamando por suas mulheres deixadas
pobres em sua ausência, outros
falando das dívidas que deixaram,
alguns chamando por seus filhos
deixados à míngua. Temo que sejam poucos os que morrem em
batalha que morrem bem."
Uma lição correlata a ser aprendida por Bush é a inevitabilidade
das falhas de inteligência. Em praticamente todas as peças do bardo
inglês os personagens confiam
em informações que acabam se
revelando catastroficamente inverídicas. O rei Lear acredita nas
palavras de suas filhas mais velhas; Romeu acredita que Julieta
morreu, Otelo crê nas mentiras
contadas por Iago.
Shakespeare começa "Henrique
4º, parte 2" com o personagem de
Rumor (que, nos dias de hoje, poderia ser representado por Ahmed Chalabi) e, em seguida, mostra como os reis se metem em
confusão quando acreditam em
meias verdades ou nas falsas lisonjas de sicofantas.
"Todas essas figuras em Shakespeare sofrem de hibris [soberba],
e é disso que W. está sofrendo",
diz Kenneth Albers, veterano ator
shakespeareano que está representando o rei Lear em Ashland.
De fato, a única pessoa que parece oferecer conselhos sensatos
aos reis de Shakespeare é o bobo
da corte, que não pode ser castigado por pronunciar verdades desagradáveis, porque fazer brincadeiras é seu trabalho. Aconselho
Bush a nomear um bobo da Casa
Branca com urgência.
Shakespeare nos desaconselha a
empreender ações insensatas
com base em informações falhas.
"Hamlet" às vezes é visto como
uma crítica contundente à indecisão, mas seu solilóquio "ser ou
não ser" é uma análise cuidadosa
dos prós e contras de uma ação
imediata -ou seja, uma abordagem comedida que Bush teria feito bem em imitar antes da guerra.
Em lugar disso, Bush segue o
exemplo de Coriolano, o general e
aristocrata romano bem intencionado cuja guerra contra os bárbaros num primeiro momento o
conduz à vitória, mas que, em seguida, se mostra tão inflexível e
destemperado que a tragédia se
abate sobre ele e seu povo.
A não ser que Bush aprenda a
enxergar nuanças e a agir de maneira menos impensada, ele será o
Coriolano de nossa era: um líder
forte e resoluto, dotado de grande
talento e, inicialmente, saudado
por sua liderança numa crise, mas
que acaba falhando em sua tarefa
diante de si mesmo e de seu país
em razão de sua rigidez, superficialidade e arrogância.
Tradução de Clara Allain
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