São Paulo, segunda-feira, 02 de outubro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

JAPÃO
Nova biografia diz que o imperador foi dominante na Segunda Guerra, não o líder inseguro que a história registrou
Livro tira de Hirohito imagem de refém dos militares

HOWARD W. FRENCH
DO "THE NEW YORK TIMES", EM TÓQUIO

Herbert P. Bix não quer que ninguém pense que, com seu livro "Hirohito and the Making of Modern Japan" (Hirohito e a gênese do Japão moderno -HarperCollins), ele trouxe à tona qualquer segredo obscuro sobre um líder que passou seus 62 anos no trono atrás de um véu espesso de sigilo.
Como o autor faz questão de reconhecer, muitas das informações do livro foram descobertas e pesquisadas por colegas japoneses, apenas para serem quase completamente ignoradas pelo público do Japão, quando jornais e as principais editoras do país hesitaram em divulgá-las.
Baseado em grande medida em diários e cartas dos assessores e contemporâneos do imperador, Bix pintou o retrato de um líder militarmente agressivo que era informado sobre cada detalhe das operações de guerra japonesas.
Fontes americanas bem informadas sobre o Japão afirmam que a nova biografia muda por completo a visão amplamente aceita de Hirohito, morto em 1989, como virtual refém de militaristas durante a Segunda Guerra Mundial e, depois dela, símbolo pacífico da reconstrução japonesa.
A questão que suscita mais interesse de Bix, historiador de Harvard que dedicou sua vida ao estudo do Japão e que hoje leciona na Universidade Hitotsubashi, no Japão, é se, agora que seu livro vestiu o imperador em novas roupas, os japoneses vão fazer uma reavaliação de sua figura.
Em vista da disposição japonesa de desviar seus olhos dos capítulos mais conturbados de sua própria história e resistir a fazer uma auto-avaliação das atrocidades cometidas pelo país na China e na Coréia e do militarismo que provocou a guerra no Pacífico, Bix diz que considera pouco provável.
"A direita constantemente recicla mitos sobre a guerra perdida, e a mentalidade no Japão não mudou muito até hoje. Para isso acontecer, será preciso haver leis que protejam empresas que publicam ou divulgam materiais críticos sobre o tema", disse ele.
Mas Bix afirmou que não quer que seu livro seja usado pelas pessoas para criticar o Japão por seu passado. "Quero que os japoneses deixem tudo isso para trás. Eu gostaria que resultasse em algo positivo. Para isso, é preciso começar determinando o que realmente aconteceu."
O livro de Bix foi gestado durante muitos anos e, fato estranho em se tratando de uma obra que acabou sendo definitiva sobre o imperador, começou como um projeto mais amplo, um retrato das elites japonesas em seu esforço para aceitar a modernização.
"Quando comecei o livro, eu nem sequer estava interessado em Hirohito", contou Bix. "Mas sua história foi me seduzindo aos poucos e ele acabou por se tornar o personagem central do livro. Eu nem mesmo estava preocupado com a questão dos culpados pela guerra. Tentava relatar a história da trajetória japonesa no século 20, mas foi como olhar para algo por um caleidoscópio: você o gira um pouco e o quadro muda de figura. De repente, a figura-chave, o homem apenas à margem do quadro, passa a ocupar o centro, seu lugar de direito."
Em última análise, diz Bix, Hirohito não pôde fugir da responsabilidade da guerra "porque era o único homem livre no país".
"Livre em dois sentidos: nunca, até o final, lhe faltaram opções. E era livre no sentido de que não havia ninguém superior a ele a quem sua vontade tivesse de se sujeitar, exceto os antepassados."
A história de como Hirohito foi retirado do centro do quadro é tão interessante quanto os detalhes da transição descrita pelo imperador, de figura insegura no trono a verdadeiro líder de guerra -a transição de um homem que sempre concordava a posteriori com as decisões tomadas por seus chefes militares, como fez durante o expansionismo japonês na Manchúria (China), a um militarista de linha dura que exortou seus generais a continuar combatendo até o fim, mesmo quando sabia que sua causa já estava perdida na guerra contra os EUA.
Após o fim da guerra, os EUA tinham pressa em ocupar o vácuo deixado pela queda do Japão e enfrentar os desafios estratégicos colocados pelos soviéticos.
Segundo Bix, o general Douglas MacArthur chegou ao Japão como comandante supremo do país sob ocupação, com planos prontos para usar Hirohito para estabelecer uma paz pró-americana.
MacArthur, desfrutando de influência enorme sobre a política japonesa, cooperou estreitamente com Hirohito para apontar bodes expiatórios apropriados a serem julgados pelo Tribunal de Guerra de Tóquio, eximindo o trono japonês de culpa pela guerra.
Um elemento crítico foi a carta de MacArthur a seus superiores em Washington dizendo que seus esforços para analisar a situação não tinham rendido provas de responsabilidade imperial pela guerra e que, se o imperador fosse retirado do trono, 1 milhão de soldados seriam necessários para manter a paz no Japão.
Segundo Bix, "tudo aconteceu muito rapidamente, e a população japonesa não teve a chance de refletir sobre a questão da responsabilidade pela guerra e do papel planejado pela monarquia e desempenhado pelo imperador".


Tradução de Clara Allain


Texto Anterior: China ataca canonização de 120 pelo papa
Próximo Texto: Eleição nos Bálcãs: Oposição iugoslava teme divisão antes do segundo turno
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.