São Paulo, quinta-feira, 02 de setembro de 2004

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ARTIGO

Lições de Shakespeare para Bush

NICHOLAS D. KRISTOF
DO "NEW YORK TIMES"

A comparação mais comumente traçada entre o presidente Bush e uma figura literária é com o príncipe Hal, de Shakespeare, o jovem que bebia muito e levava uma vida devassa, mas que se torna sóbrio, se reforma e acaba emergindo com o grande rei guerreiro inglês Henrique 5º.
Assim, no momento em que os republicanos novamente coroam Bush como seu candidato presidencial, decidi buscar lições de um especialista no rei Henrique e, também, um dos mais sagazes analistas da política americana e dos assuntos internacionais. É isso mesmo: Shakespeare. Fui a Ashland em minha peregrinação anual ao Festival Shakespeare de Oregon e então comecei a pensar no que Shakespeare poderia dizer se discursasse na convenção republicana desta semana.
A lição mais importante a tirar das peças de Shakespeare é que o mundo é repleto de nuanças e incertezas e que os líderes se destroem sozinhos quando são excessivamente rígidos, quando têm certeza demasiada de suas próprias idéias, ou -ouça com atenção, por favor, presidente- quando se deixam embriagar em demasia pela clareza moral.
Percebemos a paixão de Shakespeare pelas nuanças na maneira como ele retrata o próprio Henrique 5º. Shakespeare admira Henrique, que, como Bush, é forte, resoluto e alguém que proporciona diversão àqueles que o cercam, além de ser vitorioso em batalhas travadas no ultramar, o que ajuda a acalmar as dúvidas quanto a sua legitimidade no trono.
Assim, durante centenas de anos a peça "Henrique 5º" foi vista como loa aos ataques de Henrique contra a França, e, por isso, era repudiada por Bernard Shaw e outros críticos liberais.
A partir do início do século 20, porém, os críticos começaram a enxergar na peça um outro texto subliminar: um escrutínio implacável da brutalidade e dos inevitáveis excessos da guerra, tanto assim que ela chega a descrever o escândalo de Abu Ghraib do século 15: a ordem de Henrique para que fossem assassinados os prisioneiros franceses em Agincourt. A peça pode ser vista como crítica ao chauvinismo insensato que inflige tanto sofrimento a outros, enquanto o governante, simbolicamente, se envolve na bandeira nacional. Como escreve Shakespeare em "Henrique 5º", a respeito de guerras travadas por opção:
"Mas se a causa não for boa, o próprio rei tem uma conta pesada a pagar, quando todas as pernas, os braços e as cabeças decepados na batalha se juntarem, num dia posterior, e clamarem: "Morremos em tal e tal lugar", alguns blasfemando, outros chamando por um médico, outros chamando por suas mulheres deixadas pobres em sua ausência, outros falando das dívidas que deixaram, alguns chamando por seus filhos deixados à míngua. Temo que sejam poucos os que morrem em batalha que morrem bem."
Uma lição correlata a ser aprendida por Bush é a inevitabilidade das falhas de inteligência. Em praticamente todas as peças do bardo inglês os personagens confiam em informações que acabam se revelando catastroficamente inverídicas. O rei Lear acredita nas palavras de suas filhas mais velhas; Romeu acredita que Julieta morreu, Otelo crê nas mentiras contadas por Iago.
Shakespeare começa "Henrique 4º, parte 2" com o personagem de Rumor (que, nos dias de hoje, poderia ser representado por Ahmed Chalabi) e, em seguida, mostra como os reis se metem em confusão quando acreditam em meias verdades ou nas falsas lisonjas de sicofantas.
"Todas essas figuras em Shakespeare sofrem de hibris [soberba], e é disso que W. está sofrendo", diz Kenneth Albers, veterano ator shakespeareano que está representando o rei Lear em Ashland.
De fato, a única pessoa que parece oferecer conselhos sensatos aos reis de Shakespeare é o bobo da corte, que não pode ser castigado por pronunciar verdades desagradáveis, porque fazer brincadeiras é seu trabalho. Aconselho Bush a nomear um bobo da Casa Branca com urgência.
Shakespeare nos desaconselha a empreender ações insensatas com base em informações falhas. "Hamlet" às vezes é visto como uma crítica contundente à indecisão, mas seu solilóquio "ser ou não ser" é uma análise cuidadosa dos prós e contras de uma ação imediata -ou seja, uma abordagem comedida que Bush teria feito bem em imitar antes da guerra.
Em lugar disso, Bush segue o exemplo de Coriolano, o general e aristocrata romano bem intencionado cuja guerra contra os bárbaros num primeiro momento o conduz à vitória, mas que, em seguida, se mostra tão inflexível e destemperado que a tragédia se abate sobre ele e seu povo.
A não ser que Bush aprenda a enxergar nuanças e a agir de maneira menos impensada, ele será o Coriolano de nossa era: um líder forte e resoluto, dotado de grande talento e, inicialmente, saudado por sua liderança numa crise, mas que acaba falhando em sua tarefa diante de si mesmo e de seu país em razão de sua rigidez, superficialidade e arrogância.


Tradução de Clara Allain


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